Finalmente vacina contra malária é aprovada em ensaios clínicos importantes
Resultados iniciais promissores sugerem que podemos ter um novo recurso na batalha contra o nocivo parasita transmitido por mosquitos.
Mãe conforta filho, acometido por malária, em hospital na Zâmbia.
A cada segundo, sete pessoas em algum lugar do mundo são infectadas por um dos assassinos mais prolíficos da humanidade: um parasita que muda de forma transportado na saliva de mosquitos fêmeas que consegue driblar nosso sistema imunológico e viver em nosso fígado e células sanguíneas. A cada dois minutos, o parasita infecta outra criança de até 5 anos — e causa mais um ciclo de desgosto e perda; esse triste ciclo ocorre toda hora, todo dia, toda semana e todo ano.
Por mais de uma década, Halidou Tinto buscou métodos contra esse parasita. Tinto, epidemiologista especialista em malária e diretor regional do Instituto de Pesquisa em Ciências da Saúde de Burquina Fasso, atende o distrito de Nanoro, cerca de 80 quilômetros a noroeste da capital Uagadugu. Com a chegada das monções africanas a cada verão, os casos de malária aumentam em Nanoro e em comunidades por todo o país. Burquina Fasso, um país com 20 milhões de habitantes, registra cerca de 11 milhões de casos de malária por ano — e quatro mil mortes.
Mas após meses conversando com famílias locais sobre a participação em um novo estudo de vacina contra a malária, seus anos de experiência em ensaios clínicos na área e décadas de pesquisa global, o instituto onde Tinto trabalha em Nanoro tem algo mais a oferecer: esperança.
Em um estudo publicado recentemente no periódico The Lancet, uma equipe internacional compartilhou novos dados promissores sobre uma potencial vacina. O ensaio clínico de fase dois realizado em 450 crianças em Nanoro, avaliou a vacina candidata contra a malária denominada R21, que está em desenvolvimento no Reino Unido há mais de uma década. Os pesquisadores descobriram que, depois que as crianças receberam três doses em um período de oito semanas e um reforço após 12 meses, a vacina R21 foi 77% eficaz em conter a malária, em comparação com o grupo de controle que recebeu uma vacina contra a raiva, em vez de um placebo padrão.
A R21 é a primeira vacina candidata contra a malária a ultrapassar o limiar de 75% de eficácia, uma meta que a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceu em 2013. Se a eficácia for confirmada em ensaios clínicos maiores, a R21 poderia ser outro poderoso método entre os recursos mundiais de combate à malária.
“Estamos entusiasmados, mas ainda precisamos dos testes de fase três para confirmar a eficácia e a segurança da vacina antes de prosseguirmos”, esclarece Tinto, um dos principais autores do estudo.
Um parasita complexo
Os números de casos são altos: em 2019, o mundo contabilizou cerca de 229 milhões de casos de malária, ocasionando a morte de cerca de 409 mil pessoas — dois terços eram crianças pequenas.
Nas últimas duas décadas, o mundo reduziu bastante os números de casos de malária, devido ao uso generalizado de mosquiteiros, diagnóstico rápido e uso sazonal de medicamentos antimaláricos preventivos. Entre 2000 e 2015, com todas essas intervenções, a incidência de casos de malária entre as populações de risco caiu 27%. Porém, nos últimos anos, esse progresso estagnou, entre 2015 e 2020, os casos diminuíram menos de 2%.
Para voltar a ter um progresso significativo, a OMS está ansiosa para incluir uma vacina contra a malária entre as opções de manejo da doença disponíveis. Mais de 140 vacinas candidatas contra a malária estão em desenvolvimento. Por enquanto, nenhuma foi aprovada formalmente.
Produzir uma vacina contra a malária é extremamente difícil, em parte porque é uma doença complexa. A maioria dos casos de malária é causada pelo parasita Plasmodium falciparum, cujo genoma contém mais de cinco mil genes — muito mais do que os meros 12 que circulam dentro do novo coronavírus que causa a covid-19. “Há muito interesse e muito entusiasmo com relação às vacinas no momento por causa da covid-19, mas, obviamente, estamos almejando algo diferente”, declara a autora do estudo Mehreen Datoo, médica e doutoranda no Instituto Jenner de Oxford que ajuda a liderar o desenvolvimento clínico da vacina R21.
