Há mais de 140 vacinas em teste contra a covid-19. Quando alguma será disponibilizada às pessoas?
Autoridades de saúde estabeleceram metas em relação à eficácia e segurança de uma vacina, mas comunicar isso ao público pode ser difícil.
Neal Browning recebe uma injeção em um estudo clínico de fase 1 que avalia a segurança de uma possível vacina conta a covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, na segunda-feira, 16 de março de 2020, no Instituto de Pesquisa em Saúde Kaiser Permanente Washington, em Seattle.
O SOLDADO DAVID LEWIS estava treinando com seu pelotão na neve apesar de não estar se sentindo bem devido à gripe. Era janeiro de 1976, e Lewis, com 19 anos, estava no Fort Dix de Nova Jersey, onde cerca de 230 outros soldados adoeceram. Mas Lewis, que desmaiou após 21 quilômetros de caminhada e adoeceu gravemente logo depois, foi o único a falecer. Sua morte deixou os Estados Unidos em pânico.
A cepa coletada em Fort Dix parecia semelhante à da pandemia de gripe ocorrida em 1918, e essa conexão fez o incidente ser destaque nos noticiários. Na década de 1970, havia campanhas para que grupos de alto risco se imunizassem contra a gripe — então o governo imediatamente procurou adaptar uma vacina contra a cepa de Fort Dix, com a expectativa de que 80% da população fosse imunizada.
Mas o resultado foi catastrófico. A vacina desenvolvida às pressas foi associada a mais de 500 casos de paralisia e 25 pessoas morreram. Logo após as primeiras notícias do surto de Fort Dix, metade da população se manifestou a favor de tomar a vacina. Mas, à medida que os eventos foram se desenrolando, apenas 22% da população norte-americana acabou recebendo a vacina até o fim do ano.
Agora, à medida que a covid-19 assola o mundo e com mais de 140 vacinas em desenvolvimento, a questão é: como saberemos se determinada vacina é eficaz e segura o suficiente para que seja oferecida às pessoas?
Embora uma vacina normal possa levar anos para ficar pronta, as desenvolvidas nesta pandemia estão avançando em um ritmo nunca antes visto. Pelo menos um candidato, da empresa de biotecnologia Moderna, está caminhando para a fase três dos estudos em julho. Em maio, o governo dos Estados Unidos lançou a Operação Warp Speed, investindo bilhões de dólares para acelerar o desenvolvimento e testes de possíveis vacinas.
Alguns cientistas estão receosos em aceitar a primeira vacina que for entregue ao mercado. É delicado para as autoridades de saúde pública decidirem quando uma vacina estará pronta para ser disponibilizada à população.
Por exemplo, se uma vacina com eficácia limitada for produzida em larga escala e promovida intensamente, os responsáveis pelo seu desenvolvimento podem deixar de lado os esforços para oferecer uma versão melhor ao mercado. “Quando se aceita uma vacina com baixa eficácia, provavelmente impedimos o desenvolvimento de uma vacina melhor”, adverte Roland Sutter, que atuou como coordenador de pesquisa, política, desenvolvimento de produtos e contenção da poliomielite na Organização Mundial da Saúde (OMS), em Genebra, Suíça, aposentado desde dezembro.
O principal desafio dos cientistas e responsáveis pela elaboração de políticas nos próximos meses será analisar o que torna uma vacina contra a covid-19 boa o suficiente para ser disponibilizada no mercado. Eles também precisam garantir verificações de segurança apropriadas — ou correr o risco de repetir os erros de 1976 e perder a confiança da população.
Definindo adaptações
O desenvolvimento de vacinas ocorre em estágios, começando com estudos de fase um. Esses ensaios clínicos geralmente avaliam a segurança inicial de um medicamento em um número relativamente pequeno de pessoas; às vezes cerca de 50 participantes, embora o número possa variar bastante.
Os estudos expandidos de fase dois trazem informações preliminares sobre a eficácia da vacina. Geralmente, a eficácia é avaliada por meio de análise das amostras sanguíneas dos participantes para identificar a presença de anticorpos ou outras sentinelas que produzem imunidade, capazes de neutralizar o patógeno em questão.
