Mortes recentes de aves por pesticida permitido por lei levantam polêmica

“Essa é uma maneira horrível de morrer”, diz conservacionista sobre o veneno para aves Avitrol. Algumas cidades já o proibiram.

Por Rachel Fobar
Publicado 25 de out. de 2020, 09:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Avitrol, pesticida utilizado no controle de aves e registrado na Agência de Proteção Ambiental dos Estados ...

Avitrol, pesticida utilizado no controle de aves e registrado na Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA), muitas vezes leva as aves a caírem ao chão, terem convulsões e morrerem — reações assustadoras para quem assiste à cena. O produto já é proibido em muitos lugares, inclusive na cidade de Nova York.

Foto de George McKenzie Jr

“Está tudo bem”, sussurrou Bonnie Siegfried, tentando confortar um pombo em convulsão envolto em um cobertor de lã. O corpo da ave se contorcia violentamente e emitia sons enquanto ela a segurava em seus braços. O pombo morreu cerca de meia hora depois, enquanto Siegfried, que mora em Londres, na província canadense de Ontário, esperava um agente do centro de controle de animais chegar. Mais tarde, ela publicou um vídeo do pombo no Facebook.

Nas semanas após esse incidente, no fim de agosto de 2020, diversos moradores de Londres, Ontário, e de cidades vizinhas relataram ter visto inúmeros pombos em sofrimento — caindo de árvores, batendo as asas, convulsionando, tentando respirar e, por fim, morrendo. Uma autópsia posteriormente concluiu que os pombos foram envenenados com Avitrol, um veneno utilizado em aves. A substância tem seu uso aprovado nos Estados Unidos pela Agência de Proteção Ambiental desde 1972 e foi registrada novamente para uso no Canadá em 2016 — embora tenha sido proibida em Londres e outras partes do Canadá, e em várias cidades dos Estados Unidos. A EPA lista Avitrol como um avicida, palavra que significa “que causa a morte de aves”.

Utilizado principalmente nos Estados Unidos e no Canadá, Avitrol é o único avicida disponível no mercado aprovado pela EPA, de acordo com a organização não-governamental National Audubon Society. (Outro avicida, o DRC-1339, é aprovado pela EPA, mas somente o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos pode utilizá-lo.) Avitrol é tóxico para todos os vertebrados que o ingerem e é classificado, nos Estados Unidos, como pesticida de uso restrito. Portanto, apenas profissionais com licença de controle de pestes podem empregá-lo.

A empresa Avitrol Corporation descreve o produto como um agente que “exerce o controle do número de aves de forma não cruel” e diz que o objetivo não é matar aves, embora reconheça que algumas morram após ingeri-lo. Em vez disso, a empresa descreve Avitrol como um “agente químico amedrontador”, pois atua sem causar dor nos sistemas nervoso central e motor dos animais, levando-as apresentar “comportamentos semelhantes aos observados em uma crise epiléptica” — como “voar sem rumo, emitir sons, tremer, ter as pupilas dilatadas, entre outros sintomas”. A intenção dessas reações é assustar outras aves.

No entanto, defensores do bem-estar animal, após verem vídeos como o de Siegfried e lerem pesquisas da organização Humane Society dos Estados Unidos sobre a substância ativa do produto, a 4-aminopiridina, argumentam que Avitrol causa dor e sofrimento desnecessários. Além disso, diversos incidentes que terminaram em mortes generalizadas de aves, como o que ocorreu em Londres, indicam que o produto é frequentemente utilizado para exterminar esses animais, e não somente afastá-los. Os defensores também temem que o veneno possa matar acidentalmente animais selvagens que atacam pombos, como os falcões-peregrinos do Canadá, ameaçados de extinção e que os quais os governos locais têm tentado proteger restringindo o uso do produto químico.

O site da Avitrol Corporation afirma “nunca ter recebido relatos” de envenenamentos secundários em 50 anos de operação. Mas um estudo de 2013 publicado na revista científica Journal of Toxicology analisou 29 envenenamentos por Avitrol de espécies secundárias — 25 cães, três gatos e um bovino. Um cão morreu e cinco foram tratados e se recuperaram. Não se sabe o que aconteceu com os outros animais.

A Avitrol Corporation não respondeu a várias solicitações de entrevista.

Pessoas e empresas possuem diferentes razões para quererem se livrar de aves — normalmente, de pombos, mas também de pardais-domésticos, melros-pretos, aves da espécie quiscalus e corvos. Muitas vezes, são consideradas um problema devido às suas fezes, além de sua capacidade de transmitir doenças, incluindo a histoplasmose, infecção  que pode causar febre, calafrios, dores de cabeça e outros sintomas. Os agricultores, por sua vez, podem querer se livrar delas por se alimentarem da ração de seus animais. Contudo, muitos países abandonaram o uso do veneno para controlar aves consideradas “pragas”, segundo a Audubon Society, e os avicidas estão proibidos em grande parte da Europa e no Reino Unido.

Não há nenhuma organização que rastreie o uso de avicidas em nível global, por isso não se sabe exatamente quantos países permitem seu uso ou em que intensidade ele é aplicado.

A EPA rastreia o uso de pesticidas nos Estados Unidos, mas se recusou a compartilhar dados sobre a quantidade utilizada por ano, apesar de vários pedidos de comentários.

‘Uma maneira horrível de morrer’

Um avicida como Avitrol é “extremamente cruel”, alega Stephanie Boyles Griffin, cientista sênior do departamento de proteção da vida selvagem da Humane Society dos Estados Unidos, com sede em Washington, D.C. Por ser uma neurotoxina, veneno que ataca o sistema nervoso, ela explica que Avitrol pode superestimular os sentidos e desencadear convulsões. “Qualquer pessoa que já teve uma convulsão severa... sabe como o evento é traumático.”

A declaração da Avitrol Corporation de que seu produto não é cruel é “uma alegação absurda”, disse Travis Longcore, diretor de ciências do Urban Wildlands Group, uma organização conservacionista sem fins lucrativos com sede em Los Angeles.

Foto de Charlie Hamilton James, National Geographic Image Collection

Os habitantes que testemunham aves morrendo nas ruas relatam o ocorrido às autoridades responsáveis pela preservação da vida selvagem. As autópsias muitas vezes revelaram Avitrol como a causa da morte, e alguns governos locais — incluindo os de Nova York, São Francisco, Boulder, Colorado e Portland, no Oregon — proibiram o uso de Avitrol e outros avicidas.

Moradores de Portland ficaram abalados após dois incidentes, em 2014 e 2018, quando corvos “literalmente choviam do céu”, caíam na calçada, e gritavam e batiam as asas, com os olhos revirados, relembra Bob Sallinger, diretor conservacionista na Audubon Society de Portland. “Eles ficavam deitados de lado e se debatiam, tinham convulsões e, depois, morriam”, conta ele. Suas carcaças foram vistas em 30 ou 40 quarteirões da cidade. “Tanto física quanto psicologicamente, essa é uma maneira horrível de morrer.”

Sallinger e alguns colegas da Audubon de Portland coletaram dezenas de aves para análise, e a causa definida foi Avitrol, embora o distribuidor do veneno nunca tenha sido identificado. “O que importava para a nossa comunidade era se a população considerava esse produto aceitável”, explica.

Em uma reunião da câmara municipal em 5 de junho de 2019, a comunidade de Portland respondeu com um “sonoro não”, disse Sallinger. A votação proibiu o uso de Avitrol em áreas de propriedade da cidade. Até mesmo membros da comunidade empresarial local — muitos dos quais recebem incentivos para se livrarem das aves inconvenientes — votaram contra o veneno.

“Não é comum ver ações locais sendo realmente tomadas em relação a pesticidas, mas o veneno em questão sofreu oposição em vários lugares, onde as comunidades se sentiram compelidas a intervir e fazer o que a EPA não se dispôs a fazer”, explica Sallinger. “Acredito que isso represente como o produto é danoso e como é irresponsável utilizá-lo.”

