Precisamos matar os animais para salvá-los?
A caça esportiva contribui para financiar a proteção de espécies. Para os críticos, porém, os benefícios alardeados não se comprovam, nem há justificativa moral para a matança de animais de grande porte.
Em busca de água, os elefantes iam surgindo em manadas enrugadas e se demoravam perto das depressões poeirentas no terreno. Com a temperatura em setembro alcançando os 40ºC ao meio-dia, os paquidermes se moviam pela beirada do deserto de Kalahari, na Namíbia, em uma reserva de fauna silvestre, Nyae Nyae, uma área protegida e mantida pela comunidade local, cerca de 2 800 membros da etnia San que ali vivem em condições inóspitas.
Os elefantes deixam um rastro de galhos quebrados e pilhas de excrementos mornos. Quando farejam o nosso cheiro, de suor mesclado ao aroma das gramíneas ressequidas pelo sol, eles irrompem em um ruidoso meio trote e somem de vista.
Mais tarde, outros se materializam no horizonte, à sombra das acácias. Embora fossem animais enormes, mal eram visíveis, e mesmo assim só para os olhos aguçados de um homem baixo e musculoso chamado Dam – um rastreador do povo San que estava na parte traseira do Land Rover.
“Olifante!”, exclamou com sotaque, debruçando-se para fora no lado direito do jipe e espreitando os rastros na areia. Bateu com a mão na porta e paramos com uma sacudida forte e abrupta. Dam saltou do veículo, examinou uma pegada de bordas corrugadas e com o interior marcado por concavidades menores. Aí acenou, e Felix Marnewecke, caçador profissional e guia desta expedição, saiu pela porta do lado do condutor. Robusto, corado e loiro, com 40 e poucos anos, não poderia ser uma figura mais estereotipada, ainda mais porque usava shorts e chapéu de feltro. Marnewecke ficou contemplando a pegada por um instante, com expressão irônica, e assentiu com uma inclinação da cabeça. A área desértica de Nyae Nyae não é só o lar das famílias San, mas também dos derradeiros e maiores elefantes que ainda restam no planeta vivendo em condições naturais. E aquela pegada era a prova.
Todos nós descemos do jipe, seguidos pelo rastreador que sempre chamam de Velho, de um aprendiz de rastreador, e de um outro san, que tinha a função de “guarda-caça”, ou seja, de assegurar que a caça fosse realizada de acordo com as normas e cotas da reserva. O último a enfrentar o calorão abafado foi o próprio cliente, um empresário americano, que abriu a porta do passageiro e tirou do bagageiro a sua arma, que pesava cinco quilos e meio: um rifle feito sob medida, de cano duplo e calibre 12, para munição .470 Nitro Express. Essas armas, que chegam a custar 200 mil dólares, são as prediletas dos caçadores de animais de grande porte devido ao seu “poder de parada” (stopping power, em inglês), ou seja, a capacidade de imobilizar e matar um animal de grande porte. Afinal, obter troféus de caça é o que trouxe para cá esse empresário. Um entusiástico caçador cujas aventuras já o levaram à Ásia Central para abater carneiros-de-marco-polo a 4 500 metros de altitude, e também à África atrás de um leopardo, agora estava de volta a este continente para incluir os elefantes entre os seus feitos.
Segundo Marnewecke, o preço atual de uma expedição de 14 dias, com o abate de um elefante, gira em torno de 80 mil dólares. O limite anual para caçadas desportivas em Nyae Nyae, totalizando no máximo cinco elefantes abatidos, proporciona uma renda expressiva para o povo San. Parte da taxa de abate segue diretamente para os membros da comunidade, assim como para um fundo de conservação da fauna silvestre na região. Quanto aos elefantes, o cliente leva as presas para casa, mas toda a carne do animal é consumida pelos San.
Marnewecke e o seu cliente – que pediu para permanecer anônimo, dada a natureza polêmica da caça aos elefantes – ergueram os rifles aos ombros e partiram atrás de Dam, que saiu em disparada como uma lebre. Virando-se para trás, enquanto eu tropeçava tentando acompanhá-los, Marnewecke comentou: “Juro que não tem outro rastreador tão bom na África. Mesmo que tiver de seguir assim por 30 milhas [48 quilômetros], ele nunca desiste”.
