Por que as sanguessugas ainda são usadas na medicina?

Há muito descartados como um retrocesso à Idade Média, os médicos têm se voltado para as sanguessugas para ajudar pacientes de transplantes e cirurgias plásticas.

Por Priyanka Runwal
Publicado 23 de dez. de 2022, 08:00 BRT

Sanguessugas médicas são vistas em uma instalação de criação desses parasitas em Biebertal, Alemanha.

Foto de Tim Wegner Laif, Redux

Um tipo raro de câncer chamado sarcoma sinovial levou Ellie Lofgreen ao Hospital da Universidade de Utah durante o verão nos Estados Unidos. Os cirurgiões removeram um tumor – do tamanho de um pequeno melão – enrolado na articulação do joelho e também cortaram alguns centímetros de osso e músculo conectados ao joelho. 

Eles inseriram um implante de metal em sua perna e o cobriram com uma grande aba de músculo e pele transplantada da parte superior da coxa. Mas algumas horas depois, o retalho começou a ficar roxo, um sinal, os médicos sabiam, de que o tecido transplantado estava morrendo.

Salvar o enxerto foi fundamental, então, a equipe médica propôs um tratamento que surpreendeu Lofgreen: sanguessugas. “Fiquei absolutamente chocado”, diz a moradora de Idaho, de 31 anos. “Minha reação inicial foi: tudo bem, menos isso.”

Além do fator nojento, o uso de sanguessugas na medicina moderna muitas vezes surpreende os pacientes, uma vez que esses parasitas sugadores de sangue foram associados ao charlatanismo. Mas seu uso em cirurgia plástica e reconstrutiva aumentou desde 2004, quando a Food and Drug Administration dos EUA aprovou sanguessugas como um dispositivo médico para aliviar veias congestionadas e restaurar o fluxo sanguíneo em enxertos comprometidos.

À esquerda: No alto:

Sanguessugas medicinais mediterrâneas (Hirudo verbana) alimentam-se de sangue no Laboratório de Zoologia de Invertebrados, dos Museus Reais de Ontário, Canadá, como parte de uma exposição, em 29 de outubro de 2019.

Foto de Steve Russel Toronto Star, Getty Images
À direita: Acima:

Sanguessugas se contorcem dentro de frascos de vidro no International Medical Leech Center em Udelnaya, Rússia.

Foto de NATALIA KOLESNIKOVA AFP, Getty Images

Quando os médicos prendem um pedaço de tecido a outra parte do corpo, eles conectam os vasos sanguíneos do enxerto aos do tecido circundante para manter o suprimento de sangue. Essas cirurgias geralmente são bem-sucedidas, mas em situações em que não saem conforme o planejado, o primeiro passo é levar o paciente de volta à sala de cirurgia, reexaminar os pontos e recolocar os vasos sanguíneos. Mas, embora rara, essa correção também pode falhar.

“As veias são tão frágeis”, destaca Jayant Agarwal, chefe de cirurgia plástica da Universidade de Utah. Apesar de fazer a conexão, por exemplo, o fluxo sanguíneo ainda pode ser contido porque a extremidade de uma veia foi danificada durante um acidente. Outras vezes, encontrar uma veia em um dedo cortado, por exemplo, pode ser um desafio. Sem essa conexão, o sangue pode se acumular no tecido transplantado, e é aí que entram as sanguessugas.

Eles fornecem suporte temporário à vida até que os próprios vasos sanguíneos do corpo cresçam neste pedaço de tecido transferido, detalha Jeffrey Janis, especialista em cirurgia plástica do Centro Médico Wexner, da Universidade Estadual de Ohio. “Sem essa ajuda, o tecido pode morrer”, afirma.

De onde vêm as sanguessugas médicas

Embora existam mais de 600 espécies de sanguessugas, incluindo algumas que não sugam sangue, o Hirudo medicinalis europeu e o Hirudo verbana mediterrâneo são usados ​​com mais frequência na medicina. Eles têm três mandíbulas semelhantes a serras, cada uma com cerca de 100 dentes, que os animais usam para perfurar a pele.

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    Um trabalhador lida com sanguessugas sendo criadas para terapias médicas e veterinárias em uma instalação em Biebertal, Alemanha.

    Foto de Tim Wegner Laif, Redux

    Durante décadas, laboratórios em vários países, incluindo Reino Unido, Estados Unidos, França, Turquia e Ucrânia, criaram essas sanguessugas médicas. Carl Peters-Bond, da Biopharm UK, uma empresa que fornece cerca de metade das sanguessugas médicas usadas em hospitais em todo o mundo, faz isso há quase 30 anos. 

    Demora entre um e dois anos para criar uma sanguessuga pronta para uso médico, ele explica. O processo envolve alimentá-los entre três e 10 semanas, e depois entre quatro e cinco meses. Em seguida, eles passam fome por até dois anos. “Só enviamos sanguessugas com a barriga vazia”, detalha Peters-Bond.

    Assim que chega uma chamada de emergência, Peters-Bond embala entre uma dúzia e 60 sanguessugas em uma jarra cheia de gel e as envia para um hospital. Às vezes, as farmácias hospitalares pré-encomendam e armazenam sanguessugas médicas em uma geladeira para quando um paciente, com um dedo decepado ou que precisa de uma reimplantação da orelha ou cirurgia de reconstrução da mama, precisar delas. Mas essas criaturas vêm com uma data de validade antes de três meses, menciona Peters-Bond.

