Milhões de pessoas não retornam para 2ª dose da vacina. Devemos nos desesperar?

Mais de cinco milhões de pessoas nos EUA não tomaram a segunda dose da vacina, mas alguns cientistas veem um ponto positivo nessa estatística. Resolvemos analisar os detalhes por trás desse número.

Por Maya Wei-Haas
Publicado 11 de mai. de 2021, 17:00 BRT
second vaccine

Pessoas aguardam na fila para receber a vacina contra a covid-19 no Centro Javits, principal centro de convenções de Nova York, em 7 de abril de 2021. O centro tem sido utilizado como local de vacinação em massa durante a pandemia.

Foto de Brittainy Newman, T​he New York Times, via Redux

No início de maio, passei a fazer parte de uma estatística. Sentada em meio às mesas de um escritório transformado em um centro de vacinação, recebi a segunda dose da vacina contra a covid-19.

Em apenas duas semanas, entrei para o grupo das mais de 100 milhões de pessoas nos Estados Unidos consideradas totalmente vacinadas. Contudo nem todos que receberam a primeira injeção das vacinas de duas doses disponíveis retornaram para receber a segunda: até o momento, mais de cinco milhões de pessoas nos Estados Unidos, quase 8% dos que receberam a primeira dose, não tomaram a dose de reforço.

Com base nos dados dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) divulgados pela primeira vez pelo The New York Times, a estatística preocupou muitas pessoas e estimulou o julgamento dessa população supostamente negligente. Porém diversos cientistas veem um ponto positivo: se 8% perderam a segunda dose, significa que 92% a tomaram, um número surpreendentemente alto.

“Eu considero uma grande vitória”, declara Saskia Popescu, epidemiologista de prevenção de infecções da Faculdade Mel e Enid Zuckerman de Saúde Pública da Universidade do Arizona. “Ninguém reconhece que a vacinação nacional em meio a uma pandemia é extremamente difícil.”

Enquanto ainda não se sabem os motivos exatos pelos quais algumas pessoas não tomaram a segunda dose, relatórios sugerem uma combinação de fatores, desde medo dos efeitos colaterais até falta de distribuição das vacinas. Detalhamos por que esse número foi considerado preocupante por uns e bem-sucedido por outros, por que é importante tomar as duas doses, por que as pessoas que não receberam a segunda dose não precisam entrar em pânico — e que ainda não é tarde demais para tomá-la, se estiver disponível.

Quem está entre os 8%?

O CDC classifica como “dose perdida” quando alguém que tomou a primeira dose não retorna para receber a segunda no prazo de seis semanas, de acordo com o calendário recomendado para vacinas de duas doses. Uma análise anterior de dados de vacinas, coletados até 14 de fevereiro de 2021, indicou que apenas 3,4% não haviam retornado para a segunda dose. Esse número mais que dobrou na última análise, que inclui dados até 9 de abril. 

Mas o período inicial de vacinação foi amplamente restrito a pessoas que receberam as injeções em seu local de trabalho ou residência, como profissionais de saúde e moradores de casas de repouso, o que diminui de forma significativa as dificuldades de receber a segunda dose. “No geral, esse aumento no número de pessoas que não retornaram para a segunda dose era esperado com o aumento da disponibilidade da vacina para mais pessoas”, segundo um porta-voz do CDC em declaração enviada por e-mail à National Geographic.

Pessoas que não retornam para receber as doses adicionais de vacinas com mais de uma dose não são uma novidade. Um estudo da vacina contra herpes-zóster administrada entre 2017 e 2019 constatou que entre 70% e 80% do público-alvo tomaram as duas doses. Segundo Popescu, a atual situação em meio à pandemia de covid-19 é ainda mais complexa. Os sistemas de saúde estão sobrecarregados, existem problemas na distribuição de vacinas e os desafios em divulgar a eficácia e segurança das vacinas são enormes.

É possível que algumas pessoas não tenham tomado a segunda dose com medo dos possíveis efeitos colaterais, que podem ser mais graves após a segunda injeção. O empecilho pode ser ainda maior para pessoas que não têm com quem deixar os filhos ou não podem tirar uma licença remunerada do trabalho, portanto não teriam tempo para ficar em recuperação, observa Popescu. 

E outros podem não ter tido a opção de tomar a segunda dose devido à falta de suprimentos ou dificuldade de encontrar centros de vacinação abastecidos com a mesma vacina da qual receberam a primeira dose. Em 4 de maio, o governo Biden anunciou uma mudança na estratégia para tornar as doses mais acessíveis, com o objetivo de que 70% dos adultos norte-americanos sejam pelo menos parcialmente vacinados até 4 de julho.

