Especialistas alertam sobre pandemias há décadas. Por que não nos preparamos?

Autora luta para entender por que ignoramos os alertas de catástrofes e espera que dessa vez seja diferente.

Por Robin Marantz Henig
Publicado 13 de abr. de 2020, 10:58 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT

Com hospitais sobrecarregados pelos casos de Covid-19, a cidade de Nova York, nos EUA, passa a contar com unidades de terapia intensiva improvisadas no Central Park. A rápida disseminação do novo coronavírus pegou a maior parte do mundo despreparada, apesar das décadas de avisos por parte de cientistas.

Foto de Misha Friedman, GETTY IMAGES

EM MINHA OBSESSIVA leitura sobre a pandemia de coronavírus, evitei artigos que abordassem os deslizes iniciais que poderiam ter impedido a Covid-19 se simplesmente tivéssemos sido mais atenciosos, organizados e ágeis. Esses artigos estavam intensificando o meu nível de ansiedade. Eu imaginava que o momento de nos lamentarmos dizendo “poderíamos, deveríamos” viria mais tarde; o que importa agora é o que precisa ser feito nos próximos dias e depois disso.

Também existe um motivo pessoal para eu boicotar artigos sobre os primeiros sinais de alerta: cientistas já detalhavam esses alertas prévios havia décadas e uma série de jornalistas científicos vinham escrevendo sobre esse estudo. Eu era uma dessas jornalistas.

Quando comecei a pesquisa para escrever o livro A Dancing Matrix em 1990, o termo “vírus emergentes” havia acabado de ser cunhado por um jovem virologista chamado Stephen Morse, que se tornaria o personagem principal no meu livro. Escrevi sobre como os especialistas estavam identificando condições que poderiam resultar na introdução de novos patógenos potencialmente devastadores — mudanças climáticas, urbanização desenfreada, proximidade de humanos a animais selvagens ou rurais, os quais podem se tornar reservatórios virais — sendo que a propagação mundial desses micróbios é acelerada por guerras, pela economia globalizada e pelo tráfego aéreo internacional. Escrevi que muitos de nós seguiríamos despreocupadamente com nossas vidas apesar da crescente ameaça. Alguém se identifica?

“A única grande ameaça à continuidade da dominância humana no planeta são os vírus.” Usei essa frase impactante de Joshua Lederberg, vencedor do prêmio Nobel, presidente da Universidade de Rockefeller e chefe do Morse, na introdução do meu livro. Na época, eu achava que isso era um pouco melodramático. Agora, essa me parece verdadeira.

Outro dia, telefonei para Morse para saber como ele estava. Ele é professor de epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública Mailman da Universidade de Colúmbia e me contou que atualmente faz parte da faixa etária mais vulnerável. (Eu também faço). Ele e a esposa estão em isolamento voluntário em seu apartamento no bairro de Upper West Side da cidade de Nova York.

“Sim, estou me sentindo desanimado por constatar que não estávamos mais bem preparados depois de tudo isso e ainda estamos em profunda negação”, contou Morse. Ele logo citou uma frase do guru de administração Peter Drucker, o qual foi questionado certa vez “Qual é o pior erro que você poderia fazer?” E sua resposta, de acordo com Morse, foi: “Estar prematuramente certo.”

Mas é claro que eu e Morse não entendemos o que significava “certo”, nem prematuramente, nem qualquer outra interpretação. Na verdade, ninguém entendeu. Quando eu estava divulgando meu livro, me perguntaram qual provavelmente seria a próxima pandemia, respondi que a maioria das minhas fontes tinha dito que seria a influenza.

“Nunca gostei de listas”, Morse me contou agora, e acrescentou que ele sempre soube que a próxima peste poderia ser proveniente de qualquer lugar. Mas no início da década de 1990, a tendência entre seus colegas era concentrar-se na influenza e, por consequência, a minha também era. Talvez tenha sido um engano; contar para as pessoas que a pandemia seguinte seria causada pelo vírus influenza não parece nem um pouco catastrófico. Gripe? Eu pego isso todo ano. Já tem vacina para isso.

