Grupo de risco da covid-19 tem menor probabilidade de responder bem às vacinas
É difícil ensinar novos truques a um sistema imunológico antigo — fator que pode complicar a busca por uma vacina contra a doença.
Jenny Nelle, residente de uma casa de repouso da AWO em Kassel, Alemanha, tem sua temperatura auferida.
SE VOCÊ QUISER especificar um órgão essencial para combater a covid-19 — e entender por que a doença é tão prejudicial para os idosos — aponte o dedo para o meio do tórax e suba percorrendo o esterno. Pare um pouco antes de chegar no decote da blusa. Bem nesse local, acomodado logo atrás do osso entre os pulmões, está a glândula que despertou a curiosidade de Edith Boyd na década de 1930: o timo.
Boyd decidiu entender como o envelhecimento afeta seu tamanho. Ela estudou os dados de 10 mil autópsias coletadas na Universidade de Minnesota, EUA, onde trabalhava como professora assistente, e também analisou as informações levantadas por cientistas de quatro países europeus. Ela confirmou um padrão interessante: o timo, do tamanho de uma borracha escolar nos bebês, parecia aumentar durante a puberdade — depois encolher continuamente.
Mais 30 anos se passaram até que os cientistas descobrissem a função do timo; o último órgão importante a ter sua função descoberta. Por fim, se tratava do órgão que origina as células T, um importante conjunto de combatentes de patógenos, sendo que alguns deles também ajudam o sistema imunológico a criar defesas adicionais, como anticorpos.
A descoberta, combinada às constatações de anatomistas como Boyd, finalmente revelou por que doenças infecciosas novas como a covid-19 podem representar um risco duplo para adultos mais velhos. Em primeiro lugar, o envelhecimento esgota o arsenal de células T adaptáveis conforme o timo é substituído por tecido adiposo. O resultado é um sistema imunológico com menos capacidade de combater novos vírus. Uma análise realizada em 17 de julho de mais de 50 mil mortes por coronavírus nos Estados Unidos constatou que 80% das pessoas tinha 65 anos ou mais.
Em segundo, o envelhecimento do timo também pode dificultar o desenvolvimento da vacina para a pandemia. As vacinas passam instruções para o nosso sistema imunológico, trabalho facilitado pelas células T. Aos 40 ou 50 anos, o timo já esgotou a maior parte da reserva do tipo de célula T que consegue aprender a reconhecer patógenos desconhecidos e ‘treinar’ outras células imunológicas para combatê-los. Muitas vacinas dependem dessas células T.
Em função da covid-19, os pesquisadores precisam voltar a atenção para o desempenho das vacinas em idosos. A Moderna Therapeutics, por exemplo, que publicou os primeiros resultados do estudo de fase um da nova vacina de RNAm, está realizando um estudo de fase dois especificamente em adultos com 55 anos ou mais.
“Até muito recentemente, grande parte do foco da comunidade dedicada às vacinas estava em salvar vidas de crianças pequenas”, diz Martin Friede, coordenador da Organização Mundial da Saúde na área de pesquisa em vacinas e formas de administração. “As pessoas que mais precisam da vacina podem ser aquelas nas quais a vacina pode não funcionar”.
Estudos clínicos em pessoas mais velhas também são essenciais, porque nem todos envelhecem da mesma forma, acrescenta Friede. Não se trata apenas do timo: algumas pessoas conseguem caminhar por um campo de golfe, enquanto outras são muito frágeis para andar — e essas diferenças na vitalidade podem se traduzir em diferentes respostas à vacina.
Os desenvolvedores de medicamentos podem ajustar suas vacinas para aumentar as chances de proteger os idosos. Mas realizar essas alterações — e fazer com que grupos antivacina as aceitem — pode ser complicado.
Estimulando a imunidade
Os fabricantes de vacinas adquiriram certa experiência com a “imunossenescência” — disfunção do sistema imunológico em envelhecimento — por terem trabalhado na vacina da gripe. Os idosos são mais suscetíveis a essa condição e as vacinas contra a gripe normalmente oferecem menos proteção a eles.
Para solucionar a questão, a gigante do setor de vacinas Sanofi Pasteur, por exemplo, desenvolveu uma vacina contra a gripe chamada Fluzone para pessoas acima de 65 anos contendo quatro vezes mais ‘antígeno’. Os antígenos estimulam o sistema imunológico e são um componente molecular do patógeno capaz de desencadear a produção de anticorpos protetores no organismo. Um estudo de 2014 constatou que a versão com a dose maior era 24% mais eficaz do que a com a dose regular.
Outra forma de aumentar a eficácia das imunizações contra a gripe nos idosos é utilizar adjuvantes — ingredientes adicionados que fazem com que as vacinas estimulem o sistema imunológico de forma mais potente. A vacina Fluad, por exemplo, contém o adjuvante MF59, que é parcialmente derivado do esqualeno, óleo natural produzido pela pele e pelas plantas.
Adjuvantes já são utilizados em vacinas há cerca de um século, não apenas para a gripe ou para pessoas idosas. Mas mesmo aqueles que já foram testados e comprovados foram considerados perigosos pelos grupos antivacina.
Por exemplo, um adjuvante à base de esqualeno chamado AS03 da empresa farmacêutica GSK foi utilizado em uma vacina contra a pandemia de gripe suína de 2009. A vacina foi retirada do mercado após surgirem relatos de narcolepsia na Escandinávia e nunca chegou ao mercado dos Estados Unidos. Um estudo de 2014 com 1,5 milhão de pessoas conduzido pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos não encontrou nenhuma conexão entre a vacina criada para combater a pandemia e a narcolepsia — mas os grupos antivacina continuaram a culpar o adjuvante, alegando que ele provocava reações imunológicas em excesso.
