Foram 12 anos resolvendo um enigma. O resultado: vacinas para covid-19

Muito antes do surgimento do vírus Sars-CoV-2, um pequeno grupo de cientistas descobriu uma técnica revolucionária que viabilizou as primeiras vacinas contra o novo coronavírus.

Por Jillian Kramer
Publicado 8 de jan. de 2021, 12:00 BRT, Atualizado 11 de jan. de 2021, 10:33 BRT

A proteína de espícula do Sars-CoV-2, que permite que o vírus entre nas células, é um metamorfo. Ao torná-la imutável, os cientistas descobriram um meio de produzir vacinas contra o coronavírus de forma rápida. Esta imagem é um mapa de densidade eletrônica que foi colorido com o uso de computação gráfica e obtido por microscopia eletrônica criogênica.

Foto de Daniel Wrapp, University do Texas em Austin

Jason McLellan estava em uma loja de esqui no resort Park City, no estado americano de Utah, esperando a termomoldagem de suas novas botas de snowboard para que se ajustassem perfeitamente ao tamanho de seus pés, quando seu celular tocou. Era Barney Graham, vice-diretor do Centro de Pesquisa de Vacinas do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos.

Dois dias antes, a Organização Mundial da Saúde havia anunciado que vários casos indeterminados e semelhantes à pneumonia haviam sido notificados em Wuhan, na China. As pessoas apresentavam fadiga, febre, tosse seca e dor de cabeça. Esses sintomas não eram incomuns no início de janeiro, mas alguns pacientes sentiam falta de ar e outros tinham a sensação de terem sido atropelados por um caminhão.

Graham disse a McLellan, virologista estrutural da Universidade do Texas em Austin, que a doença parecia ser um beta-coronavírus, o que significa que fazia parte do gênero de vírus que causa a síndrome respiratória aguda grave (SRAG). Ele perguntou a McLellan: “você está pronto para voltar ao trabalho?”.

Os dois eram membros de um pequeno grupo de cientistas do governo e de universidades que havia passado mais de uma década tentando decifrar um complexo enigma viral – e suas habilidades agora seriam necessárias mais uma vez. Os anos de investigação e inovação acabaram contribuindo com um elemento microscópico, mas essencial para as mais promissoras vacinas candidatas contra a covid-19. Duas vacinas já autorizadas nos Estados Unidos utilizam a descoberta feita por eles, assim como pelo menos duas outras importantes concorrentes.

A solução apresentada? Manipular uma proteína cuja forma se altera para deixá-la imutável.

À procura da estabilidade

Em 2008, quando McLellan chegou ao Centro de Pesquisa de Vacinas, em Bethesda, Maryland, era pesquisador em início de carreira e Graham estava trabalhando há mais de 20 anos em uma doença pouco conhecida, mas altamente contagiosa, causada pelo vírus sincicial respiratório (VSR). Tanto o VSR causador do resfriado quanto o coronavírus Sars-CoV-2, que causa a covid-19, possuem genomas que são feitos de RNA. Embora os dois estejam em ramificações distantes da árvore evolucionária, eles compartilham uma característica física comum que seria o primeiro passo na jornada de McLellan e Graham no combate à covid-19.

As tentativas de desenvolver uma vacina contra o VSR apresentaram uma série de contratempos desde 1966, quando um ensaio clínico aumentou inadvertidamente a doença em voluntários – e até levou à morte de dois bebês. Graham queria entender por que esse medicamento candidato deu tão errado.

Frustrações semelhantes pairavam sobre outro germe em estudo no Centro de Pesquisa de Vacinas: o HIV. McLellan tinha chegado ao centro para um treinamento com Peter Kwong, biólogo estrutural que manipulava as estruturas das proteínas virais na esperança de criar uma vacina contra a aids. O vírus HIV sofre mutações rapidamente, então os pesquisadores tentaram diversos truques biológicos estruturais para desenvolver vacinas candidatas, mas não conseguiram criar nenhuma que provocasse uma resposta imunológica.

“Não sabíamos se era porque o vírus era muito resistente ou as ideias que eram ruins”, conta McLellan.

Eles estavam trabalhando perto um do outro – o que agora acreditam ter sido um feliz acaso –, no segundo andar do centro. O laboratório de Kwong no quarto andar não tinha espaço disponível para McLellan, então ele organizou seu local de trabalho ao lado do de Graham e os dois se tornaram amigos. “Não demorou muito para ele me dizer: eu queria trabalhar em algo diferente do HIV”, lembra Graham.