Então, talvez os alertas fossem fáceis de ser ignorados, como “é só uma gripe” — apesar de eu ter insistido, ao longo de todo o meu livro e sempre que falava a respeito dela, em chamar o vírus por seu nome completo, influenza, para privar de qualquer possível familiaridade. Talvez meu livro fosse muito obscuro ou eu deveria ter me esforçado mais para propagar sua mensagem. Talvez eu deveria ter martelado mais na questão dos vírus emergentes em vez de divagar e escrever sobre tantas outras coisas.

Mas outros jornalistas também estavam escrevendo livros com a mesma mensagem. Alguns foram grandes sucessos de vendas; eu brincava que o meu era o “prefácio” dos livros que ganharam destaque apenas um ano depois, Zona Quente de Richard Preston e A Próxima Peste de Laurie Garrett. (Mais recentemente, houve outro bestsellerSpillover de David Quammen, uma continuação da história que ele escreveu sobre doenças emergentes para a National Geographic, em 2007.) Todos eles descrevem os mesmos cenários desastrosos, os mesmos exercícios de guerra, os mesmos lamentos de que estamos terrivelmente despreparados. Por que nada disso foi suficiente?

É possível que um dos cientistas citados no meu livro, Edwin Kilbourne, tivesse algo a dizer sobre isso. Kilbourne, um dos principais pesquisadores da vacina contra a influenza, era esquálido e tinha cavanhaque; depois de conhecê-lo em sua sala, na Faculdade de Medicina Mt. Sinai, vestindo um jaleco, eu o descrevi como uma mistura de Pete Seeger e Jonas Salk. (Somente depois de sua morte, aos 90 anos de idade, percebi essa oportunidade única que tive. Seu obituário no The New York Times, em 2011, citava que, além de especialista em influenza, Kilbourne também era poeta com obras publicadas — no entanto, à diferença de Pete Seeger, seus poemas continham versos irregulares. Também incluía dois versos seus sobre o carneiro-selvagem: “Seu cortejo lanoso não é macio nem untuoso/ E, portanto, pode ser corretamente chamado de indisciplinado.”)

Em meados da década de 1980, Kilbourne foi convidado para participar de uma conferência no Banbury Center, em Long Island sobre “Vírus geneticamente alterados e o meio ambiente”. Ele aproveitou essa oportunidade para conceber a ideia de um vírus realmente aterrador, com todas as qualidades que o fariam ser o mais contagioso, o mais letal e o mais impossível de se controlar. Ele o chamou de “vírus (mutante) maximamente maligno”, ou MMMV. Conforme descrito por Kilbourne, o MMMV teria a estabilidade ambiental do poliovírus, a alta taxa de mutação do influenzavírus, o espectro ilimitado do vírus da raiva e o potencial de longa latência do herpesvírus. Seria transmitido pelo ar e se replicaria no trato respiratório inferior, assim como a influenza, e introduziria seus próprios genes diretamente no núcleo do hospedeiro, como o HIV.

Esse novo coronavírus não é exatamente o horripilante MMMV de Kilbourne, mas apresenta muitas de suas características mais temidas: é transmitido pelo ar, sobrevive nas superfícies por diversos dias e replica-se no trato respiratório inferior. Para piorar, as pessoas podem apresentar casos leves ou assintomáticos, o que significa que, embora sejam uma fonte de contágio, frequentemente sentem-se bem o bastante para sair pelas ruas, ir trabalhar e tossir na nossa direção.

Mas, da mesma forma que Morse disse nunca ter sido fã de listas de “Coisas que muito provavelmente nos ameaçarão”, Kilbourne me contou 30 anos atrás que ele também não estava tentando fazer previsões precisas com sua apresentação do MMMV. Ele me disse que o intuito era demonstrar que “com os vírus, nos quais apenas algumas alterações podem representar uma enorme diferença na forma como os micróbios se comportam, tentar prever os caminhos da evolução e surgimento pode ser, de fato, traiçoeiro”.

