Esta lendária comunidade lutou para conquistar sua liberdade na Jamaica

Veja como o legado do povo quilombola contribui para a atitude independente da ilha.

Por ASHANTE INFANTRY
Publicado 28 de fev. de 2021, 10:20 BRT
Dancing in the Asafu Culture Yard

Quilombolas jamaicanos dançam ao som de tambores no Asafu Culture Yard. O espaço comunitário e museu em Charles Town — uma das quatro principais aldeias quilombolas ainda existentes — dedica-se a preservar suas tradições culturais.

Foto de Joshua Cogan

Em sua casa, situada nas Montanhas Azuis e John Crow no leste da Jamaica, Ivelyn Harris utiliza a natureza como relógio.

“Ouça bem, é possível escutá-los cantando”, ela diz, fazendo uma pausa no telefone. “Os pássaros nos acordam às cinco da manhã e voltam a dormir por volta das 10h; depois, às três da tarde, acordam novamente.”

Observadores de pássaros e pessoas caminhando e acampando são atraídos para o local, o único parque nacional da ilha — que foi declarado Patrimônio Mundial da Unesco em 2015. O ambiente sereno esconde seu passado tempestuoso.

A idílica aldeia de Harris em Moore Town é o território ancestral dos lendários quilombolas jamaicanos. Seus antepassados eram africanos escravizados fugitivos que triunfaram contra a recaptura pelos regimentos britânicos e se tornaram permanentemente livres — seis décadas antes da Revolução Haitiana e mais de cem anos antes da Proclamação de Emancipação.

Muitas das comunidades quilombolas vivem nas montanhas da Jamaica, como o vale do Rio Grande, próximo à paróquia de St. Thomas, bem distante das áreas mais povoadas que margeiam a costa.

Foto de Joshua Cogan

“Os quilombolas são os precursores da independência da Jamaica e da atitude de independência”, afirma Harcourt Fuller, professor associado de História da Universidade do Estado da Geórgia e quilombola de Moore Town. “Os quilombolas afirmam que preferem morrer a viver em cativeiro. Até fico emocionado ao dizer isso. É uma parte de nós: nunca ficar preso, nunca ser subjugado, sempre buscando a justiça e lutando para sobreviver”.

Os jamaicanos têm um ditado, “we likkle, but we tallawah”, que se traduz como “somos poucos, mas somos poderosos.” É sobre a disposição quintessencial dos habitantes desta nação caribenha composta por três milhões de pessoas, que atinge muito mais do que seu peso em influência, com exportações de culinária, música, intelectualismo, linguagem e atletismo para o mundo todo.

O legado quilombola recebe algum crédito por suas características de engenhosidade, fortaleza e misticismo, conforme demonstrado por jamaicanos como Bob Marley, Usain Bolt, Marcus Garvey e a estrategista quilombola do século 18, Nanny.

Nos Estados Unidos, quase um milhão de pessoas se identificam como americanos-jamaicanos, ou seja, pessoas com raízes jamaicanas que fizeram contribuições significativas e abrangentes, entre elas está a vice-presidente Kamala Harris, que é a primeira mulher eleita para esse cargo. 

Livres e autônomos

Em inglês, a palavra quilombola é “Maroon”, que tem origem na palavra cimarron, em espanhol, que se referia ao gado em fuga. Os quilombolas existiam por todas as Américas — no Brasil, México, Barbados, Suriname e outras regiões — mas os mais famosos foram os africanos ocidentais, oriundos principalmente do povo acã. Eles foram levados à Jamaica para trabalhar nos campos de cana-de-açúcar pelos britânicos, que importaram mais de 700 mil africanos entre 1655 e 1807.

Grupos esporádicos de pessoas escravizadas se opunham periodicamente para lutar contra os capatazes e fugiam das árduas condições nas plantações, escondendo-se nas montanhas e florestas remotas da ilha. Por fim, eles se dividiram em dois clãs de quilombolas — o clã do sotavento no oeste e o clã do barlavento no leste. Eles mantiveram as tropas afastadas com táticas de guerrilha, como camuflagem em árvores e utilização de chifres de animais, chamados abeng, para captar mensagens codificadas, em vez de entrar em combate direto.

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    Esta imagem de 1834 retrata uma batalha entre quilombolas jamaicanos e soldados britânicos. Após duas guerras no século 18, os britânicos assinaram tratados com os quilombolas, permitindo-lhes permanecer livres e autônomos até a abolição da escravatura.

    Foto de Illustration by Universal History Archive, Getty Images

    Após duas exaustivas Guerras Quilombolas (1720-1739, 1795-1796), os britânicos se renderam e assinaram tratados de paz com os quilombolas, permitindo-lhes permanecer livres e autônomos até que a escravidão fosse abolida na Comunidade Britânica em 1834.

    O governo da Jamaica, estabelecido em 1962, quando o domínio britânico terminou, tem respeitado amplamente os acordos centenários com os quilombolas, embora nunca os tenha ratificado. Apesar de o governo não recolher impostos sobre as terras quilombolas, que não podem ser vendidas nem usadas como garantia em um banco, ele fornece infraestrutura — estradas, pontes, escolas, clínicas — para as quatro principais aldeias quilombolas remanescentes: Charles TownMoore TownAccompongScott’s Hall. As comunidades, que normalmente não têm criminalidade, elegem um conselho, liderado por um coronel ou chefe, para governar a população, embora os residentes também possam utilizar o sistema judicial jamaicano.