Ao contrário de bactérias e vírus, parasitas como o Plasmodium passam por diversos estágios de vida no corpo humano, o que dificulta ainda mais o desenvolvimento de vacinas contra eles. Quando uma fêmea do mosquito pica alguém para se alimentar de sangue, os parasitas do Plasmodium que se alojam na saliva do mosquito podem ser transferidos para a corrente sanguínea da pessoa. Em até meia hora após a picada, esses parasitas saem da corrente sanguínea e se instalam no fígado, onde se multiplicam aos milhares.
Em seguida, os parasitas retornam à corrente sanguínea, onde se multiplicam rapidamente em um ciclo vicioso: entram nos glóbulos vermelhos, se replicam dentro deles e, depois, rompem as células infectadas. Alguns desses parasitas se desenvolvem ainda mais e, quando um mosquito se alimenta do sangue de uma pessoa já infectada, esses Plasmodium invadem novamente o inseto, abrem caminho através da parede do intestino dele e se infiltram nas glândulas salivares desse mosquito — reiniciando o ciclo.
Em cada etapa, o Plasmodium se multiplica em uma região diferente do organismo, o que significa que a melhor maneira de bloquear uma infecção é interrompê-la precocemente, de preferência antes de começar a infectar os glóbulos vermelhos. Mas de que maneira?
Desenvolvimento da nova vacina
Durante décadas, pesquisadores se concentraram no estágio de vida do Plasmodium ao invadir pela primeira vez a corrente sanguínea humana, chamado de esporozoíto. Em 1983, os pesquisadores descobriram que os esporozoítos são cobertos por uma proteína que provoca forte resposta do sistema imunológico. Em 1987, pesquisadores da empresa farmacêutica norte-americana GlaxoSmithKline desenvolveram uma vacina de teste contra a malária baseada nessa proteína, que é chamada de proteína circunsporozoíta, ou CSP, na sigla em inglês.
O objetivo da GlaxoSmithKline era criar proteínas transportadoras que conteriam traços de CSP e se autoagrupariam em bolhas esféricas microscópicas — tecnicamente chamadas de “partículas semelhantes a vírus” — que poderiam então ser injetadas no corpo humano, onde desencadeariam uma resposta imune. Se patógenos revestidos com a mesma proteína aparecessem posteriormente, o sistema imunológico estaria com suas defesas preparadas. Essa técnica já é utilizada para produzir vacinas atualmente. As vacinas contra o papilomavírus humano (HPV) e contra a hepatite B são baseadas em uma partícula semelhante ao vírus.
No caso da malária, os pesquisadores implementaram um fragmento de CSP em uma proteína retirada da superfície do vírus da hepatite B, que os pesquisadores já sabiam que se agrupavam em partículas esféricas. Quando essas proteínas são produzidas em massa em leveduras modificadas, elas se agrupam em partículas cravejadas com traços da proteína Plasmodium que estimulam o corpo a produzir anticorpos contra a CSP.
Essa vacina, chamada RTS,S, é a vacina candidata mais testada contra a malária (produzida pela GlaxoSmithKline sob o nome comercial Mosquirix). Durante a maior parte das últimas três décadas, pesquisadores, instituições filantrópicas, incluindo a Fundação Gates, e a GlaxoSmithKline, tentaram impulsionar a RTS,S. Os ensaios clínicos mostraram que a vacina é segura e, em 2015, a Agência Europeia de Medicamentos concedeu uma recomendação positiva, mas não a aprovação (em especial porque a vacina não é comercializada na União Europeia). Desde 2019, a RTS,S foi administrada a mais de 650 mil crianças em Gana, no Quênia e em Malaui, por meio de programas-piloto promovidos pela OMS.
Os ensaios clínicos da RTS,S mostraram que, em áreas de alta transmissão onde as crianças podem contrair malária mais de seis vezes por ano, a vacina preveniu cerca de 4,5 mil casos da doença para cada mil crianças vacinadas. Os modelos de estudo sugerem que, para cada 200 crianças que recebem RTS,S, a vida de uma delas será salva.
“Para colocar isso em perspectiva, [a RTS,S tem] quase a mesma eficácia de um mosquiteiro — e observamos o declínio impressionante na morbidade e mortalidade da malária com o uso de mosquiteiros”, explica a epidemiologista da OMS Mary Hamel, que gerencia o Programa de Implementação de Vacinas contra Malária da organização. “É possível usá-los em conjunto.”
Mas em relação a outras vacinas — como as vacinas contra a covid-19 surpreendentemente eficazes — a RTS,S tem um desempenho modesto. Os estudos descobriram que, no primeiro ano após a vacinação, para cada nove pessoas não vacinadas que contraíram malária, quatro haviam sido vacinadas, o que significa uma eficácia de cerca de 55%. Quatro anos após a vacinação, a eficácia caiu para cerca de 36%.
