O que a ciência aprendeu sobre nossa resposta imunológica ao coronavírus
Um ano após o início da pandemia, nossa compreensão sobre as reações do nosso corpo ao novo coronavírus aumentou muito. Mas diversas perguntas – como quanto tempo dura a imunidade – ainda permanecem sem respostas.
Médico coleta amostra de um homem para teste de covid-19 na frente da clínica Ajwa em Shah Alam, na Malásia, em 10 de dezembro de 2020.
Em todo o mundo, no ano passado, mais de 80 milhões de pessoas foram diagnosticadas com covid-19, e mais de 1,7 milhão morreu. Apesar da perda devastadora, cientistas fizeram avanços expressivos na compreensão de um dos maiores mistérios da pandemia: por que algumas pessoas se recuperam rapidamente enquanto outras desenvolvem quadros graves de SARS-CoV-2?
Doze meses de estudo mostraram que o corpo humano, em muitos casos, desenvolve uma resposta imune robusta e persistente ao SARS-CoV-2, mas, em alguns casos graves, pode ficar descontrolado e ser mais prejudicial do que benéfico.
Nossa compreensão básica sobre respostas imunes ao novo coronavírus aumentou significativamente, mas algumas questões – como a duração da imunidade – ainda precisam ser respondidas, sobretudo em meio a preocupações de que as mutações possam ajudar o SARS-CoV-2 a escapar de nossas defesas imunológicas. Com a vacinação no horizonte para muitos indivíduos vulneráveis, entender nossa complexa resposta imune é ainda mais importante.
Lado bom
As respostas imunes se distribuem em um espectro. O corpo humano desenvolve imunidade vitalícia a diversos vírus como, por exemplo, o causador da hepatite A ou do sarampo, ao passo que o HIV, por outro lado, pode escapar das defesas de nosso organismo a vida inteira.
“Felizmente, o SARS-CoV-2 está mais próximo da extremidade do espectro da hepatite A”, afirma Andrea Cox, imunologista viral da Universidade Johns Hopkins. “Não é um vírus muito fácil de ser combatido, mas está longe de ser como o HIV.”
Em um artigo importante publicado em junho, pesquisadores demonstraram pela primeira vez que pacientes recuperados produzem anticorpos específicos para o SARS-CoV-2 – proteínas projetadas para agarrar e, geralmente, neutralizar um invasor – além de produzirem níveis elevados de células T destruidoras e células T auxiliares. As células T destruidoras reconhecem e destroem suas próprias células infectadas, um ataque intencional com danos colaterais destinado a impedir a propagação de um vírus. Ao mesmo tempo, as células T auxiliares ajudam nesse processo e coordenam a maturação dos anticorpos.
“Havia muita apreensão inicialmente, pois não se sabia se o vírus de fato induziria uma boa resposta imune”, afirma Alessandro Sette, imunologista do Instituto La Jolla de Imunologia e coautor do estudo. Com a parceria estabelecida com outro imunologista do instituto, Shane Crotty, o projeto desenvolveu um composto químico básico de laboratório capaz de detectar diferentes aspectos da resposta imune em amostras biológicas coletadas em pacientes recuperados da covid-19.
Os resultados foram encorajadores, e muitos outros ainda seriam publicados. Apesar da grande discussão sobre anticorpos desenvolvidos por pacientes recuperados, ninguém de fato havia demonstrado que a presença dessas proteínas fornecia proteção contra contaminações, até que Alex Greninger, virologista da Universidade de Washington, e seus colegas criaram um experimento natural.
Como parte do programa de testes de covid-19, eles realizaram uma triagem em um barco de pesca comercial, coletando amostras de sangue antes e depois da pescaria para rastrear anticorpos. A maioria das 122 pessoas a bordo do barco de pesca testou positivo para o novo coronavírus ao retornar – mas nenhum dos três tripulantes cujo sangue continha anticorpos contra o SARS-CoV-2 antes da partida se contaminou na pescaria. Com um pouco de sorte e planejamento inteligente, o estudo publicado foi o primeiro a demonstrar que ter anticorpos provavelmente nos protege de futuras contaminações.