    Como funciona a terapia de sanguessuga 

    Quando uma sanguessuga morde, suga lentamente o sangue e injeta compostos como hirudina e calina – presentes em sua saliva – que impedem a coagulação do sangue. A saliva da sanguessuga também contém substâncias semelhantes à histamina que dilatam os vasos sanguíneos e melhoram o fluxo sanguíneo. Os médicos também usaram anticoagulantes como a heparina para prevenir a formação de coágulos sanguíneos durante cirurgias reconstrutivas. Mas você ainda precisa da sucção ativa de sangue, diz Agarwal.

    Dependendo do tamanho do enxerto e do grau de congestão, a sanguessuga pode continuar por três a 10 dias ou mais, até que o tecido pareça “menos inchado, menos roxo, mais normal”, explica Janis. Os pacientes permanecem no hospital enquanto a equipe médica supervisiona o processo – substituindo cada sanguessuga cheia de sangue por uma nova faminta. Cada bicho só pode ser usado uma vez e é afogado em álcool depois de cumprir seu propósito.

    Ao longo de duas semanas, Lofgreen teve mais de 100 sanguessugas drenando seu tecido de aparência suja. Com a ajuda de enfermeiras e sugestões via Facebook, sua família nomeou cada um desses invertebrados, que se chama leech, em inglês. Alguns dos favoritos de Lofgreen incluíam Aleecha Keys, Clint Leechwood, Sir Leech-a-lot e Queen Laleecha. 

    A cada quatro horas, uma enfermeira entrava e colocava uma nova sanguessuga, que sugava sangue entre 15 a 120 minutos antes de cair na cama de Lofgreen. Durante a terapia, os médicos lhe deram transfusões de sangue para repor o sangue perdido.

    Mas conseguir que a sanguessuga se agarrasse, às vezes, era uma luta; garantir que ela permanecesse onde deveria foi mais complicado. Inicialmente, as enfermeiras usaram um copo de plástico colado na pele de Lofgreen para conter a sanguessuga. Mas o bicho costumava fugir. A equipe então criou uma barreira usando um pedaço de gaze com um buraco onde eles queriam que a sanguessuga se fixasse; eles esperavam que a gaze o desencorajasse de se espalhar para a pele ao redor. Mas isso também não era infalível. O que funcionou melhor foram os olhos atentos da mãe e da irmã da paciente. 

    Ao longo do dia, elas se revezavam em busca de sanguessugas que tentavam escapar e imediatamente alertavam as enfermeiras. Lofgreen não sentiu nenhuma sensação quando esses parasitas morderam o tecido transplantado, mas se incomodou quando eles morderam outra parte da pele. “Era como alfinetes e agulhas”, lembra.

    Com o tempo, a parte de seu tecido que inicialmente parecia necrosada ficou roxa clara, e a pele parecia mais normal. “Tivemos algum sucesso com as sanguessugas”, diz Lofgreen. 

    Mas depois que ela voltou para casa, uma pequena parte do retalho infeccionou e teve de ser removida. A infecção não estava ligada à sanguessuga, mas sim ao resultado de uma ferida aberta. No entanto, ela credita as criaturas escorregadias e viscosas por salvar a maior parte da aba transplantada.

    Um estudo que analisou 277 casos de uso de sanguessuga médica relatou uma taxa de sucesso de 78%. “É uma opção muito atraente para o salvamento de parte de um tecido”, diz Ernest Azzopardi, especialista em cirurgia plástica da University College London, na Inglaterra, e coautor do estudo. Mas a falta de testes de controle randomizados e robustos, o padrão-ouro para avaliar a eficácia de uma intervenção, significou menos confiança no uso da terapia com sanguessugas.

    Outra desvantagem é que os pacientes podem desenvolver infecções de pele em resposta a esses tratamentos devido à bactéria Aeromonas, que vive nas entranhas das sanguessugas e é encontrada em sua saliva. Criadores de sanguessugas como Peters-Bond não usam antibióticos. Embora as drogas possam eliminar essas bactérias intestinais, elas voltam, diz ele. “O que fazemos é matar as sanguessugas de fome para que não haja presença de sangue no intestino, e as bactérias sejam mínimas.” 

    Nos hospitais, os médicos geralmente prescrevem antibióticos aos pacientes como medida preventiva, mas estão surgindo evidências de que algumas bactérias Aeromonas desenvolvem resistência a medicamentos comumente usados, tornando a terapia um desafio.

    Sanguessugas robóticas 

    Durante anos, os cientistas procuraram alternativas à sanguessuga. As primeiras tentativas datam do século 19, quando as sanguessugas eram muito procuradas na Europa e os invertebrados estavam se tornando escassos e, portanto, mais caros. 

    Em 1817, Jean-Baptiste Sarlandière, um anatomista e fisiologista francês, desenvolveu um aparelho chamado bdelômetro, que drenava o sangue dos pacientes.

    Agarwal, por exemplo, trabalha com colegas da Universidade de Utah desde 2013 para desenvolver uma sanguessuga mecânica que pode fornecer um anticoagulante, mas também imitar a sucção das sanguessugas. O protótipo consiste em um conjunto de agulhas que perfuram a pele, onde uma agulha central forneceria a heparina anticoagulante ao tecido saturado de sangue e agulhas ao redor conectadas a uma bomba sugariam o sangue.

    Este dispositivo do tamanho de um polegar permitiria aos médicos controlar o volume e a taxa de sangue aspirado, o que não é possível quando se usam sanguessugas reais. Por enquanto, a equipe tenta aperfeiçoar o fluxo do anticoagulante no tecido onde o aparelho está inserido.

    Outros cientistas também desenvolveram protótipos semelhantes que são promissores. Alguns testaram seu desempenho em animais. Mas em termos de uma substituição mecânica pronta para uso em humanos, “ainda não chegamos lá”, pondera Azzopardi. Por enquanto, esses parasitas sugadores de sangue continuam ocupando um nicho, mas um lugar importante na medicina moderna.

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