Por que doses de reforço contra variantes do coronavírus podem acabar com a pandemia

À medida em que novas variantes se propagam, os cientistas contra-atacam. A boa notícia é que a covid-19 pode ter um número limitado de mutações perigosas.

Por Linda Marsa
Publicado 15 de abr. de 2021, 17:00 BRT
South African variant

Profissional da saúde faz uma triagem de sintomas da covid-19 em pacientes que chegam ao Hospital Tembisa, na cidade de Tembisa, na África do Sul.

Foto de Guillem Sartorio, AFP via Getty Images

Assim como o novo coronavírus sofre mutações e evolui, o mesmo deve acontecer com o arsenal para combatê-lo. Para tanto, os Institutos Nacionais de Saúde começaram a testar doses de reforço com o objetivo de atacar uma nova variante do vírus da covid-19. Descoberta na África do Sul, a cepa conhecida como B.1.351 é mais preocupante porque, assim como outras variantes, parece se espalhar com mais facilidade do que o vírus original. Pesquisas recentes também indicam que ela consegue burlar as proteções do sistema imunológico geradas pelas vacinas ou quando se contrai naturalmente a covid-19.

Em um esforço para estar à frente do vírus, o Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas (NIAID, na sigla em inglês) está trabalhando em conjunto com a Moderna, empresa com sede no estado de Massachusetts, para testar uma versão ajustada da sua vacina. O imunizante foi aperfeiçoado com instruções genéticas que fazem o sistema imunológico reconhecer e atacar a variante sul-africana. Esse novo estudo de fase um, que envolve 210 adultos saudáveis, mostrará se a dose de reforço é segura e eficaz.

“As mutações estão em um lugar bem específico, na superfície da proteína viral, o que faz com que alguns anticorpos não ‘enxerguem’ a proteína”, explica John Mascola, diretor do centro de pesquisas de vacinas no NIAID. “Esses estudos estão sendo realizados para esclarecer se uma vacina de reforço vai provocar uma resposta imune mais ampla.”

A possível nova vacina de reforço da Moderna é diferente da vacina autorizada atualmente. Em vez de induzir a produção da proteína de espícula que estava presente na cepa original do Sars-CoV-2, ela instrui a produção de uma proteína de espícula que incorpora as mutações presentes na cepa B.1.351. Assim, o sistema imunológico passa a conhecer uma prévia da variante sul-africana.

Assim como a Moderna e o Instituto Nacional de Saúde, a Pfizer e a BioNTech estão explorando a possibilidade de criar vacinas contra variantes específicas. Mas eles também têm uma segunda estratégia em mente: simplesmente aplicar uma terceira dose da vacina original, que já está autorizada pela FDA, a Agência de Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos. A hipótese é que uma dose adicional possa gerar uma descarga ainda maior de anticorpos para combater as novas cepas.

As doses de reforço são parte de uma estratégia mais abrangente para amenizar o impacto de cepas mutantes. Em fevereiro passado, o governo Biden destinou US$ 200 milhões para intensificar a vigilância e custear um sistema de alerta precoce que sequenciará amostras do Sars-CoV-2 no país inteiro, de modo a identificar e rastrear melhor as novas variantes. Essa iniciativa será coordenada por um Grupo Interagencial do Sars-CoV-2, dentro do Ministério da Saúde e Serviços Humanos. O objetivo do projeto é monitorar e caracterizar novas “variantes de interesse”, que representam ameaças maiores porque são mais contagiosas, mortais ou capazes de driblar os mecanismos de proteção do organismo.

Observação da evolução em tempo real

A escala grandiosa da pandemia, que ainda está fora de controle, significa que o vírus tem bilhões de hospedeiros e, portanto, trilhões de oportunidades de se replicar e sofrer mutações.