Desde Charles Darwin e John James Audubon, passando por Theodore Roosevelt, até Ernest Hemingway, os caçadores mais conscientes há muito se consideram, antes de tudo, naturalistas e conservacionistas, comprometidos com a sustentabilidade das populações de animais e a preservação das áreas de caça. Esse vínculo tornou-se inextricável. Todos os anos, centenas de milhões de dólares arrecadados com impostos federais nos Estados Unidos financiam diretamente o manejo da fauna silvestre e atividades relacionadas. E qualquer pessoa que tenha o freezer repleto de carne de veado provavelmente vai lhe dizer que o ato de caçar na natureza o que se come no jantar é algo bem mais benévolo do que comprar no supermercado uma peça de carne embrulhada em plástico e resultante da criação industrial de animais.
No entanto, a caça desportiva na atualidade, sobretudo dos cinco grandes animais da África (elefante, leão, leopardo, rinoceronte e búfalo-africano), levanta um conjunto mais amplo de questões morais e financeiras. A matança recreativa de animais em risco de extinção na natureza desperta uma oposição feroz, ainda mais quando o animal tem até nome, como no caso do leão Cecil. De acordo com as estimativas dos biólogos, as perdas totais de mamíferos de grande porte em áreas protegidas do continente africano chegaram a 60% entre 1970 e 2005. À medida que as populações desses animais se reduzem cada vez mais devido ao avanço das atividades humanas, às mudanças climáticas e aos abates criminosos generalizados, há muitos caçadores – como, por exemplo, o empresário americano em Nyae Nyae – que argumentam que o abate, com regras rígidas e em troca do pagamento de taxas elevadas, de elefantes machos já idosos constitui uma forma sustentável de proteção tanto da espécie como do hábitat.
Continuamos seguindo na esteira das pegadas. De tempos em tempos, Dam volta atrás, circulando em meio ao pó, até que reduzimos o avanço para um ritmo muito lento e cuidadoso. E então, ao chegar no alto de um morrinho, nós os vemos afinal, os espécimes de Loxodonta africana – e pareciam ser três machos, mastigando folhas e relva. Marnewecke tateou em busca dos binóculos, e o cliente americano empunhou o rifle. Tudo se concentra agora em um único ponto nervoso. Os elefantes-africanos chegam a viver até 60 ou 70 anos, e aqueles que exibem as presas maiores costumam ter mais de 45 anos de idade. As presas são classificadas por seu peso, e todo animal com presas que parecem ter mais de 23 quilos (50 libras) é considerado um alvo legítimo pelos caçadores. O empresário americano estava esperando topar com um elefante cujas presas pesassem mais de 32 quilos − mas aquelas do trio avistado eram pequenas demais. Marnewecke então decidiu que não valia a pena, deu meia volta e caminhou de volta ao Land Rover. Ninguém parecia decepcionado: só o fato de termos nos aproximado de animais tão magníficos já havia sido uma emoção e tanto.
“O disparo é só a etapa final de uma caçada de elefantes”, conta Marnewecke. “Eu me sinto péssimo quando os elefantes são mortos, mas são eles que pagam pela conservação dos outros 2 500 espécimes que vivem por aqui. A caça desportiva é o melhor modelo econômico hoje existente na África.” Eu iria constatar em seguida que este argumento é tido como insustentável por outros caçadores e, também, por uma multidão de ativistas e biólogos. “No final, talvez seja a salvação desta região – e também dos elefantes.” Rodeado pelo calor e a poeira do Kalahari naquele dia ensolarado, dando as costas para os elefantes, não pude deixar de me perguntar: mas será assim mesmo? Pode a morte de cinco elefantes salvar outros 2 500? Ou, abordando a questão de outro modo: por que é preciso matar os animais?
Visto de um avião, o continente africano lembra uma miragem, com campinas verdejantes e dramáticos vales de fratura, desertos imensos e rios caudalosos, vastas extensões selvagens que parecem ser de ninguém, despovoadas, ostensivamente esquecidas de tudo e de todos. De um relance, ele pode se tornar um repositório de todas as ideias que nos ocorram sobre a natureza em seu estado original. Na realidade, porém, hoje não resta no continente nenhum trecho não reivindicado, que não esteja demarcado, explorado economicamente ou não seja motivo de disputas. Os animais que perambulam pelo interior africano foram convertidos em mercadorias − como parte de um novo tipo de consumismo −, foram negociados e vendidos, suas características exploradas ao máximo e contrastados uns com os outros, sua sobrevivência uma questão dependente da demanda, dos caprichos e dos cálculos humanos. Os animais de grande porte são, para a África, um recurso tal como o petróleo – e também um dia vão acabar.