A OMS reconheceu que uma vacina mais eficaz poderia salvar mais vidas, por isso estabeleceu uma meta audaciosa em 2013: a agência de saúde anunciou que, até 2030, queria uma vacina contra a malária com eficácia de 75%.
E então surgiu a R21, a vacina candidata do ensaio clínico de Burquina Fasso. A R21 funciona de forma semelhante à RTS,S: implementa uma porção da proteína de Plasmodium em uma proteína da hepatite B e cria uma partícula esférica que estimula o sistema imunológico.
Mas devido às melhorias nas técnicas de fabricação de vacinas, a partícula da R21 é mais eficiente. Acontece que há menos proteína de Plasmodium na parte externa da partícula RTS,S do que teoricamente poderia haver. Para cada proteína da hepatite B que contém um fragmento de CSP de Plasmodium, quatro não têm. Na R21, no entanto, cada proteína tem um fragmento de Plasmodium — fornecendo à superfície de sua partícula semelhante ao vírus muitos mais locais para os anticorpos reconhecerem e se ligarem.
Os estudos de laboratório da R21 começaram em Oxford de 2010 a 2012, e os primeiros testes de “desafio” da vacina começaram anos depois, com voluntários saudáveis em Oxford, Londres e Southampton, no Reino Unido, que concordaram em ser infectados com malária para testar a segurança da vacina. Esses primeiros resultados foram promissores o suficiente para envolver o Serum Institute of India, um dos maiores fabricantes mundiais de vacinas. Em 2018, o instituto licenciou a vacina de Oxford, concordando em produzir de 200 a 300 milhões de doses da R21 por ano, caso fosse registrada formalmente.
Dois anos depois, em maio de 2019, o maior ensaio clínico de fase dois com 450 pessoas teve início em Burquina Fasso, em um distrito de saúde localizado em Nanoro. Tinto e seus colegas estavam extremamente bem-preparados: eles haviam administrado um dos centros de estudo para a vacina RTS,S.
Luta contra uma doença negligenciada
Hamel, a epidemiologista da OMS, elogiou os resultados da R21. Mas, assim como os coautores do estudo, ela pediu cautela até depois dos testes de fase três em 4,8 mil pessoas, que estão começando em cinco locais em Burquina Fasso, no Quênia, em Mali e na Tanzânia. De acordo com Tinto, os resultados são esperados para o fim de 2023 ou início de 2024. Datoo acrescenta que a equipe da vacina R21 poderia iniciar o processo de aprovação já no fim de 2022, se os legisladores africanos considerassem conceder autorizações de uso emergencial à vacina, assim como as emitidas para as vacinas contra a covid-19.
Uma questão fundamental é qual a eficácia de proteção da vacina R21 contra a malária em diferentes contextos de transmissão. Em Burquina Fasso, os casos de malária aumentam na estação chuvosa do país, que vai de junho a novembro; em outras regiões da África, a transmissão persiste durante todo o ano. No ensaio clínico da R21, os pesquisadores intencionalmente intercalaram as três doses — cada uma com quatro semanas de intervalo — para que fossem administradas logo antes da chegada da estação chuvosa de Burquina Fasso, de maneira a conciliar os altos níveis de anticorpos desencadeados pela vacina com o pico da temporada de malária.
Para Hamel, os últimos dois anos — mesmo com todos os desafios da covid-19 — mostraram o quanto as vacinas podem ser eficazes contra a malária. Os programas-piloto apoiados pela OMS para a vacina RTS,S ainda estão em andamento, apesar das interrupções nos sistemas locais de saúde causadas pela pandemia. Além disso, estudos mais amplos de programas de vacinação infantil na África mostraram que, entre famílias em que as crianças não dormem regularmente sob os mosquiteiros, cerca de 70% das crianças são vacinadas. Se uma vacina contra a malária fosse implementada em escala e administrada junto com outras vacinas pediátricas, um grande número de crianças que atualmente não têm acesso a outras intervenções contra a malária teriam pelo menos a proteção da vacina.
A covid-19 também destacou quanto progresso pode ser feito quando a comunidade global age com urgência para lidar com uma crise de saúde. Hamel deseja que o senso de urgência — e os fundos resultantes e apoio logístico — também existam para a malária. “Acredito que o maior obstáculo seja a complacência”, conclui ela. “Se fosse a primeira vez que houve 265 mil mortes de crianças de até 5 anos por malária durante um ano, consideraríamos uma emergência e lidaríamos de acordo. Mas ficamos acostumados com isso.”