Os médicos temem que essa desinformação sobre os adjuvantes possa fazer com que as pessoas hesitem na hora de se vacinar contra a covid-19.
“O movimento antivacina procura qualquer motivo para ir contra as vacinas”, diz Wilbur Chen, que dirige estudos clínicos envolvendo participantes adultos no Centro de Desenvolvimento de Vacinas e Saúde Global da Universidade de Maryland. “A discussão deles agora se baseia em: ‘Mas esses adjuvantes são perigosos’, acrescenta.
Mas Chen adverte aos desenvolvedores de vacinas para que não sejam condescendentes: “O problema quando damos atenção à preocupação deles é que ela inadvertidamente se torna legítima, e então eles dizem: ‘Veja como a preocupação era válida, por isso fizeram mudanças’”.
A GSK afirmou que produzirá um grande volume do adjuvante AS03 para possível uso pelos parceiros que estão desenvolvendo diversos tipos de vacinas contra a covid-19. A empresa afirma que a narcolepsia apresentada por algumas pessoas após serem vacinadas contra a gripe suína foi desencadeada por uma reação ao próprio vírus da gripe H1N1 que circulava na população.
O antigo não é novo
A idade nem sempre determina a intensidade da covid-19. As notícias mostram centenários combatendo a doença e adolescentes morrendo em decorrência dela. Um novo artigo da revista científica Science documenta uma série de respostas imunes à covid-19, independentemente da idade, incluindo uma que se tratava essencialmente de uma não resposta.
Essa falta de resposta entre alguns idosos do estudo “pode estar ligada à imunossenescência”, especula Michael Betts, imunologista da Escola de Medicina Perelman da Universidade da Pensilvânia e autor do estudo. “Algumas pessoas terão melhores resultados do que outras e, no momento, não sabemos necessariamente o que define isso”.
A imunossenescência não se trata apenas de um esgotamento de determinadas células T. Ela também enfraquece a resposta imune ‘inata’, a linha de frente da defesa do organismo contra o ataque de micróbios invasores, antes mesmo de produzir anticorpos capazes de reconhecer um antígeno específico.
Para piorar a situação, a imunossenescência não é o único desafio enfrentado pelos pesquisadores envolvidos no desenvolvimento de vacinas contra a covid-19 para idosos. Há evidências crescentes de que muitos idosos têm outro problema: seu sistema imunológico está ocupado lutando contra vírus que causam infecções por toda a vida após entrarem no organismo, como o citomegalovírus, que normalmente é benigno (CMV).
“Nos idosos, às vezes 20% do sistema imunológico é voltado para combater o CMV”, diz David Kaslow, vice-presidente de medicamentos essenciais da PATH, organização sem fins lucrativos de Seattle. “Suprimir todos esses vírus tem um custo.”
Os cientistas chamam de “inflammaging” (processo inflamatório relacionado ao envelhecimento): o sistema imunológico fica basicamente preso em um estado inflamatório. Assim, o organismo pode ter mais dificuldade para detectar um novo patógeno como a covid-19 — ou para ser estimulado por uma vacina contra ele.
“É quase como tentar escutar alguém pedindo ajuda em um recinto muito barulhento”, explica Friede. “Você não vai ouvir.”
Os pesquisadores que tentam estudar esses problemas de envelhecimento imunológico em laboratório enfrentam um problema específico: a escassez de camundongos idosos. Criar camundongos até que atinjam a terceira idade é caro para os fornecedores, por isso geralmente não têm um estoque grande.
“Tentei fazer um pedido de camundongos idosos no fim da semana passada com o nosso fornecedor habitual”, conta Byram Bridle, imunologista viral da Faculdade de Veterinária da Universidade de Guelph, no Canadá. “Eles não têm camundongos idosos e recentemente iniciaram um programa que permitirá o envelhecimento de camundongos. Camundongos com 18 meses de idade não estarão disponíveis para pesquisa até janeiro de 2021.”
Por fim, os pesquisadores de vacinas enfrentam um problema crítico relacionado à covid-19: nenhum deles trabalhou com o novo coronavírus antes. Segundo Friede, outras vacinas que foram adaptadas para pessoas idosas, incluindo aquelas contra gripe e herpes zoster, são essencialmente vacinas de reforço porque todas as pessoas já foram expostas à gripe e a maioria das pessoas idosas teve varicela, o vírus que também causa herpes zoster.
Além disso, devido à exposição, durante toda a vida, a diferentes coronavírus que causam resfriado, pode ser que os idosos já tenham um repertório de anticorpos capazes de reconhecer o SARS-CoV-2, o vírus que causa a covid-19. O que poderia impedir o corpo de desenvolver anticorpos mais eficazes contra ele. “Pode ser realmente ruim para a infecção”, diz Betts.
Ou infecções anteriores causadas por esses micro-organismos podem ser algo bom. Há novas evidências de que a exposição ao surto de SARS em 2003 ou aos coronavírus provenientes de animais tenha conferido a algumas pessoas uma resposta de células T contra o SARS-CoV-2. É necessário um estudo mais amplo para determinar a extensão dessa proteção e o que isso pode significar para uma vacina, considerando que o vírus ainda pode ser completamente novo para muitos sistemas imunológicos.
“No caso da covid-19, provavelmente teremos que preparar a população para algo nunca visto antes”, diz Friede.