A covid-19 provavelmente ficará conosco para sempre. Entenda como será nosso convívio com ela

O novo coronavírus poderá se transformar a qualquer momento em uma doença muito mais branda — mas, por ora, a vacinação e o monitoramento do Sars-CoV-2 são fundamentais para encerrar a fase pandêmica.

Por Michael Greshko
Publicado 26 de jan. de 2021, 13:27 BRT
Enfermeira faz oração nos corredores da Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Universitário Rafik Hariri em ...

Enfermeira faz oração nos corredores da Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Universitário Rafik Hariri em 15 de janeiro de 2021, no sul de Beirute, no Líbano. Enquanto a pandemia de covid-19 continua devastando comunidades em todo o mundo, as campanhas de vacinação e monitoramento do novo coronavírus podem acabar tornando a doença mais parecida com um resfriado comum.

Foto de Diego Ibarra Sánchez, Getty Images

CONFORME A COVID-19 SEGUE seu curso natural, é muito provável que o Sars-CoV-2 se torne endêmico em grandes áreas do mundo no longo prazo, circulando constantemente entre a população humana, mas causando menos casos graves de covid-19. Em algum momento — daqui alguns anos ou até mesmo décadas — a doença talvez se transforme em uma versão leve durante a infância, como ocorre com os quatro coronavírus humanos endêmicos que causam resfriado comum.

“Acredito que um número suficiente de pessoas contrairá a doença e que um número suficiente de pessoas será vacinado para reduzir a transmissão entre os humanos”, afirma Paul Duprex, diretor do Centro de Pesquisa de Vacinas da Universidade de Pittsburgh. “Haverá grupos de pessoas não vacinadas e surtos localizados, mas o Sars-CoV-2 se tornará um dos coronavírus ‘comuns’.”

Mas essa transição não ocorrerá da noite para o dia. Especialistas afirmam que a trajetória exata da covid-19 após a pandemia dependerá de três fatores principais: o tempo de duração da imunidade humana ao Sars-CoV-2, a velocidade de evolução do vírus e o tempo necessário para que as populações majoritariamente mais velhas se tornem imunes durante a pandemia em curso.

Dependendo desses três fatores, o mundo poderá enfrentar vários anos de uma transição pós-pandêmica intermitente: uma transição marcada pela evolução viral contínua, surtos localizados e, talvez, diversas rodadas de atualizações nas vacinações.

“É preciso entender que a doença não vai desaparecer”, alerta Roy Anderson, epidemiologista de doenças infecciosas da Faculdade Imperial de Londres. “Conseguiremos ter um certo controle da doença com recursos da medicina moderna e as vacinas, mas ela não desaparecerá simplesmente.”

O longo percurso para se tornar mais um resfriado comum

Um dos principais fatores que determinarão o futuro da covid-19 é a imunidade humana à doença. A imunidade a qualquer patógeno, incluindo ao Sars-CoV-2, não é binária como um interruptor de luz. Pelo contrário, parece mais com um dimmer de iluminação: o sistema imunológico humano pode conferir diferentes graus de proteção parcial contra um patógeno, o que pode prevenir a ocorrência quadros graves sem necessariamente prevenir sua infecção ou transmissão.

Em geral, o efeito de proteção parcial é uma das razões pelas quais os quatro coronavírus humanos endêmicos conhecidos até o momento (aqueles que causam o resfriado comum) causam sintomas tão leves. Um estudo publicado em 2013 no periódico BMC Infectious Diseases demonstra que, em média, os humanos são expostos pela primeira vez a todos esses quatro coronavírus entre os três e cinco anos de idade — e são parte da primeira onda de doenças  infecciosas infantis comuns.

Essas primeiras doenças infecciosas formam a base para a futura resposta imunológica do organismo humano. Com a evolução natural de novas variantes dos coronavírus endêmicos, o sistema imunológico adquire uma vantagem na luta contra elas: não o bastante para erradicar o vírus instantaneamente, mas suficiente para garantir que os sintomas não evoluam para muito além de  coriza.

“O vírus também é seu próprio inimigo. Sempre que ele contamina alguém, também aumenta a imunidade dessa pessoa”, afirma Marc Veldhoen, imunologista da Universidade de Lisboa, em Portugal.

Estudos anteriores demonstram que a imunidade parcial pode impedir a evolução da covid-19 para quadros graves, ainda que os coronavírus continuem tendo êxito em invadir organismos humanos. No longo prazo, provavelmente o novo coronavírus apresentará esse mesmo comportamento. Jennie Lavine, pesquisadora de pós-doutorado da Universidade Emory desenvolveu modelos para a trajetória do Sars-CoV-2 após a pandemia, com base nos dados do estudo de 2013 e seus resultados — publicados na revista científica Science em 12 de janeiro — sugerem que, se o novo coronavírus se comporta como os demais coronavírus e, provavelmente, se transformará em um leve incômodo daqui a alguns anos ou décadas.