Uso indevido na maior parte do tempo

O rótulo de Avitrol descreve as exigências da EPA para uso correto do produto: distribuição limitada e dispersa em áreas que ofereçam oportunidades de alimentação apenas para o número necessário de aves-alvo.

No entanto especialistas constatam que Avitrol é raramente utilizado da forma correta e Sallinger diz que é difícil, senão impossível, limitar a ingestão de veneno pelas aves.

A EPA relata que apenas profissionais licenciados que passaram por treinamento da agência reguladora de seu estado podem distribuir Avitrol e que o programa de certificação de cada estado é aprovado em nível federal pela agência. Em 2013, a EPA atualizou o rótulo de Avitrol para incluir os locais permitidos de aplicação, a necessidade de monitoramento após a aplicação e a eliminação das aves mortas.

A EPA explica que o “rótulo de um pesticida é considerado lei”. Se um pesticida registrado estiver sendo utilizado “de maneira inconsistente com seu rótulo”, a EPA pode interromper a venda do produto.

Mesmo que os efeitos do avicida sejam “visualmente revoltantes”, conforme apresentado em um estudo publicado no site da Avitrol, a empresa afirma que a distribuição cuidadosa do veneno para assustar bandos de aves pode resultar em “pouca ou nenhuma mortalidade”. A EPA está de acordo: “Dada a baixa mortalidade esperada de aves por meio do uso de Avitrol em comparação com alternativas (por exemplo, matá-las a tiros)”, o produto é considerado “não cruel”.

Porém, Sallinger acrescenta que Portland oferece um exemplo de como as recomendações do rótulo de Avitrol nem sempre são seguidas. O rótulo da EPA exige que os usuários coletem e enterrem ou incinerem as carcaças, mas isso não foi feito com os corvos que morreram em Portland. Sallinger diz que após a carnificina, passou dias recolhendo carcaças e colocando-as em sacos de lixo. “Acredito que a EPA seja negligente ao licenciar o produto porque não há como garantir que as exigências do rótulo sejam cumpridas.”

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    Bob Sallinger, da Audubon Society de Portland, relata que ele e seus colegas passaram dias reunindo corpos de corvos após mortes generalizadas em 2014 e 2018.

    Foto de Bob Sallinger

    ‘Uma alegação absurda’

    Seja Avitrol empregado corretamente ou não, a declaração da empresa sobre o produto ser considerado não cruel é “uma alegação absurda”, contesta Travis Longcore, diretor de ciências do Urban Wildlands Group, uma organização conservacionista sem fins lucrativos com sede em Los Angeles. “Isso causa, no mínimo, extremo desconforto às aves, muito provavelmente dor e, ocasionalmente, sua morte, para ‘assustar’ o restante delas”, conclui ele. “Está claro que é algo desumano”.

    Em 2007, a Humane Society dos Estados Unidos contratou Longcore para elaborar um relatório sobre a 4-aminopiridina, a substância ativa de Avitrol. Ao contrário da alegação da Avitrol de que as aves ficam em um “estado deprimido” e “não sentem dor” antes do início das convulsões, Longcore descobriu que a exposição a 4-aminopiridina na verdade “potencializa o que é sentido pelos nervos”, causando uma sensação de formigamento e dor abdominal.

    Avitrol aumenta os níveis de acetilcolina, um neurotransmissor que controla as contrações musculares. As pessoas que sofrem de esclerose múltipla às vezes recebem prescrições de medicamentos que contêm a substância 4-aminopiridina. Pacientes que, acidentalmente, tomam uma dose adicional “relatam queimação na garganta e desconforto abdominal seguido de náusea, irritabilidade, fraqueza, tontura, ‘sensação de morte iminente’, sede e falta de ar”, de acordo com o relatório de Longcore. Concentrações suficientemente altas da substância também podem causar convulsões, conforme observado em aves envenenadas com Avitrol.

