Conhecimento científico evidencia mentiras na CPI da Covid, diz pesquisadora de Harvard

Em entrevista exclusiva, a brasileira Marcia Castro aponta os erros do governo no enfrentamento da pandemia e diz o que poderia, e ainda pode, ser feito diferente.

Ex-ministro da saúde Eduardo Pazuello depõe na Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado, que investiga os erros no enfrentamento da pandemia no Brasil.

Foto de Edilson Rodrigues, Agência Senado
Por Kevin Damasio
Publicado 3 de jun. de 2021, 07:00 BRT, Atualizado 3 de jun. de 2021, 11:34 BRT

Desde 4 de maio, o Brasil acompanha a CPI da Pandemia, comissão formada no Senado para apurar os responsáveis pelo grave nível da epidemia de coronavírus no país, por ações, inações ou omissões.

Entre as 11 testemunhas que já depuseram, estão os ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Eduardo Pazuello, além do atual chefe da pasta, Marcelo Queiroga. Ao longo das oitivas, senadores e depoentes têm abordado pontos críticos na evolução da epidemia no Brasil, como, por exemplo, a ausência de uma coordenação a nível federal desde o princípio; o colapso sanitário em Manaus; o incentivo ao tratamento precoce com medicamentos sem eficácia contra a covid-19, enquanto lideranças do governo desdenham das medidas não farmacológicas eficazes, como uso de máscara e distanciamento social; o atraso nas negociações para compra de vacinas e a consequente lentidão no ritmo da campanha de imunização.

Os depoimentos ajudam a explicar por que o país, até 1º de junho, já contabilizava mais de 16 milhões de pessoas diagnosticadas com covid-19 e mais de 465 mil mortos pela doença, bem como a vacinação completa, com duas doses, de 22,37 milhões – apenas 10,57% da população desde 17 janeiro.

Em um mês de trabalho, senadores independentes e oposicionistas, que formam a maioria na CPI, consideram haver provas suficientes para incriminar o presidente Jair Bolsonaro por crime sanitário. A comissão tem prazo de 90 dias de duração. No relatório final, o relator Renan Calheiros pode indicar que o Ministério Público Federal (MPF) indicie os responsáveis, entre os quais, o próprio presidente.

Cientistas brasileiros já vinham estudando o curso da epidemia e os riscos do descontrole da transmissão no país. É o caso de Marcia Castro, demógrafa e professora da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard. Na revista científica Science, Castro publicou em maio um artigo sobre a evolução espaço-temporal da epidemia no Brasil. Os pesquisadores atribuem o colapso sanitário no país a cinco fatores principais: a desigualdade em um país de grandes dimensões, que impõe “diferentes condições de renda e de estrutura e qualidade da saúde pública”; uma “rede urbana densa intermunicipal, que não foi corretamente interrompida no pico das ondas”; o “alinhamento político entre governadores e presidente”, que resultaram em “polarização e politização que comprometeram a aderência da adoção das medidas”; a circulação do Sars-CoV-2 por mais de um mês até ser detectado no país; e municípios que “impuseram e relaxaram medidas em diferentes momentos, baseadas em diferentes critérios, o que facilitou a propagação”. Nos Estados Unidos, entre pesquisas, aulas e seminários, Castro conversou por vídeo-chamada com a National Geographic, no final de maio.

Em suas pesquisas, Marcia Castro utiliza sistemas de informação geográfica, sensoriamento remoto, estatística e análise espacial para identificar riscos e prevenir a transmissão de doenças tropicais. Durante a pandemia, Castro liderou um estudo que analisou como o coronavírus se espalhou pelo Brasil e comprovou que um falha generalizada em implementar repostas rápidas, coordenadas e justas, em um contexto de graves desigualdades locais, alimentou a propagação da covid-19.

Foto de Kris Snibbe, Harvard Staff Photographer

Kevin Damasio: Uma das frases que mais me marcou até agora na CPI da Pandemia foi da Mayra Pinheiro, secretária de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde do Ministério da Saúde. Quando perguntada sobre a responsabilidade do governo por uma parcela das mortes, ela falou que a responsabilidade é do vírus, e não do governo. O que essa declaração diz sobre a situação em que estamos hoje?

Marcia Castro: Às vezes é até difícil comentar algumas declarações feitas pelo governo. Se pensar desse jeito, para qualquer doença… A culpa da malária é do parasita; a culpa da dengue é do vírus; a culpa do zika é do vírus. É exatamente por isso que temos a ciência, que usamos as descobertas científicas para desenvolver vacina, remédio, tratamento. Eu acho que por trás dessa frase está o que temos visto desde o começo: uma negação da ciência. Ignoram o conhecimento científico. Faz parte do discurso que está acontecendo, mas é profundamente lamentável. É simplesmente não querer reconhecer a falta de ação, ou as ações erradas, principalmente no contexto da Mayra, com todo contexto em volta da cloroquina, com protocolo que existia, enfim. É difícil até ouvir uma coisa dessa e imaginar que a pessoa está na liderança do governo.

K.D.: Que impressões você tem até agora pelo que acompanha na CPI? Isso contribui para os estudos que já publicou, para além das análises de números e respostas? Como seus estudos se relacionam ao que está sendo dito?

M.C.: Eu estou trabalhando com dados de covid desde março do ano passado, quