Viajantes estão cruzando fronteiras em busca da vacina contra a covid-19

Encarando a escassez em seus próprios países, algumas pessoas se arriscam a ir longe para conseguir suas doses.

Por Jackie Snow
Publicado 7 de mai. de 2021, 07:00 BRT
Passageiros desembarcam de um avião no Aeroporto Internacional Ibrahim Nasir, em Malé, nas Ilhas Maldivas, em ...

Passageiros desembarcam de um avião no Aeroporto Internacional Ibrahim Nasir, em Malé, nas Ilhas Maldivas, em 15 de julho de 2020. As Ilhas Maldivas estão encorajando a volta de turistas estrangeiros através da estratégia “3-V”, que combina visitas, vacinas e férias.

Foto de Ahmed Shurau, AFP/Getty Images

Enno Lenze, cidadão alemão que é empresário, jornalista e diretor de museu, teve o que pareceu ser um emprego extra na busca por uma vacina, uma caçada que ele começou em dezembro passado. Ele mora em Berlim e tentou conseguir doses que sobraram com médicos locais, mas também estava disposto a viajar: ele tentou tomar a vacina na Sérvia, informou-se sobre opções em Israel, nos Emirados Árabes e no Iraque, e até tentou obter um visto dos Estados Unidos para tentar a sorte por lá.

Uma opção finalmente apareceu. A World Visitor, uma agência de viagens norueguesa, passou a oferecer um pacote que incluía uma viagem para Moscou para tomar a Sputnik V, a vacina russa. Lenze e mais 50 alemães aproveitaram a oportunidade e viajaram para lá para tomar a primeira dose. Agora eles precisam retornar para tomar a segunda dose. A cada visita, o governo russo exige a permanência no país durante três dias para fins de monitoramento, mas Lenze diz que não se importou com isso.

“Eu fiz vários passeios”, ele conta. “Eu me interesso pela corrida espacial e queria ver as aeronaves da era soviética”.

A World Visitor também oferece um pacote de “bem-estar” de três semanas, onde os viajantes podem relaxar em um spa na Turquia entre uma dose e outra. A empresa está prestes a lançar uma viagem de trem na Sibéria, que também inclui a vacina. Albert Sigl, coproprietário da World Visitor, relata que até agora, aproximadamente 600 pessoas da Alemanha e da Suíça, os dois países que oferecem voos para a Rússia no momento, já participaram de uma dessas viagens. De acordo com Sigl, a Rússia é o primeiro destino voltado à vacina que a empresa está oferecendo, mas é provável que não seja o último.

“Assim que um país autorizar viajantes a tomarem vacina, nós comercializaremos o pacote em nosso site”, afirma Sigl. “Não temos uma conexão especial com a Rússia, é apenas um modelo de negócios”.

Médico russo recebe a vacina Sputnik V em uma clínica de Moscou, em dezembro de 2020. Algumas empresas estão oferecendo pacotes para estrangeiros viajarem até Moscou para serem vacinados.

Foto de Yuri Kozyrev, Noor, Redux

Vacinação desigual

A distribuição da vacina contra a covid-19 tem acontecido de diversas formas ao redor do mundo, com países decretando políticas diferentes para atender suas populações de alto risco. Mas em muitos lugares — incluindo a Alemanha, país que desenvolveu a vacina BioNTech/Pfizer, onde aproximadamente 7% da população já foi vacinada — é muito difícil, se não for impossível, encontrar vacinas. Alguns residentes ansiosos estão cruzando fronteiras internacionais em busca de qualquer dose que puderem encontrar. Essa questão traz à tona problemas sérios na distribuição global das vacinas  e expõe o que as pessoas estão dispostas a fazer para conseguir uma dose.

Os Estados Unidos registraram a maior taxa de mortalidade da pandemia até agora. No entanto, a iniciativa de vacinação deles tem sido mais eficaz e efetiva se comparada à grande maioria dos países; até agora, mais de 32% da população adulta dos Estados Unidos já está vacinada.