A caça desportiva, tendo como objetivo a obtenção de troféus – o abate de grandes animais para extrair-lhes chifres, presas, peles, ou cabeças que depois são empalhadas – é atualmente um setor movido pela busca de lucros, com movimentação anual de cerca de 1 bilhão de dólares, em alguns casos sob a supervisão de governos corruptos. Na África subsaariana, muitos países permitem esse tipo de caça, com graus variados de transparência e controle, fixando cotas anuais concebidas para refletir a situação das espécies, e estabelecendo controles para preservar as populações mais vulneráveis. A África do Sul, por exemplo, hoje não permite mais a caça de leopardos. Desde 1977, o Quênia proíbe todo o tipo de caça desportiva. E Botsuana, um país de fauna silvestre comparativamente abundante, implantou em 2014 um veto temporário à caça em áreas controladas pelo governo.
No passado, a África dava a impressão de ter “um suprimento inesgotável de natureza”, comenta o biólogo americano Craig Packer, um especialista em leões que viveu e trabalhou no continente por mais de quatro décadas. No entanto, diz ele, desde 10 mil metros de altitude, é óbvio que os hábitats naturais estão encolhendo. “Os leões estão de fato se tornando uma espécie ameaçada, e os caçadores não deveriam abater esses animais por esporte, a menos que possam fornecer indícios conclusivos de que isso tem um efeito salutar na conservação da espécie.”
Os biólogos recorrem à mesma argumentação para se oporem à caça de outros animais de grande porte, entre os quais os elefantes, cujas populações diminuíram acentuadamente em todo o continente. A demanda por chifres de rinocerontes, presas de elefantes e ossos de leões, alimentada sobretudo pelos mercados asiáticos, desencadeou uma catastrófica onda de morticínios criminosos. Por outro lado, trata-se de uma questão complexa, pois, em alguns locais, populações específicas, como no caso dos elefantes de Nyae Nyae, estão prosperando em uma situação na qual há caça desportiva.
“Se a gente acabar com as reservas de caça na Namíbia”, comenta Packer, “provavelmente elimina também toda a fauna silvestre e só vai ter rebanhos de gado.” Na opinião de Packer, o salvamento de um animal individual não é o mais importante: crucial mesmo é proteger, como um todo, as populações geneticamente viáveis. “Não sou contra a caça, mas é preciso chegar a um consenso”, diz. Na estimativa dele, contudo, tal consenso não fica exatamente entre as posições opostas, pois está convencido de que a caça desportiva tem um valor apenas marginal no esforço mais amplo de conservação na África.
Por outro lado, caçadores e autoridades governamentais costumam citar uma polêmica estimativa da Safari Club International Foundation, uma organização pró-caça cujo objetivo declarado é promover a conservação e a educação, segundo a qual os cerca de 18 mil caçadores esportivos que vão ao sul e ao leste da África todos os anos contribuem com 436 milhões de dólares para o PIB da região. De acordo com a Humane Society International, porém, o valor para essas regiões não passaria de 132 milhões de dólares, ou 0,03% do PIB.
Em 2013, em uma coluna no New York Times, o responsável pela fauna silvestre da Tanzânia, Alexander Songorwa, afirmou que os caçadores que participam de safáris de 21 dias pagaram individualmente taxas no valor de até 10 mil dólares, injetando 75 milhões de dólares na economia do país entre 2008 e 2011. Packer, por sua vez, lembra que os 300 mil quilômetros quadrados de áreas de caça na Tanzânia necessitam de investimentos anuais da ordem de 600 milhões de dólares, e que “não dá para conseguir isto abatendo leões a 10 mil dólares por cabeça”.
Para alguns, o debate em torno da caça não passa de uma tentativa, por parte dos ambientalistas ocidentais, de impor à África a sua agenda – uma forma de neocolonialismo, na opinião de Marnewecke. “De onde alguém tira o direito de, sentado em outro continente, vir aqui dizer como devemos fazer o manejo da nossa fauna silvestre?” Os caçadores insistem que, com todos os operadores pagando para atuar nas reservas e os caçadores pagando taxas sobre cada animal abatido, o setor de fato vem realizando contribuições financeiras significativas para o continente e a conservação dos hábitats – ao passo que os opositores da caça se limitam a fazer barulho.
Quanto ao destino das taxas pagas pelos caçadores, no melhor dos casos é difícil determinar o que acontece – e, no caso das cleptocracias, impossível. Seja como for, diz Packer, quanto ao financiamento das iniciativas de proteção aos leões, “a quantidade de recursos gerada pela caça desportiva é tão insatisfatória que não surpreende nada que, a despeito da caça ser permitida nesses países, tenha ocorrido uma queda brutal na população de leões”. De acordo com a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês), que faz o monitoramento das populações animais, a quantidade de leões nos cinco grupos populacionais existentes na Tanzânia caiu nada menos que dois terços de 1993 a 2014.