    Em um estudo publicado em seu site, a Avitrol afirma que durante as convulsões, “o animal não sente dor porque não consegue se lembrar do incidente”. O estudo também afirma que essa “observação também se aplica aos seres humanos”. Mas Longcore notou uma escassez de evidências para afirmar que as aves não ficam conscientes durante as convulsões, e agora se sabe que os humanos às vezes permanecem conscientes durante as convulsões focais que se iniciam em uma parte do cérebro.

    Por fim, no que concerne à dor, “não podemos perguntar às aves se elas a sentem ou não”, declara Longcore. Mas “não há dúvida de que sentem dor, seja durante a convulsão ou posteriormente, quando se debatem contra o chão”.

    Em vez de utilizar veneno contra aves, Portland optou por métodos não cruéis: limpar as fezes desses animais nas calçadas com uma lavadora de alta pressão e soltar aves predadoras para espantar os corvos inconvenientes.

    Foto de Bob Sallinger

    Alternativas não cruéis

    Stephanie Boyles Griffin, da Humane Society, afirma que as pessoas utilizam Avitrol porque acreditam que seja uma “solução rápida”. Porém, “isso claramente não é verdade”, acrescenta. As aves que veem outros membros de sua espécie em perigo podem até ficar assustadas por um tempo, mas elas sempre voltam.

    Boyles Griffin, que se descreve como uma “grande fã de pombos”, está segura de que a maioria das pessoas não quer causar sofrimento aos animais silvestres. “As pessoas geralmente são tolerantes com nossos vizinhos selvagens, como os pombos, e quando precisam resolver um problema envolvendo essas aves, preferem uma abordagem não letal e não cruel.”

    A boa notícia, segundo Boyles Griffin, é que existem muitas alternativas que “funcionam melhor do que as abordagens cruéis e letais”. Algumas delas requerem uma mudança do comportamento humano — como simplesmente parar de alimentar as aves para que elas não se aglomerem. Instalar redes e espinhos artificiais também pode impedir que pousem em árvores e edifícios próximos a calçadas movimentadas e estátuas, onde seus dejetos costumam ser considerados um problema.

    Outra opção é “o controle planejado de pombos”, explica Erick Wolf, CEO da OvoControl, a única empresa que produz rações contraceptivas. Seu produto bloqueia os receptores de esperma nos óvulos das pombas. Se a ração for disponibilizada em comedouros, as aves retornarão todos os dias para se alimentar. Em três meses, o bando e suas fezes começarão a diminuir, esclarece Wolf.

    Outra abordagem de limpeza de calçadas, utilizada por Portland durante a carnificina dos corvos, é um equipamento de limpeza que mais se parece um carrinho no qual você pode subir, popularmente conhecido como “Poopmaster 6000” (a palavra poop em inglês significa ‘cocô’). A cidade também contratou falcoeiros para soltar águias-de-harris e afugentar os corvos para outros locais que possam servir de poleiro. Tudo faz parte da “responsabilidade da humanidade de conviver” com a vida selvagem, reitera Sallinger, da Audubon de Portland.

    Considerando as diferentes alternativas e a crescente oposição a Avitrol, ele reitera que é chegada a hora de a EPA revogar o registro do veneno. “Há um número crescente de municípios que defendem: ‘Na nossa comunidade não’. Acredito que isso seja muito significativo e que a EPA deva prestar mais atenção no assunto em algum momento.”

    De acordo com a EPA, o registro de Avitrol está passando por uma revisão de rotina, que ocorre a cada 15 anos. Provavelmente até o fim deste mês, a agência afirma que irá concluir uma avaliação preliminar dos riscos do avicida, em que caracteriza a natureza e escala dos riscos à saúde humana e ao meio ambiente. Essas avaliações de risco do produto são feitas regularmente e disponibilizadas para que as pessoas possam analisá-las e comentar. “A EPA avaliará cuidadosamente todos os comentários recebidos durante o período disponibilizado para tal.” Posteriormente, a EPA chegará a uma decisão final sobre a renovação ou não do registro do produto.

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