Agências reguladoras garantem a segurança da vacina de Oxford – entenda a polêmica

Relatos de coágulos sanguíneos fatais em pacientes que receberam doses levaram à interrupção da imunização em vários países europeus – e podem ter levantado suspeitas injustas sobre a vacina. 

Por Linda Marsa
Publicado 20 de mar. de 2021, 06:00 BRT

Imagem de microscópio eletrônico de varredura mostra um coágulo sanguíneo se formando em um tecido conjuntivo. Hemácias (os glóbulos em vermelho) ficam presos em uma rede de proteínas (amarelas). A rede de fibrina é formada em resposta a elementos químicos expelidos pelas plaquetas (em rosa), que são fragmentos dos glóbulos brancos.

Foto de Steve Gschmeissner, Science Source

Agências reguladores do Reino Unido, da União Europeia, do Brasil e da Organização Mundial da Saúde buscam recuperar a confiança na vacina para covid-19 da Oxford/AstraZeneca depois que notícias sobre coágulos sanguíneos fatais levaram à suspensão de sua aplicação em vários países europeus. Os especialistas garantem ao público que a vacina é segura e não há indícios de que casos graves de coágulo tenham sido causados pela aplicação do medicamento. No entanto, temem que recuperar a confiança já abalada sobre a segurança da vacina seja uma tarefa difícil neste estágio crucial da pandemia.

Novas infecções estão subindo em vários países europeus e no Brasil, provavelmente impulsionadas pelas 'variantes de preocupação'; a Europa registrou mais de 1,2 milhões de novos casos na última semana, e o Brasil, mais de 500 mil. Interrupções na vacinação podem custar muitas vidas. Na sexta-feira (19), a Fundação Oswaldo Cruz, que participou do desenvolvimento do imunizante no Brasil, anunciou que a vacina é eficaz contra a variante brasileira P.1, embora com base em estudo que ainda não foi revisado por pares nem publicado em periódico científico.

“Uma vez que você assusta as pessoas, é difícil ‘desassustar’, por isso precisamos de uma revisão cuidadosa dos casos”, diz Paul Offit, médico e diretor do Centro de Educação de Vacinas no Hospital Infantil da Filadélfia e professor de vacinologia na Escola Perelman de Medicina, da Universidade de Pensilvânia. “Às vezes, coisas acontecem em sequência e não têm sentido. Então, temos que colocar isso em contexto.”

No Reino Unido, onde mais de 10 milhões de pessoas receberam a vacina Oxford/AstraZeneca, não foi reportado nenhum desses raríssimos caso de coágulo sanguíneo. A AstraZeneca recebeu 37 notificações de coágulos sanguíneos, de um total de mais de 17 milhões de doses aplicadas na Europa e no Reino Unido até 8 de março. Em um comunicado, Ann Tayler, a diretora médica da companhia, disse que “o número de casos de coágulos sanguíneos reportados nesse grupo é menor que as centenas de casos esperadas entre a população em geral.”

Os dados de segurança dos testes clínicos da vacina, que envolveram dezenas de milhares de voluntários, também não apontaram eventos adversos.

“Se houvesse uma associação forte, imediatamente um sinal claro apareceria de maneira muito óbvia”, diz Edward Jones-Lopez, especialista em doenças infecciosas no instituto médico Keck, da Universidade do Sul da Califórnia, um dos pesquisadores nos testes clínicos ainda em andamento da vacina AstraZeneca nos Estados Unidos. “Mas é apenas quando você tem milhões de pessoas – uma ordem de magnitude maior que a dos testes clínicos – que os casos muito raros de efeitos colaterais aparecem.”

Por que a Alemanha pausou vacinações?