As tentativas anteriores e malsucedidas de neutralizar o VSR com uma vacina se concentraram na proteína de fusão de classe 1 do vírus, ou proteína F. Na natureza, essa proteína é um metamorfo, “como se fosse um transformer”, explica Graham. Ela pode ter uma forma antes de o VSR infectar e entrar em uma célula e outra forma diferente depois que o vírus se multiplica e sai da célula. Essas identidades mutantes são conhecidas como estados de “pré-fusão” e “pós-fusão” e todas as tentativas de vacinas até esse ponto se concentravam neste último.

Para complicar ainda mais, a forma de pré-fusão é extremamente instável: pode mudar de modo irreversível e espontâneo para outro estado em um instante. Graham e McLellan levantaram a hipótese de que poderiam criar uma vacina mais exitosa contra o VSR se conseguissem deter o estado de pré-fusão. Mas ninguém sabia como era a proteína F pré-fusão; tudo que eles sabiam é que ela era astuta.

Então, McLellan utilizou a cristalografia de raios X – uma técnica que usa feixes de raios X para determinar a estrutura das proteínas – e capturou uma imagem da proteína F pré-fusão pela primeira vez. Posteriormente, alguns pesquisadores falaram que a proteína F pré-fusão era parecida com um pirulito. McLellan achou que parecia uma bola de futebol americano para crianças. “Ser uma das primeiras pessoas no mundo a ver como é a aparência dessa proteína é muito bacana”, declarou ele.

“Eu meio que senti que toda a minha carreira estava sendo preparada para ‘um momento como este’”

por Barney Graham
Vice-diretor do Centro de Pesquisa de Vacinas do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA

Ao examinar a proteína no nível atômico, McLellan encontrou uma maneira de remover por bioengenharia o poder de mudança de forma da proteína. Em outras palavras, ele a deixou estável.

Quando Graham testou essa nova molécula em animais, ela agiu como um antígeno e estimulou o sistema imunológico a combater a doença. Ela possuía 50 vezes mais poder de neutralização contra o VSR do que qualquer outro agente que ele havia testado antes. Eles também mostraram uma versão pós-fusão da proteína que assume uma identidade capaz de contornar as defesas do sistema imunológico.

Em 2013, essa façanha recebeu o prêmio de segundo colocado na categoria Breakthrough of the Year (Inovação do ano) do periódico Science e seu trabalho abriu caminho para novas vacinas contra o VSR que estão se mostrando muito promissoras, diz Graham.

“O trabalho de Jason, Barney e outros pesquisadores revolucionou a área”, afirma Ruth Karron, professora de saúde internacional da Faculdade de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg e diretora do Centro de Pesquisa de Imunização e da Iniciativa de Vacinação Johns Hopkins.

O último golpe de sorte

Cinco anos atrás, um bolsista de pós-doutorado do laboratório de Graham voltou de uma viagem à Arábia Saudita com uma infecção respiratória. Todos presumiram que ele tivesse contraído a síndrome respiratória do Oriente Médio (s), causada por um perigoso coronavírus detectado no país dois anos antes.

O vírus surgiu na mesma época em que McLellan inaugurou seu próprio laboratório na Faculdade de Dartmouth, em New Hampshire. McLellan e Graham estavam tentando o truque da pré-fusão no Mers-CoV, visto que os coronavírus apresentam proteínas de espícula que também são metamorfos e são utilizadas para penetrar em nossas células. Quando o laboratório de Graham analisou as secreções nasais do aluno de pós-doutorado, encontraram um germe da mesma família – e uma oportunidade que pavimentaria seus passos finais em direção a uma vacina contra a covid-19.

Mas o bolsista tinha um coronavírus mais antigo: HKU1, um vírus que causa resfriados leves e foi descoberto em 2005. A dupla Graham-McLellan decidiu direcionar seu foco para o HKU1 porque o Mers-CoV exigia precauções de segurança adicionais e sua pesquisa sobre este último havia chegado a um beco sem saída.

Para capturar uma imagem 3D do HKU1, McLellan precisava de um método diferente para tirar fotos em nível atômico. A cristalografia de raios X satura as proteínas em uma solução de banho de sal até formarem cristais semelhantes a balas doces. Mas devido à sua natureza física, os coronavírus não cristalizam bem. A microscopia eletrônica criogênica, ou crio-ME, é uma técnica que permite que os cientistas visualizem as proteínas congeladas em uma fina camada de gelo, evitando a necessidade de cristalização.

As proteínas são tão pequenas que não é possível utilizar o microscópio óptico comum para tirar uma foto. Os cientistas utilizaram um microscópio crioeletrônico para determinar a estrutura da espícula do Sars-CoV-2. A microscopia eletrônica criogênica é uma técnica que permite visualizar as proteínas congeladas em uma fina camada de gelo utilizando feixes de elétrons. As proteínas ficam em uma série de posições diferentes, deixando uma variedade de sombras. Os cientistas combinam todas essas imagens 2D das sombras para criar uma forma 3D.

Foto de Daniel Wrapp, University do Texas em Austin

Em 2015, o biólogo estrutural Andrew Ward era um dos principais especialistas em crio-ME dos Estados Unidos, então McLellan enviou um e-mail para seu laboratório na Scripps Research em San Diego para perguntar se ele tinha interesse em estudar os coronavírus. Coincidentemente, Ward tinha um bolsista de pós-doutorado ávido para investigar os coronavírus. Por fim, eles obtiveram milhares de imagens das proteínas do HKU1.

McLellan utilizou essa imagem 3D do HKU1 para fazer suposições bem fundamentadas sobre como estabilizar as proteínas de espícula de seus primos virais, Mers-CoV e Sars-CoV. McLellan e Nianshuang Wang, seu colega de pós-doutorado, descobriram que, ao adicionar duas prolinas – aminoácidos rígidos – à proteína da espícula do Mers-CoV, poderiam impedir que ela mudasse de forma.

Eles chamaram essa técnica de mutação 2P e, em 2017, solicitaram uma patente para a descoberta. Na mesma época, o laboratório de Graham iniciou uma parceria com a empresa de biotecnologia Moderna para desenvolver uma vacina experimental de mRNA contra a doença Mers. Os dois haviam trabalhado juntos um ano antes em um projeto semelhante, mas separado, para combater o vírus causador da zika – como parte de um novo movimento para preparações mais abrangentes contra surtos globais. O conceito baseava-se no estudo detalhado de um membro prototípico de uma família viral – como o HKU1 ou Mers-CoV – para criar defesas contra todos os “vilões” da mesma família, como o Sars-CoV-2.

Finalmente, experimentos em modelos animais mostraram que a vacina contra a Mers foi bem-sucedida, conta Kizzmekia Corbett, pesquisadora de pós-doutorado no laboratório de Graham, que criou um “portfólio de dados” que os cientistas sabiam que poderia ser aplicado ao novo coronavírus.

O caminho para a salvação

Em 6 de janeiro de 2020, poucos minutos depois de atender aquele telefonema na loja de esqui, McLellan enviou uma mensagem por WhatsApp para Wang e Daniel Wrapp, pós-graduando.

“Barney vai tentar obter a sequência do coronavírus de Wuhan, China”, McLellan escreveu para eles. “Ele quer agilizar a estrutura e a vacina. Vocês topam?”

Os dois laboratórios trabalharam em conjunto, determinando a estrutura do vírus em cerca de duas semanas e usando a mutação 2P para estabilizar suas proteínas. O laboratório de Graham fez parceria com a Moderna, Corbett projetou e executou avaliações clínicas para imunizar camundongos com uma vacina de mRNA feita com as proteínas modificadas, que tiveram início em fevereiro. “Foi muito gratificante quando obtivemos os primeiros resultados dos camundongos e observamos que eles apresentaram uma ótima resposta de anticorpos”, disse Corbett. Em 4 de março, a Agência de Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA), deu sinal verde para início dos testes em humanos com a vacina da Moderna.

Quase ao mesmo tempo, a Pfizer e a BioNTech conversaram com Graham sobre o uso da mutação 2P em sua vacina. Como o trabalho foi patenteado e amplamente publicado, outros fabricantes de medicamentos – incluindo a Novavax e a Johnson & Johnson – também usaram os estudos de Graham como base. A vacina da Pfizer-BioNTech acabou sendo a primeira a receber autorização nos Estados Unidos depois de mostrar uma impressionante taxa de eficácia de 95%. A vacina da Moderna foi 94% eficaz.

Mais testes seriam necessários para avaliar o quanto a mutação 2P contribui para a eficácia geral das vacinas pioneiras. Phil Dormitzer, diretor científico da Pfizer e vice-presidente de vacinas virais, afirma que está “absolutamente claro” que a estabilização das proteínas F pré-fusão levou a avanços notáveis com vacinas em potencial contra o VSR. “Estou muito feliz por termos escolhido essas mutações para seguirmos em frente”, declarou ele, referindo-se à vacina contra a covid-19 da Pfizer-BioNTech.

Graham não sabe muito bem como responder quando questionado sobre como é ter décadas de trabalho contribuindo para o desenvolvimento tão rápido de vacinas que poderiam salvar centenas de milhares de vidas em meio a uma pandemia angustiante. “Não é assim que pensamos sobre esse fato”, afirma ele. “Acho que, na verdade, não pensamos muito sobre os sentimentos, só quando atingimos determinados marcos.”

Mas a pergunta – feita utilizando a frase “em um momento como este” – faz Graham se lembrar da história bíblica de Ester, que foi coroada rainha para “um momento como este”.

“Eu meio que senti que toda a minha carreira estava sendo preparada para ‘um momento como este’”, diz Graham.

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