No entanto, os caçadores insistem que ajudaram no financiamento de incontáveis recursos – desde postos de saúde, escolas e poços d’água até assistência prática contra caçadores ilegais −, ao mesmo tempo que teriam um impacto menor no ambiente do que a alternativa frequentemente citada à matança dos animais: a dos safáris fotográficos. De acordo com a Organização Mundial do Turismo, da ONU, 35,4 milhões de pessoas visitaram a África subsaariana em 2015, gastando 24,5 bilhões de dólares. E excursões concebidas para uma clientela mais exigente – que faz questão de banhos quentes, lautas refeições e coquetéis no fim do dia – requerem mais infraestrutura e equipamentos, e por vezes até uma frota de veículos.
O grande perigo, na concepção de muitos caçadores, é que um volume excessivo de turistas acabe por inviabilizar a própria experiência que os leva à região. “O Serengeti é deslumbrante”, diz Natasha Illum-Berg, uma caçadora profissional de búfalos que nasceu na Suécia e hoje vive na Tanzânia, e que, tal como Marnewecke, proporciona aos seus clientes “experiências de caça” e troféus. “A cratera Ngorongoro é algo milagroso. Mas todos esses parques nacionais estão repletos de vans com gente que faz turismo fotográfico – é incrível”, diz ela, ressaltando que as vans têm um impacto acentuado nessas áreas naturais famosas. “Mas e quanto às outras áreas?”, indaga. “Quanta gente já foi à região na qual costumo trabalhar, com seus 1300 quilômetros quadrados? Neste ano, não mais do que 20 pessoas.” Sem a caça desportiva, argumenta Illum-Berg, não haveria como coibir os caçadores ilegais, nem como viabilizar qualquer tipo de manejo. “É o que sempre digo: basta que apresentem uma ideia melhor do que a caça, e que seja uma ideia sustentável. Pois, no final, a pergunta sempre é: quem vai pagar a conta?”
O indício mais antigo de um elefante morto por mãos humanas remonta a 14 mil anos atrás, e veio de um pântano de argila azulada na Sibéria. A coluna vertebral de um mamute-lanoso, achada na confluência dos rios Ob e Irtysh, parece ter sido penetrada por uma arma confeccionada por mãos humanas, deixando resquícios de pedra em forma de lascas no interior de uma das vértebras. As presas desse animal, disso temos certeza, não acabaram em uma sala de troféus na caverna do caçador.
No entanto, a caça é mais do que uma compensação inevitável na luta pela sobrevivência. A certa altura no desenvolvimento da nossa consciência, o resultado das caçadas passou a se refletir na posição social, virilidade e poder dos caçadores. Painéis assírios esculpidos em 650 a.C. mostram leões libertados de jaulas para serem trucidados por um rei conduzindo um carro de combate. Para os massai, na África, há muito a morte de um leão faz parte dos ritos de iniciação.
Com o surgimento de armas mais eficientes, a caça também se tornou uma atividade desportiva, com as suas hierarquias de classe, microculturas e eventuais exemplos flagrantes de desperdício. Em registros de 1790, referentes ao condado Snyder, no estado americano da Pensilvânia, dois caçadores abateram mais de mil animais, incluindo ursos-negros, pumas, linces-vermelhos, lobos, raposas, bisões, cervos, veados, carcajus, assim como milhares de outros animais menores, aproveitando alguns deles e queimando a maioria das carcaças em fogueiras.
Os teólogos foram os primeiros a criticar tais matanças perdulárias. No final do século 18, um caçador britânico anônimo publicou um livro, intitulado O Manual do Esportista − Ensaio sobre a Caça, propondo regras justas e “orientações para os cavalheiros” nos campos e nas florestas, que incluíam a limitação da quantidade de animais abatidos. Essas regras foram ampliadas e aperfeiçoadas no decorrer do século seguinte. Em 1887, Theodore Roosevelt (que depois seria presidente dos Estados Unidos) fundou o Boone and Crockett Club, reunindo importantes caçadores americanos que estavam empenhados em preservar áreas intocadas do país e foram cruciais para a criação do sistema de parques nacionais dos Estados Unidos.
Em 1934, no Hotel Norfolk, em Nairóbi, no Quênia, um grupo de caçadores ocidentais fundou a Associação de Caçadores Profissionais da África Oriental, que defendia uma espécie de código de honra e lutou pela adoção de leis e regulamentos, incluindo a proibição de abater quase todas as fêmeas, assim como animais em cacimbas ou próximos dos veículos. Contudo, ao mesmo tempo que se empenhavam para preservar as áreas de caça, os membros da associação também foram responsáveis por eliminar enormes quantidades de animais no continente africano. Atualmente, a tecnologia associada à caça deu um salto qualitativo, com o uso de drones, vídeos das caçadas e rifles de grande potência equipados com miras a laser.