Ainda assim, há dúvidas. A suspensão inicial na Alemanha foi provocada por um relatório do Instituto Paul Ehrlich, a agência responsável pela segurança de vacinas no país, sobre um sério transtorno de coágulo sanguíneo em sete pacientes, três dos quais morreram. No total, pelo menos 13 pacientes em cinco países, todos entre 20 e 50 anos e antes saudáveis, reportaram os sintomas; sete morreram. Todos esses casos ocorreram entre quatro e 16 dias depois da aplicação da vacina para covid-19 da AstraZeneca.

Alguns especialistas acreditam que a incidência desse raro transtorno sanguíneo é significativamente maior do que seria esperado normalmente. Conhecida como trombose venosa cerebral grave, a síndrome apareceu de formas incomuns. Pacientes sofreram com coágulos sanguíneos, muitas vezes no cérebro. Ao mesmo tempo, a contagem de plaquetas sanguíneas deles estava baixa; plaquetas normalmente contribuem para coagulação e essa falta de fatores de coagulação levou a sangramentos internos. “É uma situação muito peculiar” de sintomas, disse Steiner Madsen, diretor médico da agência médica da Noruega, à revista Science. “Nosso principal hematologista disse que nunca tinha visto algo igual.”

Cientistas não sabem se a vacina causou a síndrome, ou que mecanismo foi acionado pela vacina para causar esses efeitos colaterais.

“Ver todos esses casos é preocupante”, diz William Schaffner, especialista em doenças infecciosas e professor de medicina preventiva na Escola de Medicina da Universidade de Vanderbilt, em Nashville, EUA. “Chamaríamos isso de um sinal, não uma conclusão, mas um sinal que precisa ser investigado mais a fundo. Há fumaça aqui, e talvez até fogo. Temos que distinguir entre coisas que são relacionadas casualmente e coisas que são coincidentes.”

Na última quinta-feira, cientistas noruegueses que estudaram três profissionais de saúde vítimas dessa rara condição, disseram que as reações foram, de fato, causadas pela vacina. A explicação que deram foi que a vacina fez o sistema imunológico reagir exageradamente, causando a formação de anticorpos que levaram as plaquetas no sangue a formar coágulos. Ao diminuir o número de plaquetas, essenciais para a coagulação do sangue, isso acabou causando sangramentos internos.

“Não há nada no histórico clínico desses indivíduos que possa causar uma resposta imunológica tão potente”, disse Pal Andre Hol, médico líder do Hospital Universitário do Norte da Noruega, ao jornal norueguês VG na quinta-feira. “Estou certo de que os anticorpos que encontramos são a causa, e não vejo nenhuma outra explicação para isso.”

Apesar de tudo, no fim do mesmo dia, Emer Cooke, chefe da Agência Europeia de Medicamentos (AEM) disse: “Esta vacina é segura e eficaz”. Seus benefícios são muito maiores que seus riscos, apontou Cooke, especialmente visto o risco de uma pessoa não vacinada contrair covid-19. Mesmo se os piores cenários forem confirmados, ela continua, e parece que um pequeno número de indivíduos teve coágulos e sangramentos internos causados pela vacina, para a maioria das pessoas a vacina ainda será segura e eficaz. A agência continuará a investigar os efeitos, mas com a luz verde dada pela AEM, países da União Europeia planejam retornar suas campanhas de vacinação.

No Brasil, em nota divulgada na última terça-feira (16), a Anvisa também recomendou a continuidade do uso da vacina. A agência brasileira afirmou que a decisão foi tomada depois de reunião da Coalizão Internacional de Agências Reguladoras, que reúne órgãos de 52 países, e que o “lote da vacina que deu início às suspensões feitas por alguns países não veio para o Brasil”. O Brasil também não registrou casos de embolia ou trombose relacionados à aplicação do medicamente.

Nos Estados Unidos, um transtorno similar, mas menos grave, chamado trombocitopenia, foi observado em pelo menos 36 pessoas que receberam as vacinas da Moderna ou da Pfizer, mas a Administração Federal de Alimentos e Medicamentos do país disse que a incidência do evento não é maior em pessoas vacinadas do que em não vacinadas.

