Conheça a galinha ancestral que conviveu com os dinossauros

O animal andava pelo litoral de onde hoje é a Europa pouco antes do impacto do asteroide causar um evento de extinção global.

Por John Pickrell
Publicado 25 de mar. de 2020, 16:30 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Imagem em 3D do crânio da ave moderna mais antiga conhecida, Asteriornis maastrichtensis.
Imagem em 3D do crânio da ave moderna mais antiga conhecida, Asteriornis maastrichtensis.
Image by Daniel J. Field, University of Cambridge

HÁ VINTE ANOS, perto da fronteira entre a Bélgica e a Holanda, um caçador amador de fósseis chamado Maarten van Dinther removeu um bloco de rocha comum do tamanho de um baralho de cartas. Embora ele não soubesse disso na época, a pequena placa continha um crânio minúsculo e perfeito do parente direto mais antigo já descoberto das aves modernas, uma ave que foi contemporânea dos dinossauros.

O animal, apelidado carinhosamente de ‘galinha maravilha' pela equipe internacional de cientistas que analisou o fóssil, viveu há 66,7 milhões de anos, apenas 700 mil anos antes do impacto do asteroide que matou todos os dinossauros não aviários. Batizada de Asteriornis em um artigo publicado na revista científica Nature, a espécie — conhecida a partir de fósseis de seus membros posteriores, além de seu crânio — possui características semelhantes aos patos e às galinhas, sugerindo relação com o ancestral compartilhado de ambos os grupos.

Reconstrução da ave moderna mais antiga do mundo, Asteriornis maastrichtensis, em seu habitat original, feita por ...
Reconstrução da ave moderna mais antiga do mundo, Asteriornis maastrichtensis, em seu habitat original, feita por um artista. Partes da Bélgica eram cobertas por um mar raso há 66,7 milhões de anos e as condições eram semelhantes às praias tropicais modernas, como as Bahamas. A Asteriornis tinha pernas bastante longas e pode ter habitado a costa pré-histórica.
Foto de Illustration by Phillip Krzeminski

“Esta é uma descoberta extraordinária e emocionante, que revela novas ideias em um capítulo muito pouco conhecido da evolução aviária”, diz Gerald Mayr, ornitólogo e especialista em evolução de aves do Instituto de Pesquisa Senckenberg em Frankfurt, Alemanha, que não participou do novo estudo.

Asteriornis era uma ave costeira de pernas longas que provavelmente conseguia voar e passava seu tempo vasculhando as praias da Europa do fim do Cretáceo. Essas praias tinham fileiras de ilhas em mares quentes e rasos, e um clima semelhante ao das Bahamas de hoje.

Contemporânea do T. rex

“Esta é a primeira vez que vimos o crânio bem preservado de uma ave moderna da era dos dinossauros”, diz Daniel Field, principal autor do estudo e paleontólogo da Universidade de Cambridge. “Asteriornis nos fornece uma visão mais clara de como eram as aves modernas na... época em que o T. rex e os Triceratops ainda estavam vivos.”

O fóssil de 66,7 milhões de anos foi encontrado no Hemisfério Norte, enquanto todos os outros restos de aves modernas do período Cretáceo são do Hemisfério Sul. Esses fósseis incluem os ossos de uma espécie parecida com o pato chamada Vegavis e foram encontrados em rochas de 66,5 milhões de anos na Península Antártica e descritas em 2005.

Ao passo que muitas aves conviveram com os dinossauros, a maioria era membro de grupos arcaicos, como os Enantiornithes dentados, que foram extintos com a maioria dos animais terrestres maiores. Todas as aves modernas se originaram de um único grupo chamado Neornithes, que apareceu no fim do período Cretáceo.

“O espécime é lindo, o primeiro da Neornithes realmente interessante do Cretáceo”, afirma Jingmai O’Connor, especialista em aves fossilizadas do Instituto de Paleontologia e Paleoantropologia de Vertebrados em Pequim, na China, que não participou do novo estudo.

Até agora, a maioria dos fósseis de aves do Cretáceo relacionadas a espécies vivas era “extremamente fragmentada e duvidosa”, diz ela, mas a nova descoberta sugere a possibilidade de encontrar outros parentes modernos e bem preservados que viveram antes do impacto e do evento de extinção.

Anatomia da ‘galinha maravilha’

A Asteriornis provavelmente se assemelhava ao último ancestral comum dos Anseriformes, uma ordem de aves que inclui patos e gansos, e dos Galliformes, como as galinhas e os perus. “Já sabíamos que esses grupos haviam se dividido durante o Cretáceo, então sabíamos que os ancestrais desses grupos estavam por perto”, diz O’Connor. “Mas agora os paleontólogos finalmente encontraram um.”

Os crânios das galinhas e dos patos “são muito diferentes nos dias atuais, de modo que o crânio de Asteriornis fornece o primeiro vislumbre que já tivemos de como provavelmente era o crânio do ancestral comum mais recente desses grupos”, explica Field.

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    Modelo em tamanho real, impresso em 3D, do crânio fossilizado de Asteriornis, criado pelo principal autor ...
    Modelo em tamanho real, impresso em 3D, do crânio fossilizado de Asteriornis, criado pelo principal autor do novo estudo, Daniel Field, da Universidade de Cambridge.
    Courtesy of Daniel J. Field, University of Cambridge

    Outros grupos de aves vivas que parecem ter surgido durante o  período Cretáceo incluem as aves Paleognathae, como os avestruzes, emus, emas e casuares. Paleognathae, Anseriformes e Galliformes são algumas das ramificações mais antigas da árvore genealógica das aves modernas, e muitos outros grupos de aves podem ter aparecido somente após o impacto do asteroide.

    Uma descoberta casual

    Depois de encontrar os fósseis da ‘galinha maravilha’ em 2000, van Dinther doou os espécimes para o Museu de História Natural de Maastricht, na Holanda. O curador do museu e coautor do novo estudo, John Jagt, enviou a Field em 2018 os quatro pequenos blocos de rocha com ossos de membros aparecendo.

    Pela aparência externa dos fósseis, Field tinha poucas esperanças de encontrar algo mais emocionante do que ossos quebrados dos membros. Mas as aves do fim do Cretáceo são raras, então ele decidiu analisar os fósseis por tomografia computadorizada de alta resolução para visualizar o que estava escondido dentro da rocha.

    Ele e um de seus alunos de doutorado, Juan Benito, ficaram surpresos ao descobrir “um crânio 3D maravilhosamente preservado, quase completo, de uma ave moderna”, diz Field. “É o primeiro crânio de uma ave moderna de toda a era Mesozoica e um dos crânios de ave fossilizada mais bem preservados de qualquer época.”

    A descoberta foi um dos momentos mais emocionantes da carreira científica de Field até hoje, diz ele. Os autores do estudo batizaram a nova espécie de Asteria, a deusa grega Titã das estrelas cadentes, que se transformou em uma codorna — um nome adequado para uma ave que viveu pouco antes do impacto que marcou o fim da era dos dinossauros, diz Field.

    Montando o quebra-cabeça da história das aves

    Diversas descobertas nos últimos anos revelaram as origens pré-históricas de grupos de aves vivas e como esses animais conseguiram sobreviver a um dos maiores eventos de extinção da história da Terra. Aves fossilizadas da Nova Zelândia e da Antártica que viveram logo após o impacto foram descritas como espécies nos últimos anos, diz Mayr.

    Como muitos dos fósseis mais antigos de aves modernas são do Hemisfério Sul, incluindo a recordista anterior de ave moderna mais antiga, a Vegavis da Antártica, alguns paleontologistas haviam sugerido o supercontinente sul de Gondwana durante a época dos dinossauros como local de origem das aves modernas. Mas essa nova descoberta de uma ave que é ainda mais velha que a Vegavis no Hemisfério Norte coloca essa teoria por terra.

    “Nesse ponto, acho que a única coisa que podemos dizer com certeza é que as origens geográficas das aves modernas são realmente misteriosas”, afirma Field. “Somente os fósseis encontrados no futuro serão capazes de nos revelar a origem das aves modernas na Terra.”

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