Morcegos ameaçados de extinção estão sendo mortos aos milhares

Cientistas estão processando o governo das Ilhas Maurício como forma de impedir o abate de raposas-voadoras. Mais de 50 mil animais foram mortos.

Por Rachel Nuwer
Publicado 8 de jun. de 2019, 07:30 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
A raposa-voadora-de-maurício, um morcego frutífero endêmico das Ilhas Maurício, é alvo de abates controversos.
A raposa-voadora-de-maurício, um morcego frutífero endêmico das Ilhas Maurício, é alvo de abates controversos.
Foto de Jacques de Speville

As Ilhas Maurício, um pequeno país insular a leste de Madagascar, são conhecidas pelas praias dignas de cartão-postal, ótima hospitalidade e diversidade cultural. Também são conhecidas pelo dodô, símbolo da capacidade de extinção do homem. As Ilhas Maurício também já perderam mais de 130 plantas e animais menos conhecidos, de escíncidos gigantes a serpentes boa, desde que a ilha foi colonizada em 1638.

Agora, outra espécie única, um morcego frutífero conhecido como raposa-voadora-de-maurício, está cada vez mais perto da extinção. Desde 2015, o governo matou mais de 50 mil raposas-voadoras, reduzindo a população do morcego ameaçado de extinção para provavelmente menos de 30 mil indivíduos.

As autoridades dizem que o extermínio é necessário para proteger os pomares de produtores de frutas. "Eles causam danos significativos às plantações", disse Mahen Seeruttun, ministro da agricultura e segurança alimentar das Ilhas Maurício, à imprensa local em outubro passado, logo antes do início do último abate realizado. "Não estamos aqui para erradicar a espécie, mas precisamos nos certificar de que os números estejam sob controle".

Estudos preliminares indicam que as raposas-voadoras representam 11% dos danos causados a mangueiras de grande porte e 9% dos danos causados aos pés de lichia, as duas principais frutas em questão. De acordo com uma pesquisa publicada no periódico Journal for Nature Conservation, os produtores contribuem com o prejuízo permitindo que suas frutas fiquem maduras demais. Além disso, há também os danos causados por fortes ventos e outros animais e insetos que se alimentam de frutas.

De acordo com o Instituto de Pesquisa e Extensão em Alimentos e Agricultura das Ilhas Maurício, o rendimento desses pomares realmente diminuiu desde o início dos abates. Mesmo assim, os morcegos continuam levando a culpa e sendo alvos.

"Convido os colegas a virem para as Ilhas Maurício para verem o que não devemos fazer com a natureza", diz Vincent Florens, ecologista da Universidade de Maurício. "Realmente o que o governo está fazendo é bastante ilógico. O abate de raposas-voadoras nunca funcionou como forma de permitir mais lucro. Então, quem realmente está se beneficiando do ato se não são os produtores tampouco a biodiversidade ameaçada?".

Muitos dos colegas cientistas de Florens entraram com um processo contra o governo alegando violação do bem-estar animal, especificamente, que matar morcegos com espingarda viola a seção 3.1.a. da Lei do Bem-Estar Animal das Ilhas Maurício. Se eles perderem o processo, Florens e outros se preocupam com o fato de o governo das Ilhas Maurício abrir um perigoso precedente, em todo o mundo, ao extermínio de espécies ameaçadas consideradas uma perturbação à atividade humana.

A população de raposas-voadoras foi reduzida em mais de 50% desde que o país passou a realizar abates, há 4 anos.
Foto de Jacques de Speville

Em outros aspectos, as Ilhas Maurício possuem um histórico de excelência em conservação. Foram o primeiro país a assinar e ratificar a Convenção da Diversidade Biológica em 1992, e ajudaram a salvar espécies ameaçadas, como o francelho-de-maurício, aumentando a população da ave de apenas quatro indivíduos sobreviventes para mais de 500 hoje.

Isso torna o caso das raposas-voadoras bem mais desconcertante, diz Guillaume Chapron, ecologista da Universidade de Ciências Agrícolas da Suécia, cujo trabalho sobre o uso de processos judiciais para ganhar batalhas de conservação serviu de inspiração aos pesquisadores nas Ilhas Maurício.

"As Ilhas Maurício representam um pequeno caso comparado às situações do planeta como um todo, mas aqui temos um bom exemplo de como se destrói o mundo", afirma Chapron. "Até mesmo em um governo que é modelo internacional de conservação, assim que a vida selvagem é considerada inimiga dos interesses econômicos, a boa vontade política desaparece".

As raposas-voadoras são marcos ecológicos. Enquanto se alimentam das frutas, elas polinizam as flores e espalham sementes, garantindo a prosperidade das florestas. Em um estudo de 2017, Florens e seus colegas descobriram que os morcegos frutíferos dispersam sementes de 53% das árvores da floresta nas Ilhas Maurício, o exemplo mais significativo conhecido pelos pesquisadores de contribuição de uma única espécie de morcego a uma floresta. "O papel ecológico desses animais é enorme", afirma Florens. "Todas essas árvores dependem desse pequeno morcego ameaçado de extinção que está sendo massacrado pelo governo".

De acordo com Florens, a atividade dos morcegos é especialmente importante nas Ilhas Maurício, onde já foram extintos outros animais responsáveis por dispersar sementes, incluindo dodôs, tartarugas gigantes, papagaios-de-bico-largo e duas outras espécies de raposas-voadoras.

Início do problema

Os morcegos começaram a enfrentar problemas em 2002, quando os produtores de frutas das Ilhas Maurício, que tradicionalmente vendiam suas lichias e mangas nos mercados locais, começaram a exportar. Conforme os lucros aumentaram, intensificaram-se as preocupações sobre o prejuízo. Para muitos produtores de frutas, as raposas-voadoras se tornaram as culpadas pelas mangas apodrecidas ou pelas lichias mordiscadas encontradas no chão debaixo do pé.

"Na década de 1970, os morcegos viviam apenas nas montanhas, na floresta", afirma Hervé Hardy, gerente de transportes aposentado de uma usina de açúcar, um dos defensores mais ativos dos abates, que publicou diversos pareceres na mídia local a favor da atividade. "Agora, temos morcegos em todos os cantos do país e eles destroem todas as frutas", afirma ele.

Com base nos seus cálculos, Hardy acredita que 579 mil morcegos frutíferos viviam nas Ilhas Maurício em 2015. (Florens diz que o número é biologicamente impossível porque a ilha não é grande o suficiente e não tem alimentos suficientes para sustentar tantas raposas-voadoras). Hardy defende que a população de raposas-voadoras seja reduzida para 13 mil indivíduos, número que, de acordo com suas estimativas, habitava a ilha na década de 1970.

"Eu testemunhei a evolução dos morcegos, é por isso que estou lutando", diz Hardy. "Quando as pessoas dizem que os morcegos quase desapareceram, eu sei que não é verdade".

Muitos produtores de frutas concordam e seus lobistas começaram a pedir pelo abate. Políticos, cujo sucesso nas eleições normalmente depende da obtenção de votos rurais, prestaram atenção ao pedido. Na opinião de Florens, "o propósito do abate não é aumentar a safra de frutas, mas sim a safra de votos".

Representantes dos Parques Nacionais e Serviços de Conservação das Ilhas Maurício não comentaram sobre o caso.

Quando, em 2015, o governo realizou o primeiro abate em larga escala, as autoridades rapidamente perceberam que caçar morcegos próximo a pomares era uma forma ineficaz de cumprir a cota de extermínio de mais de 30 mil animais. "Nos pomares, eles atiravam em um morcego e 15 voavam", diz Florens. Então, eles começaram a caçar morcegos nas florestas, inclusive em áreas protegidas, onde os animais se concentravam para se abrigar.

Essa estratégia foi "monstruosa", diz Florens, porque perseguiu os morcegos nos locais onde deveriam estar mais seguros e porque removeu alguns dos indivíduos menos problemáticos da população, aqueles que provavelmente não se alimentavam das frutas dos produtores. As raposas-voadoras tendem a permanecer próximo do local onde habitam, explica ele. E aquelas que vivem na floresta provavelmente não viajam até pomares comerciais para se alimentarem. "Resumindo, morcegos no pomar obviamente estão se alimentando das frutas, mas é pouco provável que os morcegos da floresta também estejam", afirma Florens.

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    Os cientistas que entraram com um processo na justiça para impedir a morte dos morcegos ameaçados dizem que os produtores de frutas podem proteger suas mangas e lichias colocando redes nas árvores.
    Foto de Jacques de Speville

    Em 2016, o governo lançou uma segunda onda de abates de 7.380 indivíduos "para controlar ainda mais os danos causados a árvores frutíferas em determinados pomares", de acordo com Mahen Kumar Seeruttun, membro do parlamento das Ilhas Maurício. Isso contribuiu para a decisão em 2018 da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), que determina o status de conservação das espécies, de elevar o status da raposa-voadora-de-maurício de vulnerável para ameaçado de extinção.

    A IUCN também organizou dois workshops oferecidos pelo Ministério da Agricultura e Segurança Alimentar das Ilhas Maurício para promover formas não letais de mitigar os problemas existentes entre o homem e o morcego. "Todos estavam bastante motivados e sentimos que estávamos fazendo progresso", conta Tigga Kingston, bióloga da Texas Tech University e copresidente do Grupo Especialista em Morcegos do Velho Mundo da IUCN. Contudo, logo depois, o governo instituiu a meta de matar 13 mil raposas-voadoras, atividade que foi recentemente concluída.

    "Nada disso é normal", afirma Kingston. "Isso começou com uma ação sem precedentes na qual o governo ativamente matou uma espécie vulnerável, que foi então seguida por uma ação mais sem precedentes ainda".

    Oficialmente, o governo matou 51.318 raposas-voadoras, mas Florens e seus colegas acreditam que o número seja muito maior. "Os abates aconteceram no fim do ano, quando muitas fêmeas estavam prenhes ou tinham filhotes", afirma ele. "Você atira em um morcego e basicamente mata dois". Outros morcegos, complementa ele, foram provavelmente feridos e morreram posteriormente.

    A população de raposas-voadoras das Ilhas Maurício foi reduzida em mais de 50% desde o início dos abates em 2015, de acordo com Florens. Quanto menos animais permaneceram, alerta Kingston, mais vulneráveis ficarão os morcegos restantes a desastres naturais, doenças, competição com espécies não nativas e perda de habitat. Se o abate continuar, afirma ela, "a espécie ficará presa em um espiral de extinção que teve como início o abate".

    Na verdade, após os dois primeiros abates, a produção de lichia caiu 70%, relata Florens no Journal for Nature Conservation, provavelmente devido a uma combinação de condições climáticas e moscas invasivas, aves, macacos e ratos. "Infelizmente, todos esses danos são colocados nas costas dos morcegos, tornando as ações de lobbying mais intensas", explica ele.

    Desesperados em oferecer uma trégua aos morcegos, um grupo de pesquisadores decidiu processar o governo. Fabiola Monty, cientista ambiental nas Ilhas Maurício pertencente ao grupo sem fins lucrativos Human Rights in the Indian Ocean, atuou na qualidade de requerente, com Christian Vincenot, ecologista que estuda morcegos e modelador ecológico na Universidade de Quioto, no Japão, como assessor.

    "Tentamos petições, manifestações, publicações na Science e discussões entre a IUCN e o governo", conta Vincenot. "Nada do que fizemos teve sucesso até o momento, então decidimos que precisávamos de uma ação mais incisiva".

    Embora os morcegos sejam reconhecidos como ameaçados de extinção pelo governo das Ilhas Maurício, de acordo com as diretrizes da IUCN, uma brecha na atual legislação do país exclui esses mamíferos do âmbito da proteção doméstica, afirma Florens. Com isso, Monty instaurou seu processo com base em violações do bem-estar animal e não em violações das leis de proteção à vida selvagem. (Monty não pode falar sobre o caso até sua conclusão, e os oficiais do governo das Ilhas Maurício não quiseram comentar). O caso foi adiado, ou recursos foram apresentados, três vezes, com a próxima audiência marcada para 09 de maio.

    "Única coisa que funciona"

    Conforme o processo segue na justiça, Florens e seus colegas continuam focando na educação e propondo, aos fazendeiros interessados, alternativas ao abate dos morcegos. Com pouco investimento, que pode ser recuperado com apenas uma safra, diz ele, as árvores podem ser protegidas das raposas-voadoras com redes, uma estratégia utilizada na Austrália e Tailândia.

    "Matar raposas-voadoras se mostrou inútil", complementa Vincenot. "A única coisa que funciona é proteger as árvores com redes".

    A colocação de redes reduziu os danos causados pelos morcegos nas Ilhas Maurício em uma média de 16 a 23 vezes, de acordo com uma pesquisa publicada na revista científica Oryx. Mas os produtores que tentaram a tática, em sua maioria, não fizeram as coisas como tinham que ser feitas, afirma Florens, levando à crença de que as redes não funcionam. "Muitos produtores fazem o trabalho de qualquer jeito, jogando a rede sobre a árvore em contato direto com os galhos e as frutas, permitindo que aves e morcegos se alimentem através da rede", explica ele. Os produtores também deixam frestas na parte de baixo da rede, continua ele, permitindo a entrada dos animais (que normalmente ficam presos lá dentro).

    Florens e seus colegas esperam conseguir criar uma certificação que considere os morcegos e permita que os consumidores de frutas no país e no exterior usem seu poder de compra para apoiar produtores que excluem os morcegos de seus pomares de forma sustentável em vez de recorrer ao abate. Especialistas ajudariam produtores que se importam com o meio-ambiente a instalar redes avançadas e ajudariam a criar parcerias entre os produtores e empresas de marketing locais e internacionais para conscientização sobre a diferença que as redes fazem para a biodiversidade ameaçada.

    "Temos a esperança de que os produtores que instalam as redes tenham tanto lucro que os demais que continuam recorrendo ao abate sejam forçados a deixar o negócio", afirma Florens. "Queremos mudar a mentalidade na raiz".

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