“Foi uma descoberta espetacular”, afirma Akiko Iwasaki, imunologista da Universidade de Yale e pesquisadora do Instituto Médico Howard Hughes. Ela também destaca as boas novas em um estudo ainda não publicado de 16 de novembro de 2020, em parceria com Crotty e Sette, que demonstrou respostas imunes contínuas e multifacetadas ao SARS-CoV-2 mais de seis meses após a infecção.
“São excelentes notícias. Provavelmente a proteção contra a reinfecção durará muito mais do que imaginado, talvez até um ano”, afirma Iwasaki. “Mas existe uma variabilidade na resposta de cada pessoa a essa infecção.”
Lado ruim
Nem todo mundo apresenta quadros leves de covid-19 e respostas imunes duradouras – conforme demonstrado pelos números sombrios de internações e mortes em todo o mundo. Os Estados Unidos atualmente têm o dobro de internações do que em qualquer outro momento da pandemia. Em quadros graves, o sistema imune muitas vezes fica descontrolado e causa mais problemas do que soluções.
“Qualquer vírus capaz de causar enfermidades em pessoas precisa, ao menos, de um bom mecanismo de evasão imunológica”, explica Crotty. Ele acredita que uma tática importante empregada pelo SARS-CoV-2 é evitar a resposta imune inata, a primeira linha de defesa antes que a imunidade específica – anticorpos e células T – seja desenvolvida. Este tipo de coronavírus é especialmente eficaz em escapar de interferons tipo I, proteínas de sinalização que promovem a atividade antiviral em células próximas e desencadeiam o sistema imune inato. Esse processo geralmente está associado a casos graves.
Mas os cientistas também identificaram uma variabilidade nas respostas imunes entre as pessoas e, por essa razão, propuseram modelos diferentes para casos de covid-19 mais difíceis de serem explicados.
Por exemplo, Shiv Pillai, imunologista da Faculdade de Medicina de Harvard, estuda os gânglios linfáticos e seus centros germinativos, local onde os anticorpos a um patógeno específico são refinados pelas células B. Em agosto, seu laboratório concluiu que esses centros não estavam presentes nos pacientes de covid-19 após autópsias realizadas por sua equipe.
“O motivo é que o vírus desordenou o sistema de interferon tipo I.”
“O motivo é que o vírus desordenou o sistema de interferon tipo I”, afirma Pillai. “A ação do vírus não permite que haja centros germinais adequados, e os centros germinativos eventualmente existentes são débeis. Dessa forma, a resposta dos anticorpos não é a melhor nem a mais duradoura.”
Qualquer que seja o método utilizado pelo novo coronavírus para escapar da imunidade inata do nosso organismo, quando o sistema imune finalmente percebe a invasão, pode reagir de forma exagerada e fazer seu próprio estrago, como criar uma tempestade de citocinas. Cox compara essa reação a chamar mil caminhões de bombeiros a uma casa.
“O problema é que, em alguns casos, os alarmes disparam, mas não são desligados de maneira adequada”, conta Cox. “No fim, ocorrem basicamente mais estragos à propriedade porque mil bombeiros estão pisando na grama e o fogo já foi apagado há seis horas.”
Se os centros germinativos não se formam logo no início, as células B muitas vezes tentarão de tudo para resolver o problema, em vez de selecionar o melhor tipo específico de anticorpo contra um determinado invasor.
“Há uma proteção de curta duração, mas pode ser à custa de alguns efeitos autoimunes de curta duração também, pois não há uma norma a seguir nesse aspecto. Tudo pode acontecer”, afirma Iñaki Sanz, imunologista da Universidade Emory e especialista em doenças autoimunes. Sanz demonstrou em um estudo que alguns quadros graves apresentam precisamente essa resposta, voltando o sistema imunológico contra o próprio organismo, semelhante ao que ocorre com doenças autoimunes como o lúpus.
Relatos de pacientes com covid persistente – com sintomas prolongados mesmo após a eliminação do SARS-CoV-2 – também são preocupantes e podem estar ligados a uma resposta imune descontrolada em adultos e a uma pequena quantidade de crianças.
