Souvenires de conchas estão destruindo animais marinhos protegidos

Além de cruel, a indústria da venda de conchas é ilegal para diversas espécies, e coloca em risco a fauna marinha.

Por Tina Deines
Publicado 19 de jul. de 2018, 16:07 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
A coleta de moluscos para artes e souvenires é uma indústria de grande escala que envolve ...
A coleta de moluscos para artes e souvenires é uma indústria de grande escala que envolve muitas espécies. Esses ranelídeos e cassídeos estão à venda em uma barraca de souvenires em Turks and Caicos.
Foto de Mike Theiss, National Geographic Creative

Na pequena cidade costeira de Kanyakumari, no sul da Índia, montanhas de conchas de molusco recém colhidas – com animais vivos ainda dentro – secam perto de uma praia ensolarada. O próximo passo para essas conchas: serão mergulhadas por algumas horas em cubas de óleo e ácido para limpá-las. Qualquer resto de carne ou crescimento é raspado da concha à mão por um dos vários trabalhadores locais, e depois elas são mergulhadas no óleo de novo. Depois de um polimento final, muitas são enviadas para artesãos em cidades próximas que fazem joias e outras lembranças para vender para turistas. As conchas remanescentes são destinadas para outras partes da Índia ou para outros países.

Para muitas das espécies encontradas aqui, essa indústria é ilegal na lei indiana.

Além disso, diz Amey Bansod, que testemunhou a coleta e processamento de moluscos em Kanyakuari em primeira mão em 2014, é cruel porque “as conchas ainda estão vivas.”

Bansod era um estudante de graduação quando visitou Kanyakumari para o projeto de sua tese, que começou como uma investigação sobre a subsistência dos artesãos de conchas e se transformou no que ele chama de “a base para um movimento contra a exploração e destruição negligente da vida marinha”.

Essas conchas foram trazidas para um local de processamento na Índia para serem limpas, secas e ...
Essas conchas foram trazidas para um local de processamento na Índia para serem limpas, secas e lustradas.
Foto de Amey Bansod

Bansod esperava falar com alguns artesãos e aprender sobre seu trabalho, mas ficou chocado com o que viu. Um trabalhador da fábrica lhe mostrou o centro de processamento e um “galpão aberto gigantesco” com portões altos e segurança. “Assim que abrimos os portões, eu vi caminhões – um atrás do outro, cheios e conchas, até onde eu conseguia enxergar – e isso mudou minha perspectiva”, diz ele. “Foi quando entendi a escala dessa indústria”.

Um trabalhador lhe disse que essa fábrica processa de 30 a 100 toneladas de conchas por mês, e, Bansod diz, várias outras fábricas existem no sul da Índia. As dúzias de espécies de conchas que vão de lambis, uma concha curva com protrusões compridas que lembram pernas de aranha, até a green turban, com suas camadas verticais em verde esmeralda, branco e marrom. Ambas as espécies são listadas no India’s Wildlife Protection Act e, logo, é ilegal coletá-las no país.

De acordo com Bansod, as conchas são embaladas por quilo e vendidas a artesãos como material para souvenires e outros produtos feitos à mão. A rede de fornecimento varia de uma cidade para outra. Por exemplo, conchas podem ir de uma fábrica em Kanyakumari para a casa ou loja de um artesão próximo. No caso de cidades menos turísticas, como Rameswaram, diz ele, fábricas de processamento maiores mandam suas conchas para intermediários que as vendem para artesãos em lugares como Kanyakumari. Conchas de Rameswaram também são exportadas para outros países ou para cidades indianas maiores como Vishakhapatnam e Bombaim.

Escala global

Pelo menos 50 mil espécies de moluscos habitam a Terra. Enquanto alguns são capturados por sua carne, outros – como o Nautilus pompilius, conhecido por sua concha linda e colorida – são capturados apenas para fins decorativos.

A Índia está longe de ser a maior fornecedora. Noticiários locais da GMA News Online nas Filipinas descreve um processo parecido lá para coleta, limpeza e distribuição de conchas. Elas também são exploradas comercialmente na Indonésia e no Caribe, entre outros lugares.

Apenas algumas espécies – notavelmente a concha-rainha, que pode ter até 30 centímetros de comprimento, o Nautilus pompilius, a ostra gigante e algumas espécies de caracóis – são protegidas sob a Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e da Flora Silvestres Ameaçadas de Extinção (CITES), a entidade que regula a comercialização da vida selvagem.