    As aldeias quilombolas autossuficientes — que abrigam cerca de 700 quilombolas e seus filhos, de acordo com o Instituto da Jamaica — obtêm seu sustento da agricultura e do turismo. A subsistência de Ivelyn Harris provém de uma combinação de ambos. Como fitoterapeuta quilombola de sétima geração, ou “médica das plantas”, ela normalmente recebe um fluxo de visitantes em seu retiro de bem-estar, localizado a uma hora de carro de Kingston, a capital da Jamaica.

    Um guia do Jamaica Conservation Development Trust mostra aos turistas as Montanhas Azuis, um Patrimônio Mundial da Unesco.

    Photographs by Joshua Cogan

    A pandemia interrompeu o turismo em enclaves quilombolas, que, talvez como resultado de sua reclusão, não relataram um único caso do novo coronavírus entre as quatro principais aldeias, conta Harris, 68 anos. Ela atribui a boa disposição geral dos quilombolas ao “ar, à sua alimentação e à atmosfera”. Os moradores locais também têm conhecimento rudimentar suficiente sobre remédios fitoterápicos para “se curarem”, esclarece ela. “Eles sabem quais ervas utilizar se estiverem com dor de barriga, cólica ou entorse.”

    Em uma manhã recente, em vez da meia dúzia de rondas diárias que costuma fazer, a Coronel de Charles Town Marcia Douglas, 44 anos, estava monitorando 30 crianças que assistiam a aulas virtuais dentro do Asafu Culture Yard, que antes recebia visitantes para almoços, aulas de percussão, oficinas de artesanato e palestras sobre ervas e chás tradicionais.

    Enquanto as crianças conversam ao fundo, ela lamenta a crise econômica que se abateu sobre Charles Town, localizada no sopé das Montanhas Azuis, a uma hora e meia de carro do porto de cruzeiros de Ocho Rios. “Utilizamos nossa cultura para contar a história de nossos antepassados e também como meio de obtenção de nossa principal renda”, conta Douglas. Mas agora, “todos os nossos negócios estão paralisados”. 

    Quando a pandemia diminuir, haverá inúmeras maneiras de descobrir e desfrutar da história quilombola. Pode-se visitar as aldeias gratuitamente, mas é recomendável entrar em contato com a coronel local com antecedência para agendar visitas guiadas, refeições especiais e estadias em casas de família.

    Os feriados especiais incluem 23 de junho, quando Charles Town comemora o Dia de Quao para celebrar a assinatura do tratado de paz entre os britânicos e o Coronel Quao em 1739. Todo dia 6 de janeiro, a cidade de Accompong celebra seu tratado de 1738 e o aniversário de Cudjoe, irmão da Rainha Nanny.

    Os viajantes podem visitar um dos alojamentos turísticos comunitários quilombolas na Paróquia de St. Thomas para explorar a abundância de locais naturais e culturais da área.

    Photographs by Joshua Cogan

    Heróis e herança

    A Jamaica da atualidade reverencia sua história quilombola. Entre as sete figuras denominadas como “Heróis Nacionais” pelo governo, a única mulher é Nanny, que também está representada na nota de $500 do país.

    A reflexão histórica nem sempre favorece os quilombolas. Alguns jamaicanos ficaram desapontados ao saber que os tratados que pavimentaram a liberdade dos quilombolas também continham o acordo dos rebeldes de não ajudar futuros fugitivos ou rebeliões de quilombolas escravizados. “Isso causou tensões ao longo dos anos”, admite Vivian Crawford, diretor-executivo do Instituto da Jamaica e nascido em Moore Town. Mas ele justifica que os quilombolas precisavam ter cuidado com os recém-chegados, porque os britânicos às vezes usavam prisioneiros africanos como espiões para localizar e destruir refúgios quilombolas.

    Além disso, como suas comunidades são isoladas e os quilombolas insulares tendem a ficar perto de casa, os descendentes atuais às vezes são vistos com desconfiança por outros jamaicanos, e nem sempre são bem quistos.

    “Não fomos considerados especiais, porque isso depende de quem escreveu a história. Quando saí de casa para fazer faculdade, percebi que a história ensinava que éramos selvagens”, esclarece Crawford, 80 anos, relembrando o espanto de seus colegas de classe por ele saber tocar piano. “Foi o que me redimiu; eles achavam que quilombolas só sabiam tocar tambor”, conta ele, rindo.

    Tocar tambor é uma parte significativa da cultura quilombola; outras contribuições desse povo ao patrimônio da ilha incluem danças tradicionais, o estilo culinário jerk, o uso medicinal de plantas e, é claro, uma atitude nacional rebelde.

    “Ainda somos guerreiros, mas agora de uma forma diferente”, ressalta Douglas. Ela explica como, nos últimos anos, seu distrito se organizou pacificamente contra as propostas de mineração de bauxita nas proximidades. Em outra ocasião, quando a comunidade vizinha estava sem abastecimento de água, mesmo tendo pagado as contas, os quilombolas se reuniram e apreenderam o veículo da comissão de água e bloquearam a estrada até que o problema da falta de água fosse resolvido.

    “Não se trata de atirar pedras”, afirma Douglas. “Trata-se de defender aquilo em que acreditamos.”

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