Por outro lado, as “fotos de caça” – imagens em que os caçadores aparecem ao lado dos animais abatidos – também se propagam pelas redes sociais e provocam revolta entre os ativistas de direitos animais e o público em geral. Em junho de 2015, as pessoas ficaram chocadas quando um dentista de Minneapolis, Walter Palmer, caçou e matou Cecil, um leão famoso em Zimbábue. E a polêmica ressurgiu, em julho de 2017, quando o filho de Cecil, Xanda, foi morto durante um safári de caça legal.
Com mais da metade da população mundial vivendo em cidades, o relacionamento com a natureza está se tornando cada vez mais divorciado da nossa realidade cotidiana. Hoje, cada vez menos nos vemos como parte da natureza, dos campos e das matas tropicais – e cada vez mais como consumidores desse mundo. No entanto, ao ingerirmos carne e usarmos produtos de couro, também somos caçadores em certa medida.
No interior da comunidade de caçadores, a nossa mentalidade de abocanhar tudo e depressa – a certeza de que temos o direito de consumir tudo – começou a alcançar níveis preocupantes. Na tentativa de evitar as demoras e despesas de um safári na África, no qual costumam ser preservadas as regras de uma caçada justa, alguns caçadores vêm preferindo um tipo artificial de caça – a matança em áreas confinadas de animais muitas vezes criados de propósito para isso, a chamada “caça em conserva”, ou “caça enlatada”, da expressão em inglês canned hunting −, assim como a caça com iscas, o arrebanhamento de animais por meio de helicópteros, ou os disparos feitos de dentro dos Land Cruisers. Na Tanzânia, circularam relatos de caçadores estrangeiros abatendo animais, incluindo fêmeas grávidas, com fuzis automáticos AK-47. Em uma reserva de caça denominada Loliondo, que o governo tanzaniano arrendou por longo prazo a autoridades dos Emirados Árabes Unidos, os massai que ali vivem contam de aviões a jato de carga que decolam com todo o tipo de animais, vivos e mortos. Em artigo recente na revista Biology Letters, cientistas sociais descrevem uma geração de caçadores acostumados a se vangloriar de seus feitos, exibindo nas redes sociais fotos em que aparecem junto aos animais abatidos, às vezes em poses que menosprezam a dignidade do animal que acabaram de matar.
Na África do Sul, que abriga cerca de 2 mil leões selvagens, esse tipo desregrado de caça ao leão tornou-se um negócio de mais de 100 milhões de dólares, com cerca de 200 locais onde são criados cerca de 6 mil felinos de grande porte especialmente para serem mortos em condições facilitadas. De acordo com o sul-africano Ian Michler, um fotógrafo e organizador de safáris que investigou o setor de “caça enlatada” para o documentário Blood Lions, de 2015, por vezes os animais crescem enjaulados e se reproduzem em condições deploráveis. Os filhotes são separados das mães e levados a zoológicos onde servem de atração para crianças. Quando chegam à idade adulta, muitos dos machos são abatidos a tiros, por taxas de “caça” bem mais reduzidas do que aquelas pagas em um safári normal de 21 dias (de 5 mil a 15 mil dólares, em vez de 50 mil dólares ou mais). E é praticamente certo que o caçador vá para casa com o seu troféu. “É estarrecedor”, comenta Michler. “É algo perverso.”
Essa caça confinada tem ainda outro efeito deletério. Enquanto os caçadores voltam para casa felizes com a pele e a cabeça do animal, e as garras e os dentes são vendidos às lojas para turistas em Nairóbi e Zanzibar, atualmente a maior demanda é pelos ossos. Estes são exportados para a Ásia, onde entram na composição seja de remédios tradicionais, seja de “vinho de osso de tigre”, produzido com ossos moídos de animais misturados a ervas chinesas, e vendido por preços elevados como tônico e afrodisíaco. Neste ano, as autoridades sul-africanas autorizaram a exportação de 800 esqueletos de leões, e a grande preocupação de biólogos, conservacionistas e defensores dos direitos dos animais é que, ao legitimar e permitir tal comércio, o país incentive tanto a demanda por ossos de leões, como o morticínio dos 20 mil e tantos leões selvagens que restam no continente africano.
Na verdade, alguns dos críticos mais veementes contra essas práticas são os próprios caçadores. “Se não conseguirmos convencer a maioria das pessoas de que a caça é moralmente aceitável”, afirma Kai-Uwe Denker, um renomado caçador profissional na Namíbia, “não nos resta nenhum futuro.” Diante da péssima publicidade e do péssimo comportamento, alguns caçadores tiveram de recorrer a um argumento econômico – o de que a presença deles na África traz empregos, e que é uma estratégia viável de combate à pobreza. Mas não é essa a opinião de Denker. “Vejo um perigo muito grande quando se valoriza só o lado financeiro. A subsistência, a geração de renda, a criação de empregos – tudo isso é secundário. Não dá para justificar algo imoral com o apelo ao dinheiro.”
