Muitos dos infectados com a covid-19 perderam o olfato. Será que ele volta?
Enquanto cientistas tentam esclarecer a biologia básica do nariz, alguns pacientes estão se beneficiando com terapia para treino do olfato.
Profissional de saúde realiza teste olfativo para monitorar a perda de olfato em um morador do bairro de Altos de San Lorenzo, próximo da cidade de La Plata, na Argentina, em 24 de maio de 2020.
NO INÍCIO DE MARÇO, Peter Quagge começou a sentir sintomas da covid-19, como calafrios e febre baixa. Em uma determinada noite, enquanto cortava pedaços de frango cru para cozinhar para o jantar, ele percebeu que não sentia o cheiro da carne. “Deve estar bem fresco”, ele se lembra de ter pensado. Mas, na manhã seguinte, ele também não sentiu o cheiro do sabonete da marca Dial no chuveiro ou do alvejante que usou para limpar a casa. “Parece loucura, mas achei que a água sanitária estava estragada”, ele conta. Quando Quagge respirou fundo na abertura do frasco, o alvejante fez seus olhos e nariz arder, mas ele não conseguia sentir nenhum odor.
A incapacidade de sentir odores, ou anosmia, é considerada um sintoma comum da covid-19. Quagge foi diagnosticado com covid-19, embora não tenha sido testado, pois os testes não estavam amplamente disponíveis na época. Ele procurou tratamento de anosmia com diversos especialistas e ainda não recuperou totalmente o olfato.
Relatos de casos sugerem que entre 34 e 98% dos pacientes hospitalizados com covid-19 terão anosmia. Um estudo constatou que os pacientes com covid-19 têm 27 vezes mais probabilidade de perder o olfato em comparação a outras doenças. A anosmia acabou se tornando um indicativo da doença melhor do que a febre.
Para a maioria dos pacientes com covid-19 que sofrem de anosmia, o olfato volta dentro de algumas semanas, e os médicos ainda não sabem se o vírus pode causar perda de olfato de longa duração. Embora perder o olfato possa parecer um efeito colateral leve, as consequências podem ser devastadoras. O olfato está intrinsecamente ligado à autopreservação — a capacidade de identificar o odor da fumaça decorrente de incêndio, de vazamentos de produtos químicos ou de comida estragada — e à nossa capacidade de sentir sabores complexos e apreciar a comida.
“Temos o costume de nos reunir durante as refeições ou para beber algo”, diz Steven Munger, diretor do Centro de Odor e Sabor da Universidade da Flórida. “Se você não consegue participar totalmente disso, ocorre uma espécie de lacuna social.”
O olfato também desempenha um papel importante em nossas vidas emocionais, conectando-nos a pessoas queridas e lembranças. Pessoas sem olfato frequentemente relatam sentimentos de isolamento, depressão e perda do prazer na intimidade. Agora, os cientistas estão começando a compreender como a covid-19 afeta esse sentido tão importante, na esperança de que essas descobertas ajudem milhares de pessoas que acabaram de se tornar anosmáticas a obter respostas.
O que o nariz sabe
O sistema olfativo, que permite que humanos e outros animais sintam odores, é basicamente uma forma de decodificar informações químicas. Quando uma pessoa respira fundo, moléculas percorrem todo o nariz até o epitélio olfativo, uma pequena parte do tecido na parte posterior da cavidade nasal. Essas moléculas se ligam aos neurônios receptores olfativos, que enviam um sinal por meio do axônio, um prolongamento que passa pelo crânio e entrega a mensagem ao cérebro, que registra moléculas como, por exemplo, de café, couro ou alface podre.
Os cientistas ainda não possuem conhecimento completo desse sistema e também desconhecem exatamente o que ocorre quando ele para de funcionar. E a maioria das pessoas não percebe que a perda de olfato é bastante comum, diz Munger. “Essa falta de conhecimento público resulta em menos atenção prestada ao estudo das funções básicas do sistema.”
As pessoas podem perder o olfato após serem infectadas por um vírus, como os que causam a gripe ou um resfriado comum, ou após uma lesão cerebral traumática. Alguns nascem sem nenhum olfato ou podem perdê-lo em decorrência de tratamentos contra o câncer ou doenças como Parkinson e Alzheimer. O olfato também pode reduzir à medida que as pessoas envelhecem. Embora os distúrbios do olfato não sejam tão aparentes quanto a perda auditiva ou a deficiência visual, dados dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) mostram que quase 25% dos norte-americanos com mais de 40 anos relatam algum tipo de alteração no olfato e mais 13 milhões de pessoas possuem algum distúrbio mensurável como anosmia, perda total de olfato ou hiposmia, perda parcial. Essas condições podem durar anos ou até ser permanentes.
Não está claro se a anosmia desencadeada pela covid-19 é diferente de outros casos de perda de olfato causada por vírus, mas aqueles que tiveram anosmia devido à covid-19 demonstram aspectos únicos. Primeiro, notam a perda do sentido imediatamente, pois não vem acompanhada por entupimento ou congestão nasal que geralmente caracteriza os estágios iniciais da anosmia induzida por vírus.
“É bastante sério”, diz Danielle Reed, diretora associada do Monell Chemical Senses Center, na Filadélfia, que estuda a perda de olfato e paladar. “As pessoas simplesmente não conseguem sentir o cheiro de nada.”
Outra diferença notável é que diversos pacientes com covid-19 que relataram perda de olfato, o recuperam de maneira relativamente rápida em apenas algumas semanas. Ao contrário da maioria das pessoas que apresentaram anosmia devido a outros vírus, cuja perda do olfato pode durar meses ou anos.
Quagge acredita ter recuperado cerca de 60% de seu olfato até agora, mas conta que no início estava com medo, pois não tinha nenhuma informação sobre quando ou se conseguiria recuperá-lo. Por ser um ávido chef de cozinha amador, ele precisava de sua família para lhe dizer se o leite estava estragado e também não conseguia sentir o aroma do perfume da esposa. “São coisas que tocam a sua alma”, diz ele. “Fiquei bastante chateado.”
Como a covid-19 pode afetar a capacidade de sentir odores
Os cientistas estão apenas começando a se aprofundar no motivo pelo qual a covid-19 causa a perda do olfato e se ele afeta o sistema olfativo de forma diferente de outros invasores virais.
“Na verdade, sabemos muito pouco sobre as alterações no olfato quando ficamos resfriados”, diz Sandeep Robert Datta, professor de neurobiologia especializado em olfato na Universidade de Harvard. “Quais são as chances de você ter perda de olfato? Quanto tempo dura? Não temos conhecimento desses questionamentos básicos.”
O nariz é um dos principais pontos de acesso do SARS-CoV-2, vírus que causa a covid-19, ao organismo. Os pesquisadores já identificaram dois tipos de células nasais — células caliciformes e ciliadas — que são os prováveis pontos de entrada para o vírus. “Parece que o tecido nasossinusal é o lugar ideal para esse vírus”, diz Reed. “Muitas pessoas acreditam que, uma vez no nariz, posteriormente irá para os pulmões.”
Para entender como a covid-19 prejudica o sistema olfativo, primeiro os cientistas reduziram a lista de alvos potencialmente infectáveis. O SARS-CoV-2 precisa de duas proteínas, ECA2 e TMPRSS2, para invadir uma célula. Datta e outros pesquisadores procuraram células vulneráveis no sistema olfativo que expressassem essas duas proteínas.
Eles descobriram que os neurônios olfativos, onde as moléculas se ligam e acionam um mecanismo de sinalização para o cérebro, não são suscetíveis à covid-19. Na verdade, em um artigo publicado na revista científica Science Advances, Datta e seus coautores mostram que as proteínas estão presentes nas células de suporte do sistema olfativo, como células-tronco que regeneram os neurônios após serem lesionados e também nas células de sustentação, que ajudam a sustentar fisicamente os neurônios, remover as células mortas e movimentar os odores por meio do muco no sistema.
Compreender quais partes do sistema olfativo são afetadas é o primeiro passo importante para entender como o vírus prejudica a nossa capacidade de sentir odores. Mas John Ngai, neurocientista da Universidade da Califórnia em Berkeley e coautor do artigo, alerta que identificar as células-alvo é apenas uma peça de um quebra-cabeça muito maior.
Os neurônios olfativos funcionam por meio do transporte de íons carregados pelas membranas. Se a covid-19 altera a concentração de íons ao redor dessas células, talvez isso esteja impossibilitando os neurônios de enviar sinais ao cérebro. Uma resposta imune também pode danificar o sistema, ou uma inflamação pode estar afetando a parte do cérebro que processa os odores.
Mesmo com indícios preliminares, ainda restam muitas perguntas sem resposta. Por que algumas pessoas se recuperam em algumas semanas e outras não? A covid-19 causará a perda permanente do olfato em algumas pessoas? E se o vírus está se deslocando do sistema olfativo para o cérebro?
Com estudos mais aprofundados sobre como o SARS-CoV-2 interage com o sistema olfativo, Ngai explica: “talvez possamos entender melhor como tratar as pessoas”. No momento, não existem boas opções.
Aromaterapia
Tracy Villafuerte já se consultou com um alergista e um otorrinolaringologista desde que perdeu o olfato no final de março. “Eles foram diretos comigo: não temos nada para lhe dizer”, ela conta.
Assim como Quagge, ela ficou arrasada ao perceber que não conseguia sentir o cheiro de seus filhos, da casa onde cresceu ou se o brócolis estava queimando no fogão. Os dois começaram a participar da AbScent, uma comunidade on-line para pessoas que estão sofrendo com a perda de olfato. Villafuerte tentou utilizar suplementos vitamínicos, mas até agora não notou nenhuma melhora. “Precisamos de respostas”, diz ela. “Precisamos de algum tipo de pesquisa que nos diga: há esperança ou não?
Uma das possibilidades inclui o treino do olfato, um tipo de fisioterapia para o nariz. Todos os dias, os praticantes inalam alguns odores suaves em frascos de óleos essenciais, como eucalipto, cravo ou limão. Ao inalar, eles se concentram no odor, mesmo que não consigam de fato sentir o aroma.
Chrissi Kelly, fundadora da AbScent, incentiva as pessoas a imaginar o aroma desses óleos, relembrar a sensação e as conexões emocionais que um eucalipto ou um limão possam trazer, as lembranças associadas ao cravo ou à rosa. “Você precisa se concentrar”, diz ela. “Você precisa buscar o aroma.”
Um conjunto de evidências sugere que a terapia para treino do olfato pode ser eficaz, mas não há garantia de que dará certo para todos e não há pesquisas sobre o desempenho nos casos de perda de olfato em decorrência da covid-19. “Não há mal nenhum nesse treino”, diz Munger. “Mas ainda não se sabe se de fato será terapeuticamente útil.”
Pelo menos, a AbScent ajuda os pacientes da covid-19 com anosmia a se sentir menos solitários. Tentar descrever uma vida sem olfato é difícil e a condição geralmente é levada menos a sério do que outras perdas sensoriais.
“Não estou procurando simpatia”, diz Quagge. “Só não brinque com isso. Você só entende o que perdeu depois de perder algo. Se eu preferia perder meu olfato e paladar ou visão ou audição? Eu não sei mais responder isso.”