Longe das sombras, os gatos selvagens que você nunca viu

Ofuscados pelos primos mais espetaculares, os pequenos felinos selvagens do mundo também merecem um lugar ao sol.

Por Christine Dell'Amore
fotos de Joël Sartore
Publicado 2 de jan. de 2018, 12:53 BRST, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Caracal (CARACAL CARACAL) – Alguns felídeos de pequeno porte são predadores eficazes. O caracal, visto na Ásia e na África, tem meio metro de altura, mas já foi filmado saltando sobre cercas de 3 metros para atacar ovelhas. Fotografado no Zoológico e Aquário de Columbus, EUA.
Foto de Joël Sartore

Não há como negar tal capacidade: esse animal de olhos ambarinos e barbicha pronunciada afinal começou a se recuperar após décadas de declínio demográfico. Em 2002, quando o projeto Iberlince foi lançado, restava menos de uma centena de animais, dispersos pelos terrenos áridos junto ao Mediterrâneo, e essa população vinha diminuindo pouco a pouco em decorrência da caça e de um vírus que quase eliminou os coelhos-europeus da região, a principal fonte de nutrição dos felinos. Tão depauperada ficou a população dos linces que a diversidade genética roçava níveis perigosamente baixos, tornando-os vulneráveis a doenças e má-formações inatas.

Para sorte dos cientistas, contudo, os linces se reproduzem bem em cativeiro, e, a partir de 2010, 176 indivíduos acabaram sendo reintroduzidos em hábitats cuidadosamente escolhidos. Dos animais reintroduzidos, 60% sobreviveram, e alguns superaram as expectativas dos cientistas.

Dois linces fizeram “uma espetacular travessia da Península Ibérica”, cada qual percorrendo mais de 2 400 quilômetros até novos territórios, relata o biólogo Miguel Simón, diretor do programa de reinserção dos animais. A equipe mantém contato com os proprietários de terras, de modo a conquistar-lhes a confiança e convencê-los a permitir a presença dos linces em suas terras. Em 2012, quando a população de felinos chegou a 313 indivíduos – dos quais cerca de metade com idade suficiente para se reproduzir −, a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês) melhorou a classificação do lince-ibérico em sua lista de espécies, de “criticamente em perigo” para “em perigo”.

Não muito longe do bosque de oliveiras, eu me abaixo agradecido a fim de entrar no frescor de um túnel de drenagem que passa sob a rodovia. Como os atropelamentos por automóveis e caminhões são a principal causa de morte dos linces, Simón e os seus colegas estão trabalhando com as autoridades para que essas tubulações sejam ampliadas e sirvam de passagem para os animais silvestres. Simón se agacha e mostra rastros de animais na areia. Uma das pegadas é de texugo, mas a outra é a impressão da pata de um lince! É bem provável que Helena tenha passado por ali, trotando, apenas alguns minutos antes.

Pergunto a Simón o que pensam os espanhóis a respeito desse felino nativo. Ele hesita. Todo mundo conhece o lince-ibérico, acaba por dizer. “É um emblema nacional, adorado por todos.”

Todavia, não ocorre o mesmo com a maioria dos parentes desse animal. Das 38 espécies de felídeo silvestre no mundo, 31 são tidas como de pequeno porte. Variando em tamanho desde o gato-leopardo-indiano, que pesa só 1,5 quilo, até o lince-euroasiático (Lynx lynx), de 20 quilos, esses felídeos são vistos em cinco continentes (as exceções são a Austrália e a Antártida), magnificamente bem adaptados a uma diversidade de áreas naturais e, cada vez mais, aos ambientes modificados pelos seres humanos – áreas desérticas, florestas úmidas, até parques urbanos. Lamentavelmente, esses membros menores da família dos felídeos terminam vivendo à sombra dos seus primos de grande porte: leões, tigres, leopardos, onças e outros. Essas espécies mais célebres ficam com a maior parte das iniciativas e dos recursos para conservação, mesmo que 12 dos 18 felídeos silvestres mais ameaçados sejam exatamente as espécies de menor porte.

Jim Sanderson, diretor de programas na organização Global Wildlife Conservation, estima que mais de 99% dos recursos gastos com felídeos silvestres desde 2009 acabaram destinados a onças, tigres e outras espécies de grande porte. Em consequência, muitos felinos pequenos são pouco estudados ou nem sequer estudados.

O gato-vermelho-de-bornéu (Catopuma badia), por exemplo, encontra-se apenas em seu hábitat nativo, as matas tropicais de Bornéu, e continua tão desconhecido para a ciência quanto no ano em que foi descoberto, em 1858. Já o gatomarmoreado (Pardofelis marmorata) é estudado em uma única fêmea na Tailândia. “Nem sequer sabemos do que se alimenta”, diz Sanderson.