Essa transição de uma pandemia para uma doença branda, entretanto, depende da resposta imunológica ao Sars-CoV-2 no decorrer do tempo. Os pesquisadores estão estudando minuciosamente a “memória imunológica” do corpo humano com relação ao novo coronavírus. Um estudo publicado também na Science em 6 de janeiro monitorou a resposta imune de 188 pacientes de covid-19 durante cinco a oito meses após a infecção e, apesar da diversidade dos indivíduos, cerca de 95% dos pacientes apresentaram níveis mensuráveis de imunidade.

“A imunidade diminui, mas certamente não desaparece, o que é fundamental”, afirma Lavine, que não participou do estudo.

Aliás, pode até ser que um dos coronavírus causadores do resfriado comum tenha desencadeado um surto grave no século 19 antes de se transformar em mais um entre uma infinidade de patógenos humanos comuns e brandos. Considerando sua ampla árvore genealógica, os pesquisadores estimaram em 2005 que o coronavírus endêmico OC43 passou a afetar humanos no fim do século 19, provavelmente no início da década de 1890. Essa estimativa levou alguns pesquisadores a especularem que a versão original do OC43 pode ter provocado a pandemia de “gripe russa” de 1890, que ficou conhecida por sua taxa extraordinariamente elevada de sintomas neurológicos — um efeito presente também na covid-19.

“Não há nenhuma prova concreta, mas há muitos indícios de que não se tratava de uma pandemia de gripe comum e sim de uma pandemia de coronavírus”, conta Veldhoen.

Caldeirão da evolução

Embora a carnificina dos coronavírus anteriores tenha ficado esquecida com o tempo, o caminho para uma coexistência relativamente pacífica entre, nós, humanos e o Sars-CoV-2 provavelmente será acidentado. No médio prazo, o impacto do novo coronavírus dependerá muito de sua evolução.

O Sars-CoV-2 está se propagando descontroladamente pelo mundo e, a cada nova replicação, há uma chance de ocorrerem mutações que aumentem a eficácia do contágio do vírus por hospedeiros humanos.

O sistema imunológico humano, ao mesmo tempo em que protege muitas pessoas de quadros graves, também atua como um caldeirão evolutivo, exercendo pressão sobre o vírus, que passa a selecionar as mutações mais eficazes nas células humanas. Os próximos meses e anos revelarão se nosso sistema imunológico será capaz de acompanhar essas mudanças.

As novas variantes do Sars-CoV-2 também tornam a vacinação generalizada e outras medidas de controle da transmissão mais importantes do que nunca, como o uso máscaras faciais e a prática do distanciamento social. Quanto menor a transmissão do vírus, menos oportunidades ele terá de evoluir.

As vacinas atuais ainda devem funcionar bem o suficiente contra as variantes emergentes, como a linhagem B.1.1.7 encontrada pela primeira vez no Reino Unido, e provavelmente previnem a ocorrência de muitos casos graves da doença. Vacinas e infecções naturais criam diversos grupos de anticorpos que se ligam a muitos segmentos diferentes da proteína de espícula do Sars-CoV-2, o que implica que uma mutação única pode não tornar o vírus invisível ao sistema imunológico humano.

Mas as mutações podem produzir variantes futuras do Sars-CoV-2 capazes de resistirem parcialmente às vacinas atuais. Em um estudo preliminar publicado em 19 de janeiro, Duprex e seus colegas demostraram que mutações que excluem segmentos da região da proteína de espícula do genoma do Sars-CoV-2 impedem a ligação de certos anticorpos humanos.

“Esse estudo que realizamos me ensinou como a evolução é tortuosa”, conta Duprex.

Outros laboratórios constataram que as mutações da 501Y.V2, a variante encontrada originalmente na África do Sul, são especialmente eficientes em escapar dos anticorpos. Dos 44 pacientes recuperados de covid-19 na África do Sul, amostras de sangue indicaram que 21 pacientes não neutralizaram de forma eficiente a variante 501Y.V2, segundo outro estudo preliminar publicado em 19 de janeiro. Essas 21 pessoas tiveram casos leves e moderados de covid-19, mas seus níveis de anticorpos já eram menores no início, uma possível explicação para a falta de neutralização da variante 501Y.V2 por parte de seu sangue.

Até o momento, as vacinas já autorizadas — que promovem a produção de níveis elevados de anticorpos — parecem ser eficazes contra as variantes mais preocupantes. Em um terceiro estudo preliminar publicado em 19 de janeiro, os pesquisadores concluíram que os anticorpos de 20 pessoas que receberam as vacinas da Pfizer-BioNTech ou da Moderna não se ligaram tão bem aos vírus com as novas mutações quanto aos vírus com as variantes anteriores — mas continuaram sendo capazes de se ligar, sugerindo que as vacinas ainda assim protegem contra quadros graves da doença.

As novas variantes trazem também outros riscos. Algumas, como a B.1.1.7, parecem ser mais transmissíveis do que as formas anteriores do Sars-CoV-2 e, se sua transmissão não for controlada, essas variantes podem deixar muito mais pessoas gravemente doentes, o que pode sobrecarregar os sistemas de saúde em todo o mundo e causar um número ainda maior de mortes. Veldhoen acrescenta que as novas variantes também podem representar um risco maior de reinfecção a pacientes recuperados de covid-19.

Os pesquisadores estão monitorando de perto as novas variantes. Anderson afirma que, se uma futura atualização das vacinas for necessária, esse processo poderá ser rápido — e levará cerca de seis semanas para as vacinas de mRNA atualmente autorizadas, como as que são produzidas pela Pfizer-BioNTech e pela Moderna. Esse cronograma, entretanto, não considera as aprovações regulatórias pelas quais as vacinas atualizadas precisariam passar.

Anderson acrescenta que, de acordo com a forma de evolução do vírus, podem surgir linhagens do Sars-CoV-2 distintas o suficiente para que as vacinas precisem ser adaptadas a regiões específicas, algo semelhante ao que ocorre com as vacinas pneumocócicas. Para se obter proteção eficiente contra o Sars-CoV-2 futuramente, será preciso uma rede de monitoramento global semelhante aos laboratórios de referência mundial utilizados para coletar, sequenciar e estudar variantes da gripe comum.

“Precisaremos conviver com esse vírus, será necessário realizar vacinações de forma constante e um programa de monitoramento molecular bastante sofisticado para acompanhar a evolução do vírus”, explica Anderson.

A promessa e o desafio da vacinação generalizada

Os especialistas concordam que a transição para superar a pandemia de covid-19 depende da prevalência da imunidade, sobretudo entre populações mais velhas e vulneráveis. Os mais jovens, especialmente as crianças, desenvolverão imunidade ao Sars-CoV-2 ao longo de uma vida inteira de exposição ao vírus. Os adultos de hoje não tiveram essa oportunidade, o que deixa seu sistema imunológico mais vulnerável e exposto.

O limite exato para alcançar a imunidade de toda a população e retardar a transmissão do novo coronavírus dependerá do grau de contágio das variantes futuras. Contudo, até o momento, pesquisas sobre as variantes iniciais do Sars-CoV-2 sugerem que ao menos entre 60% e 70% da população humana precisará se tornar imune para encerrar a fase pandêmica.

Essa imunidade pode ser alcançada de duas maneiras: com a recuperação de infecções naturais ou com a vacinação em grande escala. Mas alcançar a imunidade generalizada por meio da transmissão descontrolada tem um preço terrível: centenas de milhares de mortes e internações em todo o mundo. “Se vacinas salvadoras não forem promovidas, será preciso decidir coletivamente quantos idosos morrerão — e eu não serei o responsável por tomar essa decisão”, afirma Duprex.

Jeffrey Shaman, especialista em doenças infecciosas da Universidade de Colúmbia, aponta que a pressão global por vacinas também expõe as desigualdades existentes na saúde mundial. Em um mapa amplamente divulgado em dezembro, a divisão de pesquisa e análise do Economist Group estimou que países ricos como os Estados Unidos terão vacinas amplamente acessíveis já no início de 2022, ao passo que países mais pobres da África e da Ásia poderão obtê-las apenas no fim de 2023.

As iniciativas de vacinação do mundo em desenvolvimento dependem, em parte, de vacinas que possam ser armazenadas sob refrigeração comum, como as vacinas em desenvolvimento pela Oxford / AstraZeneca e pela Johnson & Johnson.

Na semana de 18 de janeiro, segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde, foram aplicadas cerca de 40 milhões de doses da vacina contra a covid-19 em todo o mundo, principalmente em países de alta renda. Na África, apenas dois países, Seychelles e Guiné, iniciaram a vacinação. E em Guiné, país de baixa renda, apenas 25 pessoas receberam as doses.

“O acúmulo de vacinas (nos países ricos) apenas prolongará a provação do continente africano e atrasará sua recuperação”, advertiu Matshidiso Moeti, diretor regional da OMS para a África, em declaração. “É profundamente injusto que os africanos mais vulneráveis precisem aguardar pelas vacinas enquanto os grupos de menor risco nos países ricos são imunizados.”

Diante da distribuição desigual das vacinas em todo o mundo, os países provavelmente adotarão diferentes estratégias sobre a obrigatoriedade de vacinação e exigências de certificação da vacinação a viajantes internacionais. Se o novo coronavírus se tornar endêmico e passar a ser transmitido de forma semelhante ao resfriado comum, entretanto, pode ser que não seja necessário se vacinar para sempre, afirma Lavine.

Mas até mesmo as melhores projeções dos pesquisadores esbarram na incerteza nebulosa que separa o presente do futuro. Dúvidas sobre a reinfecção, transmissão, o fardo à saúde após a pandemia e a evolução viral persistirão por anos ou talvez até décadas.

“Vai demorar, infelizmente,” lamenta Shaman. “O tempo é o único detentor das respostas.”

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