Como a nostalgia pode nos ajudar a lidar com a pandemia

Considerada antigamente um distúrbio cerebral causado pelo tilintar dos sinos das vacas, a nostalgia está sendo defendida devido a seus benefícios psicológicos em tempos de crise.

Por Nicole Johnson
Publicado 17 de ago. de 2020, 16:45 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Uma gravura de 1778 mostra quatro mercenários suíços — alguns dos primeiros indivíduos que figuraram na ...

Uma gravura de 1778 mostra quatro mercenários suíços — alguns dos primeiros indivíduos que figuraram na literatura médica da nostalgia — em repouso durante um momento de calma.

Foto de Swiss National Museum

Mary Widdicks é mãe solo e, desde o início da pandemia de covid-19, está confinada em casa com seus três filhos pequenos, três cães e três gatos. Depois de meses ajudando as crianças em casa com os estudos enquanto trabalhava remotamente, ela começou a sentir que os dias estavam ficando todos iguais. Então, no fim de maio, Widdicks foi de carro com as crianças para o cinema drive-in Harvest Moon Twin Drive-in, em Gibson, uma cidade do estado de Illinois, nos EUA. Fã do universo cinematográfico, Widdicks apreciou a pausa no confinamento, bem como a vibe da década de 1950 do local, com intervalos retrô de um cachorro-quente dançando.

“Eu tinha 9 anos quando fui pela primeira vez a um cinema drive-in, exatamente a idade da minha filha mais velha”, conta Widdicks. “Foi extremamente reconfortante contar aos meus filhos histórias de passeios como esse que fiz quando tinha a mesma idade deles.”

Com cinemas e outras opções de entretenimento familiar fechados devido ao coronavírus, os cinemas drive-in ressurgiram, com versões improvisadas em todo os Estados Unidos, em estacionamentos de lanchonetes e shoppings. Para muitos pais e avós, esses lugares são uma forma de compartilhar suas alegrias da infância. Mas a ascensão dos cinemas drive-in é apenas um exemplo da nostalgia que estamos acolhendo durante a pandemia.

“Acredito que muitas pessoas estão se voltando para a nostalgia, mesmo que inconscientemente, como uma força estabilizadora e uma forma de lembrar das coisas que mais gostam”, diz Clay Routledge, professor de psicologia da Universidade Estadual da Dakota do Norte e autor de Nostalgia: A Psychological Resource (Nostalgia, um recurso psicológico, em tradução livre).

Em um estudo recente que observou os efeitos da covid-19 nas opções de entretenimento, mais da metade dos consumidores relatou ter encontrado conforto ao rever conteúdos de televisão e de música que gostavam quando jovens. Encontros virtuais com o elenco de séries como Taxi Driver: Motorista de Táxi, Twin Peaks, e Melrose Place ajudam a relembrar os personagens amados do passado. Cada vez mais, estamos incorporando a nostalgia em nossos jogos, na moda e até em nossos sonhos durante a pandemia.

Krystine Batcho, professora de psicologia no Le Moyne College em Syracuse, Nova York, considera o ressurgimento da nostalgia durante a pandemia de covid-19 como uma reação natural. “Geralmente, as pessoas encontram conforto na nostalgia quando passam por perdas, ansiedade, isolamento ou incertezas”, diz ela.

A definição moderna de nostalgia consiste em “uma saudade emotiva ou uma afeição melancólica pelo passado, normalmente envolvendo um período ou local com conexões pessoais felizes”. Mas a história desse sentimento é muito menos agradável e mais complexa. Antigamente considerada uma doença, com opções de tratamento peculiares e potencialmente prejudiciais, a ciência mudou a visão sobre a nostalgia no fim do século 20, e estudos nas últimas décadas revelaram seus efeitos psicológicos, bons e ruins.

Conexões com o sino da vaca

A partir do século 17, diversas pessoas tentaram descrever clinicamente o sentimento específico de saudade e angústia, incluindo um diagnóstico médico que surgiu no fim da Guerra dos Trinta Anos da Europa Central (1618-1648) que chamou o fenômeno de el mal de corazon, ou “o mal do coração”. Mas foi o estudante de medicina suíço Johannes Hofer quem de fato cunhou o termo “nostalgia” em sua dissertação de 1688, juntando duas palavras gregas: nostos(“retorno”) e algos (“dor”).

Hofer estudou os efeitos da nostalgia em mercenários suíços e concluiu se tratar de um “distúrbio cerebral de origem essencialmente demoníaca.” Ele descreveu os sintomas da nostalgia como saudade obsessiva do lar, perda de apetite, palpitações, insônia e ansiedade. Ele acreditava que a obsessão alimentada pela falta que sentiam de suas casas permitia que espíritos de animais entrassem em suas mentes, causando distúrbios. Mais tarde, médicos militares suíços sugeriram que a nostalgia era causada pelo implacável tilintar dos sinos das vacas nos Alpes, que danificava as células cerebrais e os tímpanos dos soldados desencadeando sintomas perigosos.

A nostalgia foi considerada uma doença neurológica durante os séculos 17 e 18. Em uma determinada época, alguns médicos acreditavam que um “osso patológico” presente no corpo era responsável pela nostalgia, embora obviamente nunca tenha sido localizado. Foi apenas no século 19 que a comunidade médica passou a categorizar a nostalgia como uma aflição da psique.

Na época foi considerada um distúrbio psicopatológico, como a depressão e a melancolia. Quando milhares de imigrantes chegaram nos Estados Unidos nos séculos 19 e 20, os médicos se referiam à nostalgia como “psicose do imigrante” devido ao fato de as pessoas lamentarem a falta que sentiam de seus países de origem conforme tentavam construir uma nova vida.

