Operação frenética de três dias para salvar guepardo ferido registrada em fotos

“Por um instante, a separação entre humanos e guepardos pareceu desaparecer”, escreve Nichole Sobecki, Exploradora da National Geographic e fotógrafa.

Por NICHOLE SOBECKI
Publicado 15 de set. de 2021, 07:00 BRT
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Veterinário examina as pupilas de um guepardo semiconsciente, desidratado e com feridas infeccionadas, provavelmente causadas por outro animal. O guepardo é um dos cerca de 20 indivíduos que vivem na Reserva Nacional de Samburu e nas proximidades de Buffalo Springs, no norte do Quênia.

Foto de Nichole Sobecki

Os guepardos são famosos por serem os animais terrestres mais velozes do mundo. Eles possuem a espinha mais longa e flexível entre todas as espécies de felinos, tornando possível alcançar velocidades de até 120 quilômetros por hora. Como uma mola apertada, eles podem acelerar de zero a quase 100 quilômetros por hora em apenas três segundos, mais rápido do que a maioria dos carros. Seus corpos ágeis e pintados foram feitos para correr, e para correr mais perfeitamente do que qualquer animal vivo.

Mas os guepardos não são os mais intimidadores dentre os felinos. Eles ronronam e não rugem. Não têm uma estrutura para lutar muito ou defender o território. Todas essas características podem deixá-los vulneráveis.

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    Guardas-florestais da Reserva Nacional de Samburu observam o jovem guepardo mancando em busca de abrigo antes do anoitecer. Os guepardos perderam mais de 90% de seu habitat no século passado e restam menos de sete mil adultos na natureza.

    Foto de Nichole Sobecki

    Durante a maior parte do ano, trabalhei com a escritora Rachael Bale em uma matéria sobre o tráfico de guepardos pela Somalilândia e em países do Golfo Pérsico, onde os felinos são considerados um acessório requintado dos ricos, a mais recente entre as inúmeras ameaças enfrentadas pelos guepardos. Desde o início do século 20, a transformação de mata em propriedades agropecuárias eliminou mais de 90% da população global dessa espécie. Restam menos de 7 mil guepardos adultos na natureza atualmente, a maioria no sul e no leste da África.

    Morei, durante a última década, no Quênia, uma nação conhecida por sua ampla beleza e abundância de animais silvestres. A perda de habitat e os conflitos com pecuaristas e seu gado estão levando os guepardos da região à beira da extinção, um processo que eu queria entender.

    Um guepardo ferido

    A jornada até a Reserva Nacional de Samburu, no norte do Quênia, segue ao longo da margem da Fenda da África Oriental, a origem da humanidade. O congestionamento da capital é substituído por fragmentos de colinas verdejantes. Depois da sentinela Kirinyage, comumente conhecida como Monte Quênia, propriedades rurais e plantações dão lugar a estepes, terra vermelho-ferrugem e leitos de rios contornados por acácias.

    Vou encontrar o naturalista Julius Lesori, um guia que trabalha na Reserva Nacional de Samburu há 14 anos e concordou em me ajudar na busca por guepardos. Ao parar o carro e começar a descarregar meu equipamento, ele me interrompeu. “Encontrei um”, afirmou ele com entusiasmo. “Vamos!”

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        Michael Njoroge, veterinário de Nairóbi do Serviço de Animais Silvestres do Quênia, chega dois dias depois que os guardas-florestais relataram o ferimento do guepardo. Ele se ajoelha para examinar o animal enquanto Cosmas Wambua, cofundador da organização sem fins lucrativos Action for Cheetahs in Kenya, e Ljalu Lekalaile, guarda-florestal da Reserva Nacional de Samburu, preparam-se para ajudar.

        Foto de Nichole Sobecki

        O guepardo ferido passou a maior parte do dia deitado sob um arbusto. Para garantir que não fosse atacado por outros predadores, a fotógrafa Nichole Sobecki, o guia Julius Lesori e outros vigiaram as proximidades até a chegada de um veterinário. Na imagem, o guepardo rosna para um guarda-florestal, mas está fraco demais para se movimentar.

        Foto de Nichole Sobecki

        A paisagem acelerou, solavancos foram ignorados, enquanto corremos para encontrar o guepardo avistado por Lesori. “Ela estava bem ali”, conta ele, diminuindo a velocidade e apontando para uma estrada agora vazia. Momentos depois, eu a vi: uma silhueta de felino protegida do sol forte por um arbusto alto.

        Permanecemos a uma distância considerável para esperá-la sair.

