Fungo negro raro infecta número preocupante de pacientes com covid-19 na Índia

O uso indiscriminado de esteroides e níveis elevados de glicemia são os possíveis responsáveis pelo aumento de uma infecção fúngica rara entre pacientes vulneráveis com covid-19.

Por Priyanka Runwal
Publicado 24 de mai. de 2021, 12:00 BRT
fungus

Profissionais de saúde usando equipamentos de proteção individual atendem um paciente com covid-19 na unidade de terapia intensiva do hospital da Universidade Teerthanker Mahaveer, em Moradabade, em 5 de maio de 2021.

Foto de Prakash Singh, AFP via Getty Images

Em 9 de maio, Ananyaa Mazumdar recebeu uma ligação que a deixou perplexa: seu primo em pânico informou que a tia de 48 anos, que havia se recuperado recentemente de uma infecção de covid-19, perdera grande parte da visão de ambos os olhos.

Os médicos do pronto-socorro do Max Super Speciality Hospital em Gaziabade, cidade satélite nos arredores da capital indiana, Nova Delhi, sugeriram que, como a infecção estava em estágio avançado, ela precisaria de uma cirurgia urgente para remoção dos olhos. A princípio, a família ficou em choque, mas logo percebeu que não havia outra opção.

“É tudo o que poderia ser feito — e tinha que ser feito”, lamentou Mazumdar. “É como se estivéssemos sentados em uma bomba-relógio.”

Sua tia diabética foi diagnosticada com uma infecção fúngica extremamente rara denominada mucormicose, cuja incidência disparou entre pacientes com covid-19 em recuperação ou recuperados, mas ainda vulneráveis, na Índia. Conhecida coloquialmente como “fungo negro” devido à sua pigmentação escura, essa infecção potencialmente fatal tem início no nariz, se espalha para os olhos e, em seguida, para o cérebro.

Especialistas em saúde pública apontam o uso indiscriminado de esteroides para tratamento da covid-19 como a provável causa. Os esteroides reduzem a inflamação nos pulmões, mas o uso excessivo desses medicamentos em pacientes com covid-19 pode resultar em baixa imunidade e hiperglicemia. Essas condições deixam alguns pacientes, em especial aqueles com diabetes não controlado, suscetíveis a essas infecções.

Enquanto a Índia — a capital mundial do diabetes — continua a lutar contra uma segunda onda devastadora de covid-19, os otorrinolaringologistas preveem que mais casos de mucormicose surgirão nas próximas semanas.

Em Delhi, por exemplo, Manish Munjal, cirurgião otorrinolaringologista do Hospital Sir Ganga Ram, vem tratando quase 15 novos casos todos os dias desde a semana passada. Segundo ele, a cidade registrou cerca de 250 casos de mucormicose desde abril.

“É um número muito alto”, afirma ele, comparando-o a um ou dois casos que ele costumava tratar por mês antes da pandemia.

No estado de Maarastra, no oeste da Índia, região mais duramente afetada pela covid-19, o secretário de saúde estadual, Rajesh Tope, declarou que poderia haver mais de dois mil pacientes com mucormicose. No estado vizinho de Gujarate, cerca de 300 casos foram relatados em quatro cidades.

“A preocupação é que isso seja apenas o começo. A infecção geralmente atinge o corpo duas a três semanas após o início da terapia com esteroides, e o número de casos pode aumentar bastante nas próximas semanas”, explica Munjal.

O que é o fungo negro?

A mucormicose é uma infecção invasiva causada por uma classe de fungos da ordem Mucorales. Esses fungos são onipresentes e ocorrem naturalmente em nosso meio ambiente, sendo mais comum no solo. Os humanos contraem a infecção através da inalação dos esporos dos fungos que flutuam no ar e na poeira. Esses esporos se alojam nos seios nasais e da face, causando doenças nessa região.

Mas nem todas as pessoas expostas aos esporos contraem a infecção. “Na maior parte dos casos, em pessoas com um sistema imunológico normal, haverá um quadro assintomático e imperceptível”, explica Tobias Hohl, chefe do serviço de doenças infecciosas do Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova York. Mas o desenvolvimento da doença invasiva depende do estado de saúde da pessoa.

Pessoas com o sistema imunológico comprometido, por exemplo, pacientes com leucemia submetidos a quimioterapia ou a transplante de medula óssea e que não conseguem produzir neutrófilos — um tipo de glóbulo branco que atua na defesa contra infecções — nas primeiras semanas, podem ser acometidos pela mucormicose.