Ao longo dos séculos, os tratamentos para a nostalgia foram esquisitos ou letais. Os pacientes tiveram que enfrentar sanguessugas, lavagem gástrica, sangramento, ópio, “emulsões hipnóticas quentes”, intimidações, ameaças e até mesmo danos corporais, inclusive a morte. Em 1733, um general russo ameaçou qualquer pessoa sob seu comando que sucumbisse aos anseios nostálgicos com a pena de ser enterrado vivo. Ao verem ele cumprir sua promessa, os soldados deixaram de lado o passado e se concentraram na difícil realidade do campo de batalha.

Neutralizadora existencial

No fim do século 20, a visão do mundo sobre a nostalgia mudou. Por um lado, pesquisadores de marketing e publicidade começaram a documentar o poder da nostalgia na definição de preferências por produtos de consumo, de acordo com Routledge da Universidade Estadual da Dakota do Norte.

 “A pesquisa empírica também foi muito importante para essa mudança, pois a antiga visão da nostalgia como doença se baseava em especulações teóricas e observações não científicas”, explica Routledge.

Em 1995, Batcho, do Le Moyne College, iniciou o Nostalgia Inventory, uma pesquisa com mais de 200 participantes desenvolvida para determinar a frequência e complexidade do sentimento de nostalgia nas pessoas. Os resultados serviram de base para pesquisas científicas sólidas e foi então que começaram a surgir os benefícios psicológicos.

Uma série de estudos publicados em 2013 constatou que “a nostalgia neutraliza o vazio que as pessoas sentem quando estão entediadas”. E uma análise do cenário científico conduzida em 2018  concluiu que a nostalgia atua como neutralizadora das questões existenciais. A nostalgia é uma forma de sentirmos esperança e inspiração, diz Routledge.

“A nostalgia nos move para o futuro”, diz ele. “Aumenta nosso desejo de buscar objetivos importantes na vida e a confiança de que podemos alcançá-los.”

Embora a nostalgia ofereça diversos benefícios psicológicos, o apego ao passado traz desvantagens. Um estudo de 2012 publicado no periódico European Journal of Social Psychology constatou que pessoas com “um forte hábito de se preocupar” expostas a algum tipo de estímulo nostálgico apresentavam “sintomas ampliados de ansiedade e depressão”, em comparação com as do grupo controle.

Batcho diz que é improvável que a nostalgia desencadeie depressão ou ansiedade, mas “uma pessoa que está clinicamente deprimida ou com transtorno de ansiedade está mais propensa a ‘se perder’ na nostalgia, ficando presa no devaneio nostálgico como fuga”, ela diz.

Os diversos tipos de nostalgia

O principal fator que define se a nostalgia é uma força que se volta para o bem ou para o mal se resume ao tipo de nostalgia.

Hoje, os psicólogos reconhecem um tipo benéfico denominado nostalgia pessoal, quando um indivíduo relembra detalhes de seu próprio passado, geralmente desencadeados por mudanças na vida e momentos marcantes como uma formatura e casamento. Por outro lado, a nostalgia histórica está ligada à valorização de aspectos de uma época antecedente ao nascimento de uma pessoa e reflete um nível de insatisfação com o que está acontecendo no presente.

“A nostalgia pessoal tende a ser associada a benefícios psicológicos, pois ajuda a amenizar a solidão, promove sentimentos de pertencimento e estratégias de enfrentamento saudáveis”, explica Batcho. A nostalgia histórica é diferente.

A falecida estudiosa literária e professora Svetlana Boym também estabeleceu dois tipos de nostalgia: restauradora e reflexiva, em seu livro The Future of Nostalgia (O futuro da nostalgia, em tradução livre). A diferença está na forma como esses dois tipos de nostalgia entendem o passado, explica Hal McDonald, professor de letras e literatura da Mars Hill University, na Carolina do Norte.

“A nostalgia restauradora olha para o passado com saudades e até com ciúmes e deseja recriá-lo ou revivê-lo no presente”, diz McDonald. Portanto, a nostalgia restauradora faz com que as pessoas fiquem presas no passado e o busquem de forma derrotista e potencialmente prejudicial. “A nostalgia reflexiva, por outro lado, saboreia o passado com pleno reconhecimento de se tratar do passado de fato, que nunca mais poderá ser revivido”.

Com tantas pesquisas empíricas sobre a nostalgia, hoje cientistas e profissionais de saúde estão encontrando formas de utilizá-la como tratamento médico. A terapia de reminiscência, que a Associação Americana de Psicologia define como “o uso de histórias de vida — escritas, orais ou ambas — para melhorar o bem-estar psicológico”, utiliza fotografias e música para ajudar pacientes com Alzheimer e outras doenças cognitivas e neurodegenerativas. Em 2018, os Centros Familiares de George G. Glenner Alzheimer criaram um centro chamado Town Square na cidade de Chula Vista, na Califórnia, que recriou uma cidade da década de 1950, onde os profissionais utilizam a terapia de reminiscência para fortalecer as lembranças dos pacientes diagnosticados com demência.

Por enquanto, seja ouvindo músicas antigas ou relembrando ótimos momentos da infância, a nostalgia parece estar ajudando as pessoas a lidar com a pandemia. Mary Widdicks acrescenta que ficou muito feliz em perceber que reviver um de seus passatempos favoritos também trouxe conforto aos seus filhos. “Minha filha chegou a falar que levará os filhos dela a um cinema drive-in algum dia”, conta Widdicks, “e que me convidará.”

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