Até o momento, não se sabe os motivos exatos alegados por aqueles que não tomaram a segunda dose. Popescu enfatiza a importância de rastrear futuras doses perdidas para compreender por que as pessoas não retornam e eliminar quaisquer que sejam essas barreiras.

Qual a proteção proporcionada por uma dose?

Estudos recentes revelaram números animadores para a resposta imune após uma única dose das vacinas da Moderna ou da Pfizer-BioNtech. Um estudo em mais de 3,9 mil profissionais de saúde constatou que ambas as vacinas de mRNA forneceram aproximadamente 80% de proteção contra a infecção por Sars-Cov-2 pelo menos 14 dias após a injeção. Outro estudo em profissionais de saúde do Reino Unido, ainda não revisado por pares, constatou que uma única dose da vacina da Pfizer-BioNTech apresentou eficácia de 72% 21 dias após a injeção.

Com relação às pessoas infectadas anteriormente pelo Sars-CoV-2, um número crescente de estudos sugere que o sistema imunológico é fortemente acionado após a primeira dose de uma vacina de mRNA. “Para essas pessoas, a primeira dose tem um resultado similar às duas doses em outras pessoas”, explica Sarah Cobey, epidemiologista e bióloga evolutiva da Universidade de Chicago. “Elas respondem de forma potencializada.” Com mais de 30 milhões de infecções por Sars-CoV-2 notificadas nos Estados Unidos, pelo menos uma parcela dentre os 8% provavelmente já foi exposta ao vírus.

Afinal, por que a segunda dose é importante?

Com estudos promissores indicando um alto grau de proteção após uma única dose, por que retornar para tomar a segunda? “Porque a proteção não durará para sempre”, esclarece Chise Broussard, bióloga molecular especialista em patogênese viral e imunidade de hospedeiro da Moderna. O principal são as funções do sistema imunológico ativadas por cada dose.

As duas doses possuem exatamente os mesmos ingredientes, mas cada uma aciona diferentes funções do sistema imunológico, explica Broussard. A primeira dose é um preparativo que apresenta o organismo ao vírus. Essa dose ativa o que chamamos de linfócitos T auxiliares, que possuem diversas funções. Uma função essencial é auxiliar outro componente do sistema imunológico, denominado linfócitos B, na produção de anticorpos específicos contra o vírus Sars-CoV-2.

De acordo com Broussard, apesar de todo o sistema imunológico  estar voltado para esses minúsculos protetores celulares, “nem tudo se resume aos anticorpos. Por isso a segunda dose é necessária.”

Ela é uma dose de reforço, intensificando as defesas acionadas pela primeira injeção. Os principais responsáveis por essa função são os linfócitos T exterminadores que, como o nome já diz, exterminam as células infectadas pelo vírus, explica Broussard. Enquanto esses anticorpos iniciais induzidos pela vacina diminuirão em algum momento, os linfócitos T fornecem uma proteção mais prolongada.

“Os anticorpos são como uma espada, mas os linfócitos T são como um escudo”, compara ela.

Em cenários reais, fora de estudos clínicos, a segunda dose das vacinas da Pfizer-BioNTech e da Moderna aumentam a eficácia em prevenir a infecção em quase 90%. E os resultados de estudos de fase um em andamento da vacina da Moderna sugerem que os anticorpos induzidos pela vacina duraram pelo menos seis meses até o fim do período de análise.

Cobey observa que ainda não há evidências dos benefícios da segunda dose para pessoas infectadas anteriormente pelo novo coronavírus. Mas o CDC ainda exige que pessoas já infectadas pelo Sars-CoV-2 retornem para a segunda dose para serem consideradas totalmente imunizadas.

Ainda é possível tomar a segunda dose da vacina após o intervalo especificado?

Em resumo, sim. Atualmente, o CDC recomenda receber a segunda dose da vacina da Pfizer-BioNTech e da Moderna três ou quatro semanas após a primeira dose, respectivamente. Mas, se necessário, pode haver um intervalo de até seis semanas. Contudo esse intervalo oficialmente recomendado não foi otimizado para a melhor resposta imune, mas para que as pessoas sejam totalmente vacinadas mais rápido.

“Devido à urgência da pandemia, queremos que as pessoas estejam totalmente protegidas o mais rápido possível”, declara Brianne Barker, imunologista viral da Universidade Drew em Nova Jersey. Ela observa que um intervalo um pouco maior entre as doses ainda pode conferir proteção adequada.

Estudos de intervalos entre vacinas de covid-19 são limitados. Dados iniciais de um estudo em mais de 45,9 mil adultos no Reino Unido mostraram que as segundas doses das vacinas Pfizer-BioNTech ou Oxford-AstraZeneca administradas 12 semanas após a primeira dose ainda geraram fortes respostas imunes em pessoas de todas as idades.

É provável que mais dados sobre intervalos maiores surjam em breve no Reino Unido e no Canadá, onde o escasso fornecimento de vacinas forçou as autoridades a postergar o calendário de segunda dose para oferecer a primeira dose para mais pessoas. Essa estratégia, conhecida como espaçamento de dose, possivelmente salvará mais vidas do que limitar o fornecimento de primeiras doses para uma menor parcela da população, relata Cobey, da Universidade de Chicago.

Para as pessoas nos Estados Unidos que não tomaram a dose por falta de disponibilidade de vacinas, não é tarde demais, salienta Abinash Virk, copresidente da Grupo de Trabalho de Alocação e Distribuição das Vacinas contra a covid-19 da Clínica Mayo. Mesmo 60, 80 ou 90 dias depois, “deve-se ir tomar a segunda dose”, ela reitera.

Qual o impacto da imunização parcial em relação às novas variantes e infecções em imunizados?

Nenhuma vacina fornece 100% de proteção, então mesmo após o esquema de dose completo contra covid-19 ainda haverá alguns casos de infecções em imunizados (conhecidos em inglês como breakthrough infections, infecções que “quebram a barreira” das vacinas). Até 26 de abril de 2021, o CDC havia recebido relatos de mais de 9,2 mil imunizados infectados entre mais de 95 milhões de pessoas totalmente vacinadas. Ainda que casos raros de internação e morte possam ocorrer a partir dessas infecções, a vacinação reduz o risco de casos graves de covid-19.

A possibilidade de infecção entre pessoas parcialmente imunizadas preocupa alguns cientistas de que esses casos possam originar novas variantes. A hipótese pode ser resultante, em parte, de um estudo anterior que sugere que a variante observada pela primeira vez no Reino Unido, a B.1.1.7, surgiu durante uma infecção prolongada em um paciente imunocomprometido, relata Cobey.

Durante essas infecções, o vírus tem longos períodos para desenvolver mutações. A pressão adicional de tratamentos parcialmente eficazes, como plasma convalescente e anticorpos monoclonais, pode ter fornecido ao vírus uma característica evolutiva, permitindo que algumas mutações benéficas ao vírus prosperassem em um processo semelhante ao de bactérias que desenvolvem resistência a antibióticos.

Mas Cobey argumenta que a situação das vacinas é bem diferente. As vacinas contra a covid-19 parecem diminuir a atividade viral, causando infecções mais leves com menores cargas virais. Um estudo ainda não revisado por pares constatou que infecções em indivíduos que receberam uma única dose da vacina da Pfizer-BioNtech apresentaram até 20 vezes menos cargas virais em comparação com infecções em indivíduos não vacinados.

Menores cargas virais representam menos oportunidades de o vírus se replicar e agregar novas mutações, contendo as probabilidades de novas variantes surgirem, explica Cobey. “O sistema imunológico possui defesas.” Essas cargas virais menores após uma única dose indicam um menor potencial de transmitir a infecção, portanto, mesmo que surjam novas variantes, é menos provável que se espalhem.

E quanto aos efeitos colaterais da segunda dose?

Toda essa atividade do sistema imunológico devido à vacinação pode causar diversos efeitos colaterais, incluindo febre, dores de cabeça, dores no corpo e fadiga. Barker explica que essas reações são comumente mais intensas após a segunda dose, que induz uma resposta imune mais forte do organismo.

Mas nem todos apresentam efeitos colaterais. O ponto positivo é que a maioria das pessoas apresenta apenas reações leves que duram um ou dois dias. “Os sintomas de uma gripe leve e desagradável são toleráveis em comparação com os sintomas de covid-19”, compara Broussard.

Barker sugere que as pessoas que estão preocupadas com efeitos colaterais prolongados devem procurar seu médico. É fácil culpar a vacina por uma dor de cabeça ou fadiga persistente, mas muitos desses sintomas são comuns no dia a dia, principalmente após mais de um ano em isolamento social.

Em alguns casos pode ser apenas “uma reação ao ano de 2020, que deixou todos cansados”, ela brinca.

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