        Passaram-se horas e a sombra se manteve imóvel. Lesori começou a se preocupar: não é normal um guepardo ficar parado por tanto tempo. Usamos o zoom da lente da minha câmera para procurar ferimentos quando os guardas-florestais da Reserva Nacional de Samburu pararam o furgão ao nosso lado. Quando começamos a explicar, o guepardo se levantou lentamente. Estava mancando. Em busca de um esconderijo melhor, ela expôs feridas abertas ao longo de sua parte traseira, barriga e pata.

        Com menos de 20 guepardos restantes na Reserva Nacional de Samburu e nas proximidades de Buffalo Springs, cada indivíduo é importante. Três guepardos morreram na região apenas nas últimas quatro semanas: o primeiro guepardo foi baleado por pecuaristas que mantinham ilegalmente seu gado na reserva para pastar. Depois, uma fêmea grávida de dois filhotes foi atropelada por um veículo em alta velocidade. E um terceiro, ainda adolescente, foi encontrado sozinho e desidratado, jovem demais para sobreviver sem a mãe.

        Essa região está por um fio. A crise climática está causando estiagens cada vez mais intensas e isso é desesperador. Conforme as comunidades pecuaristas enfrentam dificuldades para encontrar um bom pasto para seu gado, os animais selvagens precisam competir com animais domésticos — e humanos — por espaço e outros recursos. O território está cada vez mais fragmentado pela expansão humana.

        Os guardas-florestais alertaram o Serviço de Animais Silvestres do Quênia (“KWS”, na sigla em inglês), a autoridade responsável pelos animais silvestres do país, que um guepardo ferido havia sido encontrado. Mas o veterinário do KWS responsável por essa região estava ausente. Em seu lugar, Charles Njoroge, veterinário do KWS em Nairóbi, prometeu chegar no início da manhã seguinte.

        A espera

        Por razões ainda não esclarecidas, passaram-se duas noites e um dia interminável antes da chegada do socorro. Nesse período, eu e Lesori ficamos com o guepardo em uma tentativa de manter outros predadores afastados. Mais tarde, Cosmas Wambua, cofundador da Action for Cheetahs in Kenya, juntou-se à nossa vigia.

        Sem nada para fazer a não ser aguardar e manter a esperança, há breves momentos na savana aberta em que esqueço que sou humana. Por um instante, a separação entre humanos e guepardos pareceu desaparecer (mais tarde, soube que os guardas batizaram o guepardo de Nichole, o que me fez sentir honrada e triste ao mesmo tempo).

        Os humanos gostam de reafirmar que se destacam pelas maneiras pelas quais transcendemos o mundo natural. Eu discordo. É esse falso orgulho de nossa separação que possibilita os horrores perpetrados por nós contra a natureza, os animais e uns contra os outros.

        Nichole, o guepardo, claramente havia sido ferida por outro animal, provavelmente um grande felino ou hiena, não um humano. É algo normal em um ecossistema em funcionamento, exceto que o cenário de profunda transformação aumentou os riscos. Em uma situação natural, os guepardos precisam de vastas extensões com presas adequadas, água e cobertura vegetal para sobreviver. Até mesmo em reservas de animais silvestres como Samburu, eles enfrentam grandes densidades de predadores maiores e competidores. O cerco está se fechando.

        Apego à consciência

        Na manhã de meu terceiro dia em Samburu, encontrei Njoroge, vestido em uma farda verde e carregando um refrigerador azul surrado cheio de suprimentos médicos. A essa altura, Nichole mal conseguia levantar a cabeça em protesto enquanto era examinada. De repente, ela se viu arrastada para o banco de trás do furgão veterinário como uma boneca de pano feroz. Estava fraca demais para precisar de sedação.

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          Após um percurso de duas horas semiconsciente na parte de trás de um furgão, o guepardo é descarregado na North Kenya Veterinary Services, clínica particular em Nanyuki, para ser estabilizado.

          Foto de Nichole Sobecki

          A equipe veterinária vira o animal para tratar suas feridas de perfurações, quase necrosadas após quatro dias. Os guardas-florestais que a acompanharam até a clínica a batizaram de Nichole, em homenagem à fotógrafa.

          Foto de Nichole Sobecki

          Disparamos pelo portão do parque e pela pequena cidade logo adiante, até a clínica North Kenya Veterinary Services, na base do Monte Quênia, uma corrida frenética de duas horas.