Ao conhecer Denker em um vale nos montes Erongo, onde vive a 40 quilômetros da civilização em uma casa que construiu, ele lamentou a intrusão humana na paisagem africana. Segundo Denker, a caça, quando realizada de forma apropriada, permite que você estabeleça “uma conversa com a sua própria morte”. Enquanto conversávamos na varanda ensombrecida, o sol ressaltou um esbranquiçado crânio de elefante ali perto, e o vento sacudiu os galhos da acácia, levando para longe uma certa estagnação do meio-dia que às vezes toma conta do deserto. O tempo ali parecia pré-histórico. Alto e magro, vestindo uma camisa rasgada e calções curtos, Denker é famoso por caminhar até 65 quilômetros por dia durante uma caçada. E também por aderir a um rígido conjunto de princípios, entre os quais está a caça de animais, como o elefante e o cudo, que perambulam livres em seu hábitat tradicional, abatendo apenas os espécimes mais velhos e não reprodutores, independentemente de propiciarem ou não troféus de caça.
“Muitos dos críticos consideram a caça como algo pervertido”, disse Denker. “Mas a caça em si não tem nada de perverso. É algo que está em nossos genes. Se a caça é imoral”, prosseguiu, “eu desisto dela de imediato. Mas vai ser o fim da natureza.”
Se paga, vale a pena. Esta é uma frase que ouvi muitas vezes, em incontáveis discussões sobre a conservação na África, em parte para descrever de que modo o dinheiro alterou as concepções dos moradores rurais no que se refere à valorização dos animais de grande porte. Com demasiada frequência, as pessoas viram os elefantes destruindo as suas plantações, e algumas conheceram até mesmo a dor de perder filhos para um leão furtivo e esfomeado. Não há nessas áreas nenhuma mitificação ou fantasia em relação a esses animais, nenhum esforço para levantar fundos com base na difusão de imagens fofas: ali um leopardo é um assassino, e o rinoceronte, um destruidor de plantações. Para se protegerem desses inimigos, os moradores dos vilarejos muitas vezes matam a tiros ou com veneno esses invasores, sem demonstrar um pingo de sentimentalismo. Todavia, o que se argumenta é que, se esses animais resultarem em benefícios financeiros para uma comunidade, esta vai se empenhar na conservação e proteção deles.
Isso é algo que testemunhei em primeira mão. Minha estada no Kalahari coincidiu com a contagem anual dos animais em Nyae Nyae, durante a qual 50 e tantos sans ficam acampados três noites perto de várias cacimbas, tentando estimar a quantidade de animais existentes naquela área de 9 mil quilômetros quadrados de areia, mato rasteiro e baobás.
Por mais frágil que seja esse ambiente, é possível considerar Nyae Nyae como uma história de sucesso relativo, em parte porque as cotas de caça foram metodicamente monitoradas e elevadas ao longo dos anos. Houve momentos em que a criação de gado chegou a ameaçar a reserva, mas os animais de grande porte retornaram, e o cardápio de presas acessíveis aos caçadores hoje inclui leopardos, cudos e gnus, que são abatidos em troca do pagamento de taxas estabelecidas por uma comissão de manejo constituída por cinco membros da reserva. Os lucros são partilhados por toda a comunidade: no ano passado, em Nyae Nyae, cada indivíduo com mais de 18 anos recebeu cerca de 70 dólares. “Nós temos o suficiente”, contou-me o chefe Bobo Tsamkxao, diante da sua casa em ruínas, com as suas esposas sentadas lado a lado em meio às crianças e à sujeira. O esquema também prevê que os caçadores profissionais contratem e treinem os moradores locais, e contribuam para os projetos de desenvolvimento como escolas e postos de saúde.
Nyae Nyae foi a primeira reserva de caça, sob administração da comunidade local, a ser criada na Namíbia, em 1998. A cada cinco anos, a reserva é objeto de um leilão, no qual os caçadores profissionais fazem ofertas ao povo San com o intuito de arrematar o direito de atuação na área. No ano passado, o lance vencedor foi superior a 400 mil dólares, um valor devido em grande parte ao fato de os elefantes terem se tornado tão grandes e valiosos. A fim de recuperar esse dinheiro, cobrir as despesas e obter lucros, os operadores vendem sáfaris de caça aos clientes. Muitos atuam em mais de uma reserva; alguns se juntam para controlar pequenos feudos.