Em teoria, isso poderia gerar uma variedade infinita de variantes, algumas das quais proporcionam uma vantagem seletiva ao vírus, fazendo com que seja praticamente impossível neutralizá-lo, como em um jogo de cartas marcadas. E agora parecem estar surgindo várias versões distintas, não apenas no Reino Unido, África do Sul, Brasil e Índia, mas também nos estados da Califórnia, Oregon e Nova York.

A maioria das variantes não é motivo de preocupação porque suas mutações são versões únicas, que desaparecem porque não apresentam nenhum tipo de vantagem para o vírus. As autoridades de saúde pública somente demonstram preocupações se a cepa for mais contagiosa, nos deixar mais doentes ou possibilitar que o vírus burle o sistema imunológico. Infelizmente, as variantes que estão circulando no momento nos Estados Unidos apresentam esses fatores.

“O que estamos vendo é a evolução de um vírus em hipervelocidade e em tempo real”, relata Gregory Poland, especialista em doenças infecciosas e diretor do Grupo de Pesquisa de Vacinas na Clínica Mayo, em Rochester, estado de Minnesota. “A maioria das mutações deixa o vírus menos apto à sobrevivência e infecção. Mas a seleção natural vai favorecer as mutações que são benéficas para o vírus.”

A cepa B.1.1.7, por exemplo, que foi detectada pela primeira vez em dezembro de 2020 e devastou o Reino Unido, é muito mais contagiosa e letal do que o vírus original. Agora ela está se disseminando rapidamente pela Europa continental e pode se tornar a cepa predominante nos Estados Unidos. A cepa sul-africana, que surgiu em outubro e já foi detectada em pelo menos 25 estados, e a P.1, a variante que dizimou o Brasil e chegou aos Estados Unidos em janeiro de 2021 podem reinfectar pessoas que já tiveram a covid-19 ou estão vacinadas, porque essas variantes contém uma mutação que as permite driblar os anticorpos que o nosso sistema imunológico libera para se defender de invasores.

Os cientistas chamam as mudanças que permitem que os vírus burlem o alcance de anticorpos de mutação de escape. Ela ocorre quando o vírus sofre pressões de seleção natural. Os vírus que conseguem continuar infectando células e se reproduzindo são aqueles que apresentam características que os permitem escapar dos anticorpos. Nesse momento, os cientistas que estudam mutações estão mais preocupados com a chamada E484K, que acreditam ser a principal culpada por trás das manobras evasivas do vírus.

Essa mutação altera o formato da proteína de espícula que adorna a superfície do coronavírus; normalmente, esse vírus utiliza a espícula para se ligar aos receptores presentes na superfície das células humanas e adentrá-las. O arsenal atual de vacinas estimula a produção de anticorpos que se unem à proteína de espícula original e a impede de entrar em uma célula humana — da mesma forma que grudar um chiclete em uma chave impede que ela entre na fechadura e abra a porta.

Mas ainda há muitos fatores desconhecidos. Por exemplo, os cientistas ainda não sabem a velocidade com a qual o Sars-CoV-2 sofre mutações. Isso é importante porque toda vez que uma mutação ocorre, pode diminuir a eficácia das vacinas autorizadas que combatem a covid-19 de forma eficiente.

Essa situação é muito diferente do caso do vírus do sarampo. Quando sofre mutação, a nova cepa ainda é incapaz de escapar dos anticorpos neutralizantes da vacina. É por isso que não precisamos de uma dose de reforço todo ano, ou mudar a fórmula da vacina. “A vacina contra o sarampo foi introduzida em 1963 e ainda estamos usando a mesma vacina até hoje”, afirma Cody Meissner, diretor do departamento de doenças infecciosas pediátricas do Tufts Children’s Hospital, em Boston. “Mas se analisarmos o vírus da influenza, há novas cepas que exigem novas vacinas todos os anos. Não sabemos onde a covid-19 ficará em relação a esses dois extremos. É por isso que todos esses diferentes tipos de abordagem estão sendo investigados. Nós simplesmente não sabemos.”