Os ensaios de fase três têm como objetivo avaliar melhor a eficácia da vacina em termos de proteção, ampliando o teste para milhares de participantes e comparando a proteção conferida àqueles que são imunizados com aqueles que recebem placebo.
Mas o teste real, segundo os cientistas que trabalham com vacinas, ocorre quando esses medicamentos preventivos são aprovados e disponibilizados amplamente.
“Um estudo clínico ainda é um ambiente bastante controlado”, diz Charlie Weller, chefe do programa de vacinas da Wellcome, financiadora de pesquisas biomédicas de Londres. As pessoas que participam do teste de uma vacina podem ter mais consciência de suas ações e correr menos riscos que possam expô-las a um vírus, pois estão sendo acompanhadas por médicos. “Quando você participa de um ensaio clínico, sabe que está em um ensaio clínico e isso pode mudar seu comportamento”, diz ela. “Então, o verdadeiro teste de uma vacina ocorre quando ela é disponibilizada à população”.
Mesmo após terem sido aprimoradas nos testes, algumas vacinas são simplesmente mais eficazes que outras. (As razões nem sempre são claras. É possível que tenha alguma relação com fatores intrínsecos do vírus em questão — sua propensão a sofrer mutações e como ele se propaga no corpo — e também como nosso sistema imunológico interage naturalmente com ele.)
A vacina inativada contra a poliomielite — três doses apresentam eficácia de praticamente 100% — e a vacina contra o sarampo, que possui eficácia de cerca de 96% após uma dose, estão entre as vacinas mais eficazes.
Outras imunizações são oferecidas apesar de a probabilidade de proteção contra doenças ser mais baixa. As cepas do vírus da gripe mudam todo ano e esse é um dos motivos pelo qual a vacina anual contra a doença reduz o risco de contrair o vírus em apenas cerca de 40 a 60%. A vacina contra a malária — conhecida como RTS,S — atenua a forma grave da doença em apenas um terço, mas ainda está sendo considerada como uma opção nas áreas mais afetadas do mundo. Isso porque a malária é muitas vezes fatal a crianças pequenas e salvar nem que seja um terço desse grupo é uma grande conquista, diz Matthew Laurens, especialista em doenças infecciosas pediátricas do Centro de Desenvolvimento de Vacinas (CVD) da Faculdade de Medicina da Universidade de Maryland, em Baltimore.
Na vacina contra a covid-19, o candidato ideal deve proporcionar imunidade em pelo menos 70% da população, incluindo idosos, segundo informações divulgadas em abril pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 28 de junho, Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, disse que uma vacina com eficácia de 70 a 75% seria aceitável.
Por outro lado, a OMS diz que o mínimo aceitável seria uma vacina contra a covid-19 com 50% de eficácia. Alguns pesquisadores não estão convencidos: “Cinquenta por cento seria terrível”, diz Byram Bridle, imunologista viral da Faculdade de Veterinária de Ontário, da Universidade de Guelph, no Canadá. “Para que essa pandemia seja vencida, precisamos alcançar imunidade de rebanho”, diz Bridle, e uma vacina eficaz apenas para 50% não permitirá que alcancemos esse objetivo.
Outros cientistas veem a vacina apenas como um dos elementos de uma abordagem multifacetada para reduzir a disseminação do coronavírus, juntamente com o distanciamento social e o uso de máscaras. “Temos que considerar todo o valor da vacina para a saúde pública”, diz Laurens.
Os imunologistas estão sempre atentos aos efeitos de novas vacinas porque já foram registradas surpresas desagradáveis no passado, embora tenham sido raras. Por exemplo, a primeira vacina contra o rotavírus que causa diarreia foi retirada do mercado em 1999, pois foi associada a uma movimentação incomum e potencialmente fatal de uma parte do intestino a outra. Esse evento adverso grave não foi detectado nos ensaios clínicos que antecederam sua implementação. Mais recentemente, em 2009, a vacina Pandemrix contra a gripe suína apresentou sinais de associação à narcolepsia na Europa. (A vacina nunca foi aprovada para uso nos Estados Unidos.)