Quando lá estive, em setembro de 2016, Marnewecke acabara de saber que fora vencido no leilão e perderia o direito de atuar em Nyae Nyae após aquela temporada. “Vou sentir saudade dos sans”, comentou, mas não ficaria sem trabalho: havia outra reserva ao norte para mantê-lo ocupado. O que mais o preocupava era a fragilidade de Nyae Nyae, e a possibilidade de pessoas irresponsáveis ali introduzirem facilidades prejudiciais – como abrir novos caminhos pela reserva e, com isso, colocando em risco o seu equilíbrio.
Enquanto a Namíbia transferiu o manejo da fauna silvestre aos moradores locais, autoridades de outros países, como a Tanzânia, adotaram uma solução oposta, assumindo diretamente a propriedade e o arrendamento das áreas de caça. Para os críticos, nenhum país deveria se imiscuir no negócio de vender e lucrar com animais mortos. Quando os cofres públicos ficam vazios e faltam recursos, dizem eles, as cotas de caça são elevadas sem a menor consideração pelas dimensões das populações animais. E naquelas áreas de caça em que os recursos não foram reinvestidos, simplesmente não há mais fauna silvestre a ser caçada. Talvez esteja aí a explicação para o fato de 40% das reservas delimitadas na Tanzânia terem ficado sem animais de caça nas últimas décadas. Um vídeo promocional que apareceu em 2014 mostra uma empresa de safáris, a Green Mile Safari, promovendo uma perturbadora expedição para caçadores dos Emirados Árabes Unidos. O ministro do Turismo e dos Recursos Naturais da Tanzânia reconheceu que o grupo transgrediu diversas leis quando, entre outras coisas, disparou fuzis automáticos, abateu fêmeas e filhotes, e permitiu que um menor participasse da caçada. Em consequência, o governo proibiu que a Green Mile realizasse outros safáris no país em 2014. No ano passado, porém, a permissão de funcionamento da empresa foi renovada, em meio a acusações de corrupção. Nenhuma prisão foi feita, e a Green Mile alega que o responsável foi um dos guias.
No ecossistema da Reserva de Caça Selous, um valorizado destino para a caça desportiva, levantamentos aéreos estimam uma população de elefantes em torno de 15 mil espécimes, ao passo que em 2009 chegavam talvez a 50 mil animais. “Por que a reserva Selous virou um campo de extermínio?”, pergunta a cientista Katarzyna Nowak, uma especialista em conservação vinculada à Universidade do Estado Livre, em Qwaqwa, na África do Sul. “Se os caçadores estão vindo de todos os cantos do mundo, e o dinheiro arrecadado com taxas vem sendo usado na própria reserva, para conservação e combate à caça ilegal, onde foram parar todos os elefantes?”
Para Craig Packer, a conservação da fauna silvestre na África deve ser vista com pragmatismo: se os caçadores estão abatendo leões “por um milhão de dólares e este dinheiro por leão está indo diretamente para o manejo, então as bases são sólidas. Mas, na verdade, os leões são mortos por dezenas de milhares de dólares, e muito pouco vai para a conservação.” Com 2 bilhões de dólares por ano seria possível salvar e proteger a fauna silvestre nos parques nacionais africanos, avalia Packer. Mas esses recursos teriam de vir de parceiros internacionais como o Banco Mundial, os ecofilantropistas e as organizações não-governamentais.
Alguns caçadores desportivos dizem que não é justo que sejam culpabilizados. Seja o que for que se ache desse tipo de caça, não são eles que estabelecem o valor das taxas ou que determinam as cotas. Tampouco são responsáveis pela corrupção endêmica em alguns países, mesmo que indiretamente contribuam para isto. Outros alegam que partilham da preocupação dos ambientalistas com o colapso dos hábitats e a queda das populações. Segundo Kevin Reid, proprietário no Texas de uma fazenda de criação de animais para serem caçados, ele cria espécies africanas ameaçadas não só para o proveito de caçadores desportivos, mas também para criar “um repositório de animais”, entre os quais os órix e os rinocerontes-brancos, de modo a possibilitar o repovoamento da África quando os atuais problemas estiverem solucionados. “Estamos tentando reverter a extinção”, diz Reid. Em mais uma ironia dessa questão, contudo, a quase extinção dos elefantes, rinocerontes e leões africanos é o hoje o resultado do uso dos rifles de caça.