          Ao chegar, uma equipe de cirurgiões veterinários liderada por Kivara Luke e Moses Wamaitha aguardava. O guepardo foi levantado e colocado sobre um cobertor listrado, sua cauda pintada pendurada frouxamente, e carregado até uma sala de cirurgia. A equipe trabalhou acelerada e silenciosamente em sincronia. Nichole recebeu um catéter intravenoso com fluidos e antibióticos, e alguém colocou um pano de prato sobre seus olhos de cor âmbar para minimizar suas reações. Suas feridas foram limpas e tratadas, e ela continuou apegada à consciência, mas os exames de sangue sugeriam que estava entrando em choque séptico.

          Njoroge verifica Nichole, que recebe fluidos intravenosos e antibióticos.

          Foto de Nichole Sobecki

          Njoroge e dois guardas-florestais colocam o guepardo em um furgão para transportar o animal a Nairóbi para atendimento adicional. Sua saúde ainda está precária e fazer o percurso de quase 200 quilômetros à capital é um risco.

          Foto de Nichole Sobecki

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            Um pouco mais alerta, Nichole olha para fora de sua caixa na parte de trás do furgão. Ela sobreviveu à jornada, mas morreu um dia após chegar à sede da clínica Kenya Wildlife Services em Nairóbi.

            Foto de Nichole Sobecki

            Qual é o prognóstico?, indaguei a Luke quando terminaram de tratá-la.

            “Fizemos o possível e agora depende dela”, respondeu a veterinária, com um sorriso nervoso.

            De repente, os planos mudaram. Até hoje, não entendi bem por quê. Embora a North Kenya Veterinary Services e a reserva privada próxima Ol Jogi tenham oferecido suas clínicas veterinárias para a recuperação de Nichole, no fim da tarde de sexta-feira, o KWS decidiu transportá-la por mais 200 quilômetros até sua sede em Nairóbi para prosseguir com o atendimento.

            Após dias de vigília sem dormir e a transferência de Nichole ao atendimento veterinário na capital, voltei para casa para aguardar uma atualização sobre o estado de saúde do guepardo. No frio da manhã do domingo que se seguiu, corro pela floresta de Karura, a maior floresta de Nairóbi. Em meio aos gritos de macacos e canto dos pássaros, meu telefone toca. A mensagem de Mary Wykstra, fundadora da Action for Cheetahs in Kenya, foi breve: “acabei de ser informada de que o guepardo faleceu”. Pisquei olhando a copa das árvores, que pareceu escurecer.

            Ela sobreviveu até sábado à noite. Com a lua oculta nas sombras, nos limites da cidade e longe de casa, ela partiu.

            Fantasmas

            Recentemente, fui lembrada do conceito de “espécie fantasma”, sobre o qual li pela primeira vez em um ensaio de Robert MacFarlane, escritor britânico da natureza, publicado em uma edição da revista Granta de 2008. Segundo a definição do autor, é “uma espécie que foi superada por seu ambiente... a última de sua linhagem”.

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              O guepardo, retratado na imagem na Reserva Nacional de Samburu antes da chegada do socorro, é um dos quatro que morreram — todos de causas diferentes — na região. “Ser testemunha dos últimos dias de vida desse guepardo é uma experiência que nunca vou esquecer”, afirmou a fotógrafa Nichole Sobecki. “Minha esperança é que haja uma iniciativa mais decisiva da humanidade para a espécie como um todo.”

              Foto de Nichole Sobecki

              O mundo atual parece estar cada vez mais repleto desses espíritos. O guepardo não é o único a desaparecer de nossa paisagem; longe disso. De acordo com o Relatório Planeta Vivo de 2020 da organização não governamental World Wildlife Fund, as populações de animais silvestres já despencaram em dois terços desde a década de 1970, em grande parte, devido a mudanças na ocupação do solo e ao comércio de animais silvestres. É por isso que Njoroge afirma ter se empenhado tanto em salvar o guepardo. “Ela era jovem e saudável, com uma chance de recuperação, e restam tão poucos indivíduos”, lamentou ele.

              Aprendi que os guepardos têm um amplo vocabulário sonoro, como ronrons, assobios, trinados e ganidos. Seus trinados agudos podem ser ouvidos por grandes distâncias e são usados durante o acasalamento ou pelas mães ao chamar os filhotes. Suas orelhas pequenas e redondas captam uma frequência sonora muito maior do que os humanos podem imaginar.

              Voltei à floresta de Karura muitas vezes desde que recebi a mensagem de Wykstra sobre Nichole, o guepardo, e minha mente parece sempre retornar àquele dia. Às vezes, acho que ouço um trinado felino agudo por entre as árvores. Provavelmente é apenas um fantasma.

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