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    Lince-ibérico (LYNX PARDINUS) – Este felídeo raro vem aos poucos se recuperando, à medida que os cientistas soltam espécimes criados em cativeiro e asseguram a proliferação de coelhos, o principal alimento dos linces. Fotografado no Zoológico e Aquário de Madri, Espanha.
    Foto de Joël Sartore
    Gato-de-pallas (OTOCOLOBUS MANUL) – A expressão mal-humorada tornou esta espécie da Ásia Central popular na internet. Ambientalistas esperam que a celebridade do felídeo possa ajudar na preservação do seu hábitat, hoje ameaçado por lavouras e outras atividades humanas. Fotografado no Zoológico e Aquário de Columbus, Ohio, EUA
    Foto de Joël Sartore

    Os felídeos de pequeno porte também sofrem com outra desvantagem: a tendência geral é que sejam vistos pelas pessoas como meras versões silvestres dos seus próprios animais de estimação. (O gato doméstico – considerado uma subespécie do gato-bravo, Felis silvestris – distinguiu-se dele no Crescente Fértil, uns 10 mil anos atrás.) Ninguém fica “impressionado” com os felinos pequenos tal como fica diante de animais mais exóticos, diz Alexander Sliwa, um dos curadores do Zoológico de Colônia, na Alemanha. “Isso só reforça essa situação em que pouco se conhece dos felinos menores. E, se você não tem nada o que dizer a respeito da biologia ou do modo de vida de um animal, as pessoas tampouco vão se interessar por ele.”

    Mas deveriam. Os felídeos de pequeno porte são maravilhas compactas da evolução, predadores de alto desempenho que alcançaram a sua melhor forma há milhões de anos e pouco mudaram desde então. O que lhes falta em tamanho é compensado em ousadia. O gato-de-patas-negras (Felis nigripes), por exemplo, é o menor felídeo da África, pesando menos de 2 quilos. Mas é conhecido como o “tigre de cupinzeiro”, pois vive em cupinzeiros abandonados e reage furiosamente toda vez que se vê ameaçado, chegando até a saltar no focinho de chacais bem maiores. O habilidoso gato-pescador (Prionailurus viverrinus), do sul da Ásia, é um habitante de charcos e pantanais, mas consegue se virar onde quer que haja peixe. No Centro de Colombo, no Sri Lanka, câmeras já flagraram um gato-pescador roubando uma carpa colorida de um tanque em um prédio de escritórios. Foi “um choque para todos nós”, diz a pesquisadora Anya Ratnayaka, do Programa Urbano de Preservação do Gato-Pescador. “Pois não há nenhum pântano perto daquele local.”

    Os felinos encontraram outras maneiras inteligentes de coexistência. No Suriname, Sanderson e colegas fotografaram cinco espécies partilhando a mesma floresta: onça-pintada, onça-parda, jaguatirica, gato-maracajá e jaguarundi. Tal coexistência é possível devido à “divisão do espaço e do tempo”, explica Sanderson. Cada animal tem o seu nicho, seja caçando no solo durante o dia, como o jaguarundi, seja caçando na copa das árvores à noite, como o gato-maracajá.

    Embora alguns desses animais sejam capazes de matar cabras e ovelhas, eles não constituem ameaça para os seres humanos. Pelo contrário, eles ajudam a manter o bom funcionamento dos ecossistemas e o controle de populações de presas – incluindo muitos roedores.

    Jaguarundis (HERPAILURUS YAGOUAROUNDI) – Com corpos compridos e orelhas pequenas, os jaguarundis parecem lontras. Graças ao enorme âmbito – partes do México, América Central e América do Sul – e por ser pouco visado por caçadores, a situação dessa espécie é considerada pouco preocupante. Fotografado no Centro de Felinos Bear Creek, Flórida, EUA.
    Photographed at Bear Creek Feline Center, Flórida

    DOS CINCO CONTINENTES palmilhados por felinos silvestres, a Ásia é aquele que mais tem a perder. Não só abriga a maior quantidade de espécies – 14 − como também ali estão as menos estudadas e mais ameaçadas. Grande parte das regiões florestadas do sudeste do continente foi desmatada para dar lugar ao avanço urbano ou a imensas plantações de palmeiras oleaginosas, cuja produção de óleo de dendê, usado na manufatura de alimentos, dobrou em termos mundiais desde 2000. Esse avanço tem consequências provavelmente devastadoras para o gato-de-cabeça-chata (Prionailurus planiceps) ou para o gato-pescador, os quais dependem normalmente das planícies úmidas para se alimentar de peixes.

    A difusão das plantações de palmeiras é de tal modo preocupante que o Parque dos Felinos, um zoológico nos arredores de Paris, passou a exibir dois carrinhos de supermercado – um deles repleto de produtos feitos com óleo de dendê e o outro com produtos sem esse ingrediente. Os itens em ambos os carrinhos – sorvetes, biscoitos, cereais matinais – têm basicamente a mesma aparência. “Não solicitamos doações em dinheiro às pessoas; tudo o que pedimos é que consumam menos produtos com esse óleo”, diz Aurélie Roudel, funcionária do parque de 71 hectares.