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    O Nautilus pompilius é um molusco popular para joias e decoração, mas a pesca insustentável o colocou em risco. De 2005 até 2014, só os Estados Unidos importaram mais de 900 mil.
    Foto de Nobert Wu, Minden Pitures, National Geographic Creative

    Para vender essas espécies, importadores devem obter uma licença do país de origem, que é registrado em uma base de dados internacional. Além disso, CITES requer que os países de origem estabeleçam cotas de pesca para garantir que a venda dessas espécies seja sustentável. Como na Índia, vários outros países implementaram suas próprias leis para proteger os moluscos marinhos.

    Apesar dessas medidas, de acordo com um estudo de 2016 da Defenders of Wildlife, uma ONG dos Estados Unidos, conchas e moluscos são um dos produtos de vida selvagem mais confiscados nos portos dos Estados Unidos. Entre 2005 e 2014, agentes da U.S. Fish and Wildlife Service confiscaram 77 produtos de vida selvagem diferentes, e conchas, com mais de meio milhão confiscadas, estavam entre os cinco mais confiscados. Produtos de conchas de moluscos representam 42% do total de itens. Não obter uma licença de importação – ou tentar importar mais itens do que sua licença permite – é um motivo comum para o confisco.

    De acordo com Alejandra Goyenechea, conselheira internacional sênior da Defenders of Wildfile, mais de 90% dos produtos de conchas confiscados pelo Fish and Wildlife Service durante esse período foram tirados da natureza e quase 99% eram para fins comerciais. (O Serviço define a importação de oito ou mais itens como “comercial”.)

    Conchas em uma fábrica em Kanyakumari, na extremidade sul da Índia, esperando processamento. Elas serão vendidas ...
    Conchas em uma fábrica em Kanyakumari, na extremidade sul da Índia, esperando processamento. Elas serão vendidas a quilo para os artesãos.
    Foto de Amey Bansod

    A concha-rainha – com sua concha em espiral rosa e laranja ou cor de creme que podem ter até 30 centímetros de comprimento – é um dos moluscos protegidos mais fáceis de reconhecer. De acordo com uma ficha técnica de 2016 da Defenders of Wildlife, conchas-rainha sem documentação (ou com documentação imprópria) compunham mais de 90% das conchas da América Latina que foram confiscadas pelo Fish and Wildlife Service de 2005 a 2014. Uma venda sem documentação em tal escala, diz Goyenechea, tem o potencial de prejudicar toda uma população.

    “Há um impacto no ambiente – não é a mesma coisa trazer duas conchas ou mil conchas”, diz ela. Quando aquelas inúmeras conchas usadas para joias e itens decorativos, como abajures e porta-retratos tinham animais vivos dentro delas no oceano, elas tinham seu papel ecológico, inclusive oferecer uma ancoragem para epiobontes como algas que servem de comida para a vida marinha e cracas que se alimentam por filtração, que ajudam a limpar a água. A concha-rainha tem um papel importante em seu ecossistema, ajudando a limpar as águas do Caribe e servem de alimento para tartarugas marinhas e para o tubarão-enfermeiro. Sem falar que cientistas consideram moluscos excelentes indicadores da saúde do ecossistema.

    “Como qualquer exploração do mundo natural, se você tirar mais do que é sustentável para o ambiente, o ecossistema entra em colapso”, diz Neil Garrick-Maidment, diretor executivo da The Seahorse Trust, ONG da Inglaterra que vem trabalhando para trazer consciência sobre os efeitos da comercialização de objetos marinhos desde 2015.

    Amey Bansod diz que pescadores de conchas na Índia muitas vezes usam uma técnica de pesca similar ao arrasto de fundo, que envolve arrastar uma grande rede no assoalho oceânico. Quando isso é feito, de acordo com Oceana, todo o habitat vivo em seu caminho é destruído, arrancado ou sufocado com o reviramento da areia.” Não é clara a razão pela qual o arrasto de fundo é popular na indústria global de pesca de moluscos.

    O desafio da aplicação

    O Nautilus pompilius, nativo do Pacífico Sul, provavelmente é o molusco mais afetado pela venda de conchas. Pouco se sabe sobre essa espécie, que recebeu a proteção do CITES apenas em 2017 e é especialmente vulnerável porque, diferentemente das ostras-gigantes, por exemplo, eles não podem ser criados em cativeiro para repor as populações, que estão diminuindo pelo mundo.