“Estamos vacinando pessoas mais velhas”, diz Schaffner. “Mesmo se não vacinássemos, eventos médicos podem ocorrer com a população idosa todos os dias.”

Além disso, não é incomum que vacinas provoquem transtornos sanguíneos raros. Offit aponta que a tríplice viral (para sarampo, caxumba e rubéola) pode causar trombocitopenia em uma criança a cada 30 mil doses aplicadas.

Como a vacina Oxford/AstraZeneca funciona

A vacina da AstraZeneca usa um vírus de gripe modificado para contrabandear fragmentos de DNA com partes do vírus Sars-CoV-2 para dentro de células humanas, a fim de acionar uma resposta imune. O laboratório AstraZeneca e a Universidade de Oxford colaboraram para criar e testar uma versão da vacina para covid-19. Testes clínicos no Brasil, Reino Unido e África do Sul mostraram uma eficácia de 82,4% quando uma segunda dose é aplicada depois de quatro a 12 semanas.

Ampola com a vacina de Oxford/Astrazeneca.

Foto de Indranil Mukherjee, AFP via Getty Images

A superfície do vírus Sars-CoV-2 é cheia de proteínas em formato de espinhos, as proteínas spike, usadas para o vírus se agarrar e depois se introduzir, em células humanas. Esses espinhos tornaram-se um alvo muito conveniente para os fabricantes de vacina. Na da AstraZeneca, por exemplo, cientistas encaixaram o gene do vírus que o instrui a construir as proteínas spike no DNA de um vírus modificado de gripe que afeta chimpanzés. Esses vírus gripais – que agora carregam o gene da proteína spike – podem infectar células humanas, mas não se replicam ou causam doenças.

Quando a vacina da AstraZeneca é injetada em humanos, esses vírus gripais se agarram na superfície das células humanas, e, como um pequeno navio de carga, as inoculam com um pedaço do DNA do Sars-CoV-2. Então, o mecanismo da célula humana usa as instruções desse DNA para também fabricar proteínas spike, alertando nosso sistema imunológico sobre a presença de um intruso.

Quando o sistema imunológico detecta a proteína spike, ele reage como se o corpo estivesse sob ataque do verdadeiro coronavírus. Agarrando-se às proteínas spike do coronavírus, os anticorpos evitam infecções ao impedir que novas proteínas spike se agarrem às células humanas. Isso previne que o vírus entre nas células.

Um salva-vidas para países pobres?

A vacina da AstraZeneca, produzida pela empresa britânica-sueca em parceria com a Universidade de Oxford sem fins lucrativos, tem sido aclamada como um salva-vidas para países em desenvolvimento. Ela é barata de se produzir e pode ser mantida em refrigeradores convencionais por até seis meses – diferente das vacinas da Pfizer e da Moderna, mais frágeis e que precisam ser congeladas.

O imunizante britânico ainda não foi liberado nos Estados Unidos, mas teve seu uso emergencial ou promoção condicional aprovada em mais de 70 países de seis continentes, inclusive no Brasil, onde foi a segunda a receber autorização definitiva. Além disso, com a aprovação para uso emergencial dada pela OMS, seu acesso pode ser acelerado para mais de 142 países inscritos no Covax, consórcio da OMS que pretende imunizar os países mais pobres.

“A preocupação é de que haverá países que ficarão chateados com isso”, diz Shaffner, de Vanderbilt. “No mundo em desenvolvimento, eles dirão: ‘Nossa, estão nos dando vacinas de segunda categoria.’”

Mas interrupções na distribuição de vacinas podem impactar seriamente o esforço global de combate à pandemia.

“Nós somos fortes somente até o ponto onde os países mais vulneráveis são”, diz Offit, da Universidade da Pensilvânia. “Era para ser uma vacina barata, fácil de conservar e entregue ao mundo. Tenho medo que as pessoas não queiram usá-la pelos motivos errados. Se há uma questão de segurança, precisamos descobrir, pois tem muita gente dependendo disso.”

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