    Outra ameaça que paira sobre os pequenos felinos é o tráfico de animais silvestres. A China é um dos centros dessas atividades criminosas, com negociantes que vendem roupas e luvas feitas com a pele desses felinos. Na década de 1980, o país exportou centenas de milhares de peles de gato-leopardo, uma espécie distribuída por toda a Ásia. Embora a demanda por tais peles tenha caído, os gatos-leopardo continuam sendo caçados e abatidos por atacarem animais domésticos.

    Num úmido dia de junho, a maioria dos felinos residentes do zoo francês está recolhida aos abrigos, ao contrário de dois gatos-leopardo, que se movem de um lado para outro. Um dos felinos equilibra-se com destreza num tronco, lambendo a pata dianteira, e o outro mastiga folhas. Me vem à lembrança o meu gato, da raça maine coon.

    Mas os felídeos de pequeno porte são muito diferentes dos gatos domésticos, sobretudo porque estão sempre em movimento. Um exemplo é o gato-de-patas-negras, que percorre quase 30 quilômetros num dia e, de noite, ingere alimentos equivalentes a um quinto do seu peso corporal. Ao contrário do gato refestelado no sofá da sala, “ele não pode se dar ao luxo de ficar parado”.

    Gato-leopardo-indiano (PRIONAILURUS RUBIGINOSUS) – O menor dos pequenos felinos, o gato-leopardo-indiano, nativo da Índia e do Sri-Lanka, pesa menos de 1 quilo. Pouco se sabe sobre a espécie, mas perda de habitat, caça e hibridização com gatos-domésticos são ameaças. Fotografado no Zoológico Exmoor, Inglaterra.
    Foto de Joël Sartore
    Um lince-ibérico em cativeiro caça uma lebre no Centro de Reprodução La Olivilla, em Santa Elena, Espanha. Cada gato ganha uma lebre por dia para aprimorar suas habilidades de caça e prepará-los para uma uma eventual soltura na natureza.

    Isso também vale para os ambientalistas, que começaram a tirar algumas dessas espécies da obscuridade na expectativa de evitar a sua extinção. Em 2016, eles lançaram um esforço para estudo e conservação do gato-de-pallas, da Ásia Central – uma espécie em declínio, mas ainda ofuscada por um primo famoso de porte maior, o leopardo-das-neves. Esse felídeo peludo virou uma celebridade online devido a sua expressão mal-humorada e a maneira curiosa com que se move em seu hábitat montanhoso.

    Gato-dourado-africano (CARACAL AURATA) – ivendo nas florestas úmidas da África Central e Ocidental, corre perigo devido ao desmatamento e aos caçadores. Este macho com 7 anos de idade, Tigri, é talvez o único espécime em cativeiro. Fotografado no Parque Assango, Libreville, Gabão.
    Foto de Joël Sartore

    E no Parque Natural Sierra de Andújar, na Espanha, perto do local em que vivem Helena e os seus filhotes, houve nos últimos anos um bom crescimento do ecoturismo para observação do lince-ibérico, assim como das caçadas de coelho e de cervo, atividades tradicionais no sul do país. “Somos parceiros de negócios”, diz, com um sorriso, Luis Ramón Barrios Cáceres, dono do complexo hoteleiro de Los Pinos, referindo-se ao lince-ibérico. “São eles que pagam as contas.”

    O lince-ibérico é “uma espécie preciosa, pois é nativa da região”, diz Pedro López Fernández, da vizinha fazenda San Fernando. Nem todos os proprietários, porém, acham que os felídeos devam ser protegidos. Alguns se incomodam com a interferência governamental e não querem nem saber de linces em suas terras. Para López, no entanto, o lince é parte do patrimônio da Espanha, e cabe ao país garantir a sua sobrevivência.

    Gato-marmorado (PARDOFELIS MARMORATA) – Uma cauda longa provavelmente ajuda esse felino do tamanho de um gato doméstico a se equilibrar enquanto navega as florestas do Sudeste Asiático à noite. Pelo estilo de vida tão secreto, a espécie é uma das menos conhecidas.
    Foto de Joël Sartore

    No Centro de Reprodução La Olivilla, em Santa Elena, há cientistas que trabalham em tempo integral com esse objetivo. Diante de um conjunto de telas de computador, cuidadores registram o comportamento de 41 linces-ibéricos hora após hora, sete dias por semana. A veterinária do centro, María José Pérez, explica o laborioso esforço requerido para preparar os linces jovens antes de soltá-los no ambiente natural: a colocação de barreiras escuras ao redor dos cercados, a fim de que não vejam as pessoas; o suprimento de coelhos, através de tubos recobertos de vegetação, para a sua alimentação; o acionamento de buzinas para que se assustem e aprendam a temer os carros. E, em outra mesa, o cuidador Antonio Esteban seleciona um vídeo em tempo real no qual aparecem uma fêmea e os seus quatro filhotes deitados no chão. Algum dia esses animais vão ser cruciais para a sobrevivência da espécie. Agora, contudo, estão fazendo aquilo que os felinos costumam fazer muito bem: tirando uma soneca.

    Esta reportagem é parte da edição de fevereiro de 2017 da revista National Geographic Brasil. Publicada por ContentStuff.

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