Da mesma forma, durante uma infecção de covid-19, os pacientes que recebem doses altas e prolongadas de esteroides podem ficar com o sistema imunológico enfraquecido. “Vimos pessoas enlouquecerem com prescrições de esteroides”, conta Lancelot Pinto, pneumologista do Hospital e Centro de Pesquisa Médica P.D. Hinduja, em Mumbai. “Há uma percepção equivocada entre os médicos de que, quanto mais grave o caso de covid-19, maior a dose de esteroides necessária, o que não foi corroborado por nenhum estudo até o momento.”

Os esteroides podem fazer com que os níveis de glicemia aumentem, o que pode ser ainda mais desafiador para pacientes com diabetes não controlado. Hiperglicemia e maior acidez no sangue criam um ambiente fértil para o desenvolvimento dos fungos Mucorales.

Nesses pacientes vulneráveis, os esporos germinam para formar longos filamentos tubulares que podem crescer nos seios da face, nos ossos e na corrente sanguínea. Os sintomas de mucormicose e a evolução da infecção podem variar entre as pessoas; os quais incluem dor de cabeça latejante, febre, dor facial e nasal, secreção nasal escura, perda de visão, dor de dente, queda dos dentes, inchaço no maxilar superior e, às vezes, paralisia facial.

“Esta é uma infecção horrível e pode até causar desfiguração”, observa Hohl. “Se não for tratada, a infecção pode atingir o sistema nervoso central, tornando-a ainda mais perigosa.” A probabilidade de morte ultrapassa 50% se a infecção atingir o cérebro.

O diagnóstico precoce pode salvar vidas. Mas as infecções podem ser extremamente difíceis de tratar, mesmo em um estágio inicial.

Tratamento da mucormicose

Os pacientes recebem tratamentos antifúngicos, como injeções de anfotericina B lipossomal, em regimes de, no mínimo, 10 dias até várias semanas após o diagnóstico. Mas esses medicamentos essenciais têm o potencial de induzir efeitos colaterais significativos, incluindo danos renais.

Geralmente, uma intervenção cirúrgica também é necessária. Em casos menos graves, os médicos inserem um endoscópio na cavidade nasal e removem todo o tecido afetado. Se a infecção estiver ainda mais disseminada, os cirurgiões podem precisar remover os olhos ou a mandíbula.

No centro odontológico Samadhan Dental Super Speciality Center em Dhule, Maarastra, os cirurgiões dentistas e bucomaxilofaciais Rajesh e Shrenik Oswal trataram cerca de 50 ex-pacientes de covid-19 com mucormicose na mandíbula desde abril. Foi preciso remover total ou parcialmente a mandíbula de 25 deles para conter a propagação da doença.

Ajinkya Kelkar, cirurgião otorrinolaringologista nos Hospitais da Fundação Médica de Maarastra da cidade de Pune, tratou recentemente uma dúzia de pacientes com mucormicose associada à covid-19, dois dos quais foram submetidos à remoção ocular completa. Antes da pandemia, ele tratava de dois a três casos de mucormicose por ano.

“É um aumento preocupante”, diz ele. “Nunca esperávamos isso.” No domingo, o Conselho Indiano de Pesquisa Médica emitiu um comunicado para o rastreamento, tratamento e diagnóstico da mucormicose em tempos de covid-19.

Por enquanto, porém, essas infecções inesperadas trouxeram novos desafios para pacientes que já estão física, emocional e financeiramente esgotados em decorrência da infecção recente pelo novo coronavírus.

A crescente demanda por medicamentos antifúngicos criou uma escassez aguda, dando origem a um mercado secundário de medicamentos que já eram caros demais para a maioria das pessoas. Em um sistema de saúde sobrecarregado, encontrar hospitais onde pacientes com mucormicose possam fazer cirurgias e receber cuidados pós-operatórios pode ser outro desafio logístico.

Embora os casos de mucormicose na Índia afetem apenas uma pequena fração do número total de casos de covid-19 do país, esse aumento é preocupante. Para prevenir essas infecções em primeiro lugar, especialistas em saúde pública enfatizam que os hospitais mantenham a higiene, principalmente de equipamentos que fornecem oxigênio. Eles aconselham que os médicos prescrevam esteroides de forma criteriosa e sugerem o monitoramento regular da glicemia para todos os pacientes com covid-19, internados ou não, mesmo no período após a recuperação.

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