Talvez, então, tudo possa ser resumido a outro conjunto de questões: à luz daquilo que nos tornamos enquanto espécie, que forma nova está assumindo a natureza, e quais as novas regras que ali poderiam ser praticadas? Temos o dever, em relação ao mundo natural que tanto devastamos, de tratá-lo de outro modo – menos voraz e mais generoso? Não terá chegado o momento de interromper a matança de populações cada vez menores por motivos de diversão e prestígio social? Ou, o que talvez seja mais difícil de considerar: serão os troféus de caça tudo o que um dia vai restar da natureza selvagem que conhecemos?
No 12o dia da caça ao elefante em Nyae Nyae, sob o calor cada vez mais intenso, o rastreador Dam identifica as marcas deixadas por três machos que se moviam juntos. Assim que avistam os elefantes a mais de mil metros, Marnewecke e o seu cliente se dão conta de que eram enormes e começam a se aproximar deles na direção em que sopra o vento a fim de não serem notados pelos animais. Dois dos machos estavam diante deles, mas o terceiro, maior e mais velho, mantinha-se separado, seguindo atrás dos outros. Por isso os caçadores vão se esgueirando em torno dos primeiros e afinal chegam bem perto do último no momento em que este se dirige a uma moita de arbustos. O empresário americano então se abaixa num dos lados da moita enquanto o velho macho alimenta-se no outro lado, sem se dar conta de nada.
A morte de um velho macho como esse vai contribuir de algum modo para salvar todos os outros elefantes de Nyae Nyae?
Os velhos machos, segundo a bióloga Caitlin O’Connell, uma pesquisadora interessada no modo como os elefantes se comunicam, são uma fonte de sabedoria, decidindo em que momento e em que direção a manada vai se mover em busca de água, e impondo ordem na comunidade dos paquidermes. “Ao contrário do que se diz, os elefantes machos são animais muito sociais”, conta ela. “Eles se movem em grupos de até 15 animais, preservando uma hierarquia rígida. Os machos mais velhos têm um impacto regulador muito importante na manada, e exercem uma influência emocional e social nos machos mais jovens.” Estes animais jovens, quando estão no período de must − um estado de muita agressividade no qual os níveis de testosterona podem ser 10 vezes maiores que o normal − têm mais probabilidade de brigar uns com os outros sempre que um macho mais velho está ausente.
A 15 metros de distância, o caçador consegue distinguir todas as rugas que recobrem o elefante. Então faz mira com o rifle de cano duplo e coronha de prata entalhada a mão − e alveja o coração do animal. O elefante se vira e começa a correr, caindo 30 metros depois. O caçador então faz outro disparo, agora no crânio, e tudo acaba. Cada uma das presas pesava mais de 32 quilos. Seis horas depois, os san haviam limpado a carcaça, levando para os seus familiares quase 3 toneladas de carne.
Dois dias depois, o grupo topou com outro macho de grande porte. O caçador dispara um tiro e derruba o animal – mas aí um outro macho avança, e ele e Marnewecke saíram correndo por quase um quilômetro antes de o elefante deixá-los em paz. Em seguida todo o processo se repetiu: a remoção da pele, a retirada da carne, a alimentação das famílias. Com este elefante, completou-se a cota anual de Marnewecke. O seu cliente voltou para casa; as presas dos dois elefantes seriam enviadas depois, para serem exibidas em sua sala de troféus nos Estados Unidos.
Fiquei pensando sobre essas presas nas semanas seguintes, agora transformadas em possessões, símbolos venerados de uma façanha desoladora. Elas são tudo o que restou de seres sensíveis de 7 mil quilos. O que me leva ao chefe San, Bobo Tsamkxao, e suas esposas e filhos – e como ele e outros na comunidade iriam se alimentar desses animais. E pensei também que iriam receber dinheiro, ao menos indiretamente, desses animais. Ainda assim algo ainda me parecia fora de prumo: o fato de alguém pagar para matar um animal que iria alimentar os San ou contribuir para a conservação da reserva de Nyae Nyae. Mesmo que a caça esteja gravada em nossos genes, como disse Denker, resta uma questão essencial: há justificativa moral para se matar um animal ameaçado de extinção nessa altura da história?
Depois de os caçadores terem partido, a manada retomou a sua busca de água, desfrutando da paz temporária, sem saber que na temporada seguinte viria outro grupo de caçadores. Só nos resta imaginar esses elefantes, como sombras perambulando por toda essa imensidão contestada, alguns já carregando as etiquetas de preço, ali diante de nós como aparições assombrosas.
Michael Paterniti, colaborador da New York Times Magazine e correspondente da revista GQ, está preparando um livro sobre o polo Norte. David Chancellor dedicou anos à documentação fotográfica do complexo relacionamento entre caçadores e presas. Este é o seu primeiro ensaio para a National Geographic.