Todos os adultos norte-americanos já são elegíveis para receber a vacina, e pedidos para visitantes estão começando a ser disponibilizados em locais onde a oferta supera a demanda. Com isso, surgem oportunidades promissoras: em junho, o estado do Alasca passará a oferecer a vacina no aeroporto para qualquer viajante. O estado de Dakota do Norte está vacinando motoristas de caminhão canadenses. A Flórida, que teve que decretar regras de residência no início da campanha da vacinação para impedir que pessoas de outros estados recebessem a vacina, está fazendo concessões para residentes temporários e pessoas que têm negócios no estado. E no México, país fortemente atingido pela pandemia, onde menos de 5% dos cidadãos foram vacinados, o jornal Reforma relata que os "polleros" (coiotes) estão ajudando pessoas a cruzar a fronteira dos Estados Unidos para conseguir a vacina.

As regras são tão flexíveis que residentes das Américas Central e do Sul, desesperados para tomar a vacina, estão entrando no país por Miami. Entre eles está Daniel Cordova Cayo, economista peruano.

A segunda onda da doença no Peru foi pior que a primeira; o país tem uma das taxas mais altas de excesso de mortalidade do mundo, com quase 59 mil mortes. Os desafios para adquirir vacinas e distribuí-las de forma justa sacudiram o país. O ex-presidente, Martín Vizcarra, foi proibido de ocupar cargos públicos durante a próxima década, após ser considerado culpado por tráfico de influência, conluio e declarações falsas sobre pessoas ricas e com boas conexões, que puderam furar a fila da vacina.

“A situação do Peru é muito ruim”, conta Cordova Cayo. “Eu não sou rico, mas tenho visto para os Estados Unidos”.

Cordova Cayo trabalha em uma universidade que possui um campus na Flórida; ele viajou de Lima até o Aeroporto Internacional de Miami, alugou um carro e foi direto para o posto de vacinação no estádio Hard Rock. Ele apresentou a documentação da universidade junto com o passaporte e tomou a vacina.

Ele esteve em Miami a trabalho em janeiro, mas não tentou tomar a vacina na época porque não estava na faixa etária necessária e não achou certo passar na frente de uma pessoa pertencente a um grupo de risco. Mas, depois que as vacinas foram oferecidas a todos os adultos, ele se sentiu confortável para tomá-la. Ele disse que conhece muitas pessoas em Lima que estão fazendo a mesma coisa.

Do seu ponto de vista como economista, ele explica que os países que obtiveram êxito na aquisição de vacinas para seus cidadãos o fizeram de maneiras levemente diferentes, e os países que falharam na aquisição e distribuição de vacinas enfrentaram o mesmo obstáculo.

“Burocracia é um problema no mundo inteiro”, ele diz.

Um impulso para o turismo

Um ano depois de uma grande interrupção no número de viagens, alguns países estão buscando impulsionar o número de visitantes ao oferecer a vacina na chegada. As Ilhas Maldivas buscaram a estratégia “3-V” para encorajar os turistas a “visitar, vacinarem-se e curtirem as férias”. A estratégia irá proporcionar uma maneira “mais conveniente” de visitar o local, segundo declaração do Ministro do Turismo das Maldivas, Abdulla Mausoom para a CNBC. Aproximadamente 13% da população das Ilhas Maldivas foi vacinada, mas 90% dos trabalhadores da área de turismo recebeu as doses, de acordo com Mausoom. Essa estatística mostra a importância do setor de turismo nas perspectivas de recuperação da ilha.

Um desafio encarado por diversas nações é a desigualdade na compra e distribuição de vacinas. Das vacinas distribuídas no mundo inteiro, 82% foram para países com populações de classe alta e média alta, de acordo com um estudo conduzido pelo projeto Nosso Mundo em Dados (em tradução livre), da Universidade de Oxford. Apenas 0,2% das vacinas foram para países com populações de classe baixa.

Algumas iniciativas foram lançadas para atenuar esse problema, incluindo o Acesso Global às Vacinas contra Covid-19, ou Covax, uma iniciativa global para a distribuição de vacinas. Mas, até o momento, os países ricos absorveram a maior parte da oferta de vacinas.