“Em um ensaio clínico reduzido com as mesmas plataformas examinadas na vacina contra a covid-19, raramente observamos reações graves”, diz Wayne Koff, presidente e CEO do Human Vaccines Project, uma parceria público-privada que busca acelerar o desenvolvimento de vacinas. Adultos e crianças recebem milhões de doses de vacinas aprovadas todos os anos em todo o mundo e reações graves são extremamente raras.
Nos estudos de fase um realizados pela Moderna para a vacina contra a covid-19, quatro dos 45 indivíduos que receberam a vacina apresentaram uma reação adversa clinicamente significativa, incluindo um homem que desenvolveu febre alta e desmaiou. No entanto, os pesquisadores já sabiam que as vacinas à base de mRNA podem ocasionalmente superestimular o sistema imunológico, e três dos quatro indivíduos que apresentaram esses efeitos colaterais estavam recebendo a dose mais alta no estudo, que agora foi descartada.
Problemas com a aceitação do público
Supondo que uma vacina contra a covid-19 atenda aos parâmetros da OMS, incluindo o fato de “os benefícios da vacina superarem os riscos à segurança”, uma parcela desconhecida da população ainda precisará ser convencida a ser imunizada.
Em maio, uma pesquisa com mais de mil pessoas conduzida pelo Centro de Pesquisas Públicas da Associated Press-NORC constatou que cerca de 50% dos entrevistados afirmaram que tomariam a vacina contra a covid-19 quando ela estivesse disponível. O centro constatou a mesma proporção no passado quando perguntou aos entrevistados se tomariam a vacina contra a gripe e os resultados corroboram as constatações de uma pesquisa realizada na mesma época pelo Pew Research Center.
Mas uma proporção maior de pessoas ainda está indecisa sobre a imunização contra a covid-19 em comparação com a gripe: enquanto 18% dos entrevistados disseram que estavam indecisos quanto a tomar uma vacina contra a gripe, 31% disseram que não haviam se decidido sobre se imunizar contra a covid-19. Dentre aqueles que afirmaram que talvez optassem por não se vacinar, a preocupação com os efeitos colaterais da vacina contra a covid-19 era duas vezes maior do que com os efeitos de uma desenvolvida para prevenir a gripe.
A pesquisa também revelou uma divergência curiosa entre gêneros. “As mulheres tendem a ter menos certeza e a ficar em cima do muro”, diz Jennifer Benz, diretora adjunta do Centro de Pesquisa Públicas da Associated Press-NORC. Na pesquisa realizada pelo centro, 56% dos homens disseram que tomariam a hipotética vacina contra a covid-19, enquanto apenas 43% das mulheres afirmaram o mesmo. “As mulheres geralmente são responsáveis pela tomada de decisões na área da saúde. Portanto, trata-se de um grupo potencialmente influente quando o assunto é vacinar toda a família, tomar decisões de saúde e marcar consultas”, afirma Benz.
De acordo com Laurens, o principal desafio será explicar às pessoas como elas podem fazer sua parte para frear a pandemia, imunizando-se assim que uma vacina adequada estiver disponível. “Temos que fazer o máximo possível para educar a população sobre como as vacinas são testadas, os perfis de segurança, o que elas realmente são capazes de oferecer e como podem prevenir doenças em uma comunidade”, diz ele.
A hesitação em relação à vacina pode não ser o único obstáculo a ser superado. Weller prevê um cenário em que — pelo menos inicialmente — o interesse do público em obter a vacina possa ultrapassar a quantidade disponível.
Amesh Adalja, do Centro Johns Hopkins para Segurança da Saúde, em Baltimore, afirma que é possível que testemunhemos cenas “caóticas” se a demanda for alta e a disponibilização não ocorrer com cautela. “Seria como na Black Friday e aquilo que acontece quando as pessoas estão na fila”, diz ele, referindo-se ao dia de compras após o Dia de Ação de Graças nos Estados Unidos, quando multidões ficam impacientes e lotam as lojas.
Coordenadores de campanhas de vacinação anteriores para outras doenças estão acompanhando de perto o processo de desenvolvimento da vacina contra a covid-19 na esperança de evitar erros que prejudicariam a aceitação e o acesso. “Não será preciso muito para que a vacina perca a credibilidade aos olhos da população”, diz Sutter. “A disponibilização deve ser cuidadosamente pensada para não minar a confiança na vacina.”