E agora, neste momento que estamos esperando que o pior aconteça, refletindo por que os alertas foram amplamente ignorados, me pego pensando de novo em uma triste frase que escrevi em A Dancing Matrix: “Pergunte a um virologista de campo o que faz com que uma epidemia mereça ser pesquisada e, ele responderá com um cinismo característico: ‘a morte de uma pessoa branca.’ ”

Para o meu pesar, não consigo achar minhas anotações que podem ter o nome do verdadeiro “virologista de campo” que me disse isso. Alguém deve ter dito isso para mim e deve ter sido de um modo cínico. Acredito, ainda, com base em nossa lenta resposta coletiva a tantos surtos que vimos nas últimas três décadas, que esse senso de alteridade está na raiz de grande parte da complacência oficial, bem como pessoal, em relação a novas pestes virais.

Talvez já estivéssemos acostumados com a ameaça real de uma verdadeira crise internacional, pois já havíamos visto tantos perigos que “dessa vez eram para valer” e que acabaram se esvaindo, e também porque surtos e mais surtos permaneceram confinados somente a algumas regiões do mundo mais remotas e distintas da maioria de nós. Com exceção da AIDS, epidemias desenfreadas geralmente não acabavam globalizadas: a SARS em 2003 ficou restrita à Ásia, a MERS em 2012 praticamente não saiu do Oriente Médio, o ebola em 2014 foi, em sua maioria, uma calamidade africana. No resto do mundo, seguimos nos vendo livres disso tudo e era fácil atribuir a suscetibilidade de todas as outras pessoas a coisas que não existiam em nossa conveniente realidade. A maioria de nós não tem um camelo como meio de transporte, não come macacos, não manipula morcegos e gatos-de-algália vivos nos mercados.

No mesmo ano em que publiquei meu livro, Morse publicou um volume editado dos artigos acadêmicos chamado Vírus Emergentes. Lederberg tem uma participação no livro. “Alguns podem afirmar que a AIDS nos deixou sempre alerta a novos vírus”, escreveu Lederberg. “Gostaria que isso fosse verdade. Outros disseram que poderíamos fazer mais do que ficar apenas sentados, esperando a avalanche chegar” — e por “outros”, escreveu Lederberg, ele se referia a políticos, à população em geral e até mesmo “aos principais órgãos sanitários do mundo”. Ele ficou surpreso como as pessoas ainda insistiam em tapar o sol com a peneira “mesmo nos dias de hoje”, apesar da crescente ameaça de novas doenças virais.

Ele escreveu isso 30 anos atrás. O que ele pensaria de nós agora?

Repassar esse assunto com um urgente senso de alarde é, de fato, doloroso. Há uma estranha vertigem induzida por ver isso se revelando quase três décadas após eu escrever que isso ocorreria exatamente da forma que está acontecendo. Se naquela época eu tivesse sido mais contundente ao levantar a bandeira da vigilância e preparação — ou seja, se eu tivesse escrito um livro melhor — estaríamos vivendo isso agora?

As pessoas têm apresentado todas as espécies de teorias sobre a origem da pandemia atual, desde as mais previsíveis até as mais mirabolantes. Mas neste momento, em que cada semana que passa parece quase irreconhecível, há algo esquisito e talvez um pouco esclarecedor em ler as histórias do meu livro — histórias que ocorreram no século passado, quando novos vírus continuavam surgindo, acometiam uma população e, por fim, se esvaneciam. Nunca (com exceção da pandemia de influenza de 1918-19) foi na escala que estamos testemunhando agora e nunca com essa ferocidade e com essa mescla específica de transmissibilidade e letalidade. Mas nós quase aprendemos a lição nos anos 1990; talvez agora aprendamos de verdade.

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