    De acordo com um estudo de 2016 da TRAFFIC e da World Wildlife Fund, o tráfico global de Nautilus ainda é abundante. O estudo menciona que a venda ilegal mudou de lojas que os colocavam em exibição para vendas online, que são mais difíceis de monitorar e controlar. O estudo também identifica o policiamento da venda de Nautilus na China, Filipinas e Indonésia como um desafio em particular.

    “A CITES é tão forte quanto a habilidade de seus países membro de aplicar [suas proteções]”, diz a porta-voz da U.S. Fish and Wildlife Service, Laury Parramore, adicionando que o Serviço trabalha com governos estrangeiros e outros parceiros para construir especialidades, conhecimento e recursos para implementar a CITES.

    Na Índia, o Wildlife Protection Act tem objetivo de proteger algumas espécies de molusco que estão cada vez mais ameaçadas, assim como o Lambis scorpius e Pleuropoca trapezium. Mas, Amey Bansod diz, a aplicação é casual e conchas de animais protegidos são vendidas abertamente nas praias para os consumidores e artesãos, enquanto outras são exportadas pelo globo. “Infelizmente”, diz ele, “a falta de informação torna mais difícil para os oficiais pararem a venda mesmo das espécies protegidas. Isso é composto do fato de autoridades portuárias não entenderem ou reconhecerem isso como problema. Para eles é só matéria-prima.”

    De acordo com Goyeneches, identificar espécies de moluscos é um dos maiores desafios no policiamento da venda internacional de conchas. Na alfândega, importadores simplesmente listam seu produto como “conchas”, e os poucos inspetores na maioria dos portos de entrada sabem o bastante para identificar espécies protegidas.

    O estudo de 2016 da TRAFFIC e World Wildlife Fund, que focou em conchas de Nautilus, apoia essa afirmação. O estudo nota que na Europa, China, Hong Kong e Taiwan, conchas tem o mesmo código alfandegário de espécie ou gênero que corais e outros moluscos, crustáceos e equinodermos, e que monitorar a venda de moluscos (nesse caso conchas de Nautilus) não é prioridade para as autoridades. “A falta de códigos alfandegários para rastrear a venda internacional e a falta de medidas de mercado para garantir que a venda seja legal mascaram o volume total de venda que está ocorrendo”, diz o relatório.

    Ajuda para os moluscos

    Bansod estima que 30 a 40 mil pessoas na região de Kanyakumari estejam envolvidas no negócio de venda de conchas. Ele diz que tentou por anos atrair investidores para iniciar uma campanha que educaria comunidades sobre os danos causados pela venda de conchas e treinaria os artesãos locais para adotarem outras práticas – criando conchas sopradas a gás ao invés de usar moluscos. Mas ninguém se interessou e seus esforços definharam.

    Garrick-Maidment diz que destinar fundos para espécies menos conhecidas é “muito difícil”. Moluscos e outros animais, como cavalos marinhos, “não chamam tanta atenção quanto elefantes, tigres e pandas”, diz ele, adicionando que, como resultado, é difícil “fazer os que estão no poder se importarem”.

    O que é muito necessário, Goyenechea e Bansod concordam, é reduzir a demanda por conchas decorativas e outras bugigangas, espalhando o conhecimento entre os consumidores sobre os perigos de explorar demais os moluscos.

    E, diz Bansod, isso “vai além de apenas um animal ou uma espécie. É sobre saber o que é preciso para um recurso natural ser tirado do seu habitat só para ser exibido em uma sala” – principalmente se a exploração for “baseada em práticas não monitoradas e antiéticas, só para você comprar um objeto em uma loja.”

    Goyenechea sugere que as pessoas que querem comprar produtos de conchas perguntem aos donos das lojas de onde as conchas vieram. Se a origem do item não for conhecida, ela pede que não se compre.

    “Acho que uma das coisas mais importantes é que as pessoas não têm informação sobre o local de origem do produto e como pode estar prejudicando a espécie e o ambiente.” As pessoas podem achar erradamente que alguém simplesmente colheu conchas da praia, ao invés de saber que vieram de uma grande indústria.

    “A vida selvagem deve ficar na natureza”, ela diz, “não nas nossas casas”.

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