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    Funcionários em Idlib, na Síria, descarregam mais de 50 mil doses de vacinas contra covid-19 no dia 21 de abril de 2021, parte do programa Covax, cujo objetivo é o acesso global e igualitário às vacinas.

    Foto de Muhammed Said, Anadolu Agency/Getty Images

    “Se houvesse uma distribuição global adequada e as pessoas estivessem furando a fila, então teríamos um problema”, explica Nicole Hassoun, acadêmica visitante da Universidade de Cornell e professora de filosofia na Universidade de Binghamton, que trabalha com bioética. “Essa não é nossa situação”.

    Viajar em busca de tratamentos que tenham disponibilidade limitada no país de origem da pessoa, ou que sejam mais baratos em outros países não é algo novo, de acordo com Glenn Cohen, professor da Escola de Direito de Harvard e diretor do Centro Petrie-Flom de Políticas de Direito da Saúde, Biotecnologia e Bioética.  Um mercado de turismo médico próspero já existe há anos. No caso das vacinas contra covid-19, contanto que os grupos de risco já estejam imunizados, países com excedente de vacinas podem usá-las para impulsionar o turismo, se conduzido de maneira cuidadosa.

    “O que importa é o direcionamento desses benefícios”, ele afirma. “Essas estratégias devem beneficiar as pessoas mais pobres da comunidade, e não apenas os ricos”.

    As vacinas com duas doses podem instigar os países a manterem os visitantes por mais tempo, já que a resposta imunológica demora para iniciar, mas a maior parte do turismo pós-vacina não deve ser apressada.

    “Eu ficaria um pouco preocupado”, ele diz. “Espero que essas pessoas não frequentem feiras e bazares imediatamente”.

    Pegando a estrada em busca de vacinas

    A Sérvia também experimentou oferecer vacinas aos viajantes internacionais. Ela comprou aproximadamente três milhões de doses das vacinas da Pfizer, AstraZeneca, Sputnik V e Sinopharm; surpreendentemente, o número de vacinas do país era maior que o número de cidadãos dispostos a tomá-las. Então o país passou a oferecer doses para estrangeiros; mais de 22 mil não residentes tomaram a vacina até o fim de março, de acordo com a Euronews.

    A maioria era residente de países vizinhos nos Bálcãs, mas os canadenses Alyssa Sutton e Noah Guthrie estavam entre os visitantes sortudos que tomaram a vacina. Recém-formados na faculdade, Sutton e Guthrie começaram a viajar pela Europa em setembro. Eles tentaram alinhar a viagem de ano sabático, planejada há muito tempo, com um momento de queda nos casos, e seguiram as regras de quarentena de cada país. Mesmo assim, depois de algumas semanas, o número de casos começou a subir novamente e eles ficaram presos na Europa, pois não puderam arcar com os custos dos hotéis de quarentena onde todos os canadenses devem ficar antes de retornar ao país.

    Eles seguiram para a Sérvia após ficarem sabendo que os estrangeiros estavam autorizados a solicitar a vacina. Eles usaram o Google Translate para preencher os formulários, mas não esperavam receber uma resposta. Dentro de uma semana seus pedidos foram aprovados, e Sutton e Guthrie pegaram um ônibus de Belgrado até Novi Sad, uma cidade sérvia a uma hora de distância. Eles tomaram a vacina da AstraZeneca sem nenhuma dificuldade. O vídeo que eles postaram no YouTube mostrando a experiência acumulou milhares de visualizações e e-mails de pessoas do mundo inteiro perguntando como eles conseguiram. Porém, desde a metade de abril, a Sérvia suspendeu a aplicação de vacinas em estrangeiros.

    “Tivemos sorte de estar lá”, explica Sutton.

    Os dois precisam se preparar para a segunda dose, que pode acontecer a qualquer momento. A dose final também significa que eles poderão viajar para países que estão abrindo as fronteiras para turistas vacinados.

    O desejo de viajar não cessa, mesmo durante uma pandemia, “Nós não poderemos fazer isso em outro momento”, afirma Sutton, explicando que os planos para o futuro, como ter uma casa e uma carreira após o ano sabático, tornará uma viagem dessas impossível de se realizar. “Precisamos fazer isso agora”.

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