Evolução convergente é uma boa notícia

Embora estudos preliminares possam passar a impressão de que o mundo estará sempre um passo atrás desse vírus, pesquisas recentes sugerem que as notícias não são tão ruins. Há cada vez mais evidências de que as variantes mais graves possuem certas características ou mutações comuns. Por exemplo, a variante sul-africana, a cepa brasileira P.1 e a cepa B.1.1.7 que está assolando a Europa possuem a mutação E484K.

Na verdade, isso é algo bom. Cientistas chamam esse fenômeno de evolução convergente, que ocorre quando a mesma mutação surge de forma independente ao longo do tempo em regiões diferentes do mundo porque é uma adaptação que auxilia na transmissão e reprodução viral. “Se analisarmos a mutação que dá ao vírus maior capacidade, podemos observá-la nas variantes sul-africana e brasileira”, explica Alessandro Sette, imunologista do Instituto de Imunologia La Jolla. “Isso é importante, porque em dois momentos diferentes e em dois continentes diferentes, a variante ruim tem a mesma mutação. Em outras palavras, o vírus tem pouco repertório ruim.”

Essa quantidade limitada de truques sugere que aperfeiçoar vacinas com novas instruções genéticas codificando mutações específicas pode ter efeito contra múltiplas variantes graves simultaneamente.

Embora os anticorpos induzidos pela vacina talvez não neutralizem completamente a variante sul-africana, a vacina não é um desperdício. Em ensaios clínicos na África do Sul, onde a variante é predominante, mesmo a vacina sendo menos eficaz para evitar a infecção, ela teve 100% de eficácia na prevenção de mortes e hospitalizações. Isso acontece porque o número de anticorpos neutralizantes estimulado pelas vacinas foi suficiente para compensar a perda de eficácia. “A proteção continua lá”, afirma Sette. “Ela apenas não é tão eficaz para afastar o vírus.”

Salvos pelas células T?

À medida que a preocupação com as variantes cresce, é essencial lembrar que vacinas e anticorpos não são a única forma de defesa. Indivíduos que já tenham sido infectados ou totalmente vacinados possuem outro aliado, caso sejam reinfectados pelo vírus ou por uma nova variante. As chamadas células T “exterminadoras” do sistema imunológico podem entrar em ação se o vírus deixar os anticorpos sobrecarregados. As células T auxiliam ao reconhecer e destruir células infectadas. Sette explica que “se a proteção for violada e o vírus entrar na célula, as células T exterminadoras são importantes para controlar e eliminar a infecção”.

Em um estudo publicado no mês de março, pesquisadores do Instituto Nacional de Saúde analisaram amostras de células sanguíneas de 30 pessoas que tinham se recuperado da covid-19 antes do surgimento das variantes. Quando um tipo de célula T dessas amostras foi exposta às variantes, foi descoberto que as células T CD8+ reconheceram todas elas, inclusive a variante sul-africana. “As áreas onde as células T atacam não são afetadas pelas mutações nas novas variantes”, afirma Andrew Redd, cientista do laboratório de imunorregulação do NIAID. Na grande maioria dos casos, ele afirma, a resposta das células T deveria evitar a doença, mesmo que o vírus consiga desviar dos anticorpos neutralizantes.

O Instituto Nacional de Saúde espera concluir a inclusão nos testes da dose de reforço até o fim de abril. Como a FDA indicou que concederá aprovação emergencial para as vacinas designadas a combater as variantes, o novo imunizante pode ser desenvolvido rapidamente. Mesmo assim, apesar de todas as notícias boas, precisamos nos manter em alerta. “Ainda estamos nos estágios iniciais e, se as pessoas ‘se cansarem’ da covid por razões econômicas ou políticas, será como jogar gasolina na fogueira”, diz Gerald Poland, da Clínica Mayo. “É possível que estejamos no início de um surto exponencial de uma variante altamente transmissível. Ninguém consegue prever o que vai acontecer na próxima semana.”

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