“Não sabemos exatamente qual é a causa, mas meu palpite é que ocorre uma espécie de doença autoimune ou autoinflamatória, ou ainda que possa haver infecção em uma parte crítica do cérebro que induz essa reação”, presume Iwasaki. Em crianças, essa inflamação generalizada foi associada a infecções intestinais.
Decifrando as incógnitas
Dúvidas sobre a duração da imunidade – e com elas, preocupações com relatos de reinfecções (ainda escassos, mas crescentes) – provavelmente persistirão, sobretudo diante da variabilidade nas respostas imunes. Embora o estudo recente de Sette e Crotty tenha demonstrado que cerca de 90% dos pacientes apresentaram respostas múltiplas seis meses após a infecção, Sette afirma que ainda há preocupações.
“O lado ruim é que não há imunidade duradoura em 10% das pessoas”, conta Sette. “Portanto, por cautela, não se deve presumir que alguém, por ter se curado, ganhou proteção e se tornou invencível”.
O lado bom é que as vacinas em geral criam uma resposta imune mais direcionada do que as infecções naturais pelo novo coronavírus, que produzem respostas imunes mais variadas, observa Iwasaki. Visto isso, as taxas de reinfecção podem ser restringidas à medida que mais pessoas forem vacinadas.
“As pessoas vão desenvolver anticorpos bastante fortes e duradouros”, afirma Iwasaki. “Considero as vacinas superiores à infecção natural por conferirem resistência futura.”
As vacinas produzem respostas melhores porque concentram a atenção do corpo humano, acrescenta Pillai. Em vez de ter como alvo o SARS-CoV-2 e suas 26 proteínas distintas, o sistema imune de uma pessoa vacinada pode se concentrar em apenas uma, a proteína de espícula utilizada pelo novo coronavírus para se ligar às células e invadi-las. Agora, a questão sem resposta passa a ser a duração.
Atualmente, as pessoas vacinadas ainda são minoria, mas essa quantidade aumentará – assim como a busca por entender suas respostas imunes. Felizmente, a vacinação reduz a transmissão de forma rápida o suficiente para que o SARS-CoV-2 não tenha tantas oportunidades de sofrer mutações, o que pode afetar a proteção em longo prazo. Os cientistas não acreditam que as duas novas variantes identificadas na Grã-Bretanha e na África do Sul sejam resistentes às vacinas, e Sette esclarece que é improvável que uma mutação possa escapar de todas as defesas imunes analisadas pelos pesquisadores.
“Nunca fomos capazes de prever a evolução tão bem quanto no momento atual.”
“Nunca fomos capazes de prever a evolução tão bem quanto no momento atual”, afirma Greninger. “Em uma placa de Petri, é possível identificar mutações que escapam da imunidade e monitorá-las, porque nunca houve tanto sequenciamento de genoma na história.”
Seja uma questão de mutações, reinfecções ou longa duração, provavelmente haverá uma variedade de respostas entre a imunidade fornecida pelas vacinas e a resposta natural do corpo a infecções.
“Até certo ponto, a imunidade natural atual é a mesma que já tínhamos em março, quando boas respostas foram identificadas e se considerou necessário aguardar entre seis e oito meses para observar se eram duradouras”, ressalta Sette. “No momento, temos bons resultados com as vacinas. Mas será que elas proporcionarão uma proteção imunológica forte e duradoura? São necessários mais dados.”
Para facilitar as pesquisas sobre a resposta imune ao novo coronavírus, o Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos está liderando a SeroNet, iniciativa financiada pelo governo dos Estados Unidos de mais de US$ 300 milhões que inclui uma rede de oito Centros de Excelência de Ciências Sorológicas com financiamento especial. Cox e Sanz participam da iniciativa.
A SeroNet também fornecerá controles e reagentes padronizados para avaliar as respostas imunes, algo que Cox compara a um modelo de estampa de um suéter tricotado por cada grupo científico.
“A padronização nos permitirá comparar os resultados obtidos em nossos estudos”, afirma Cox. “Também nos permitirá ter uma noção do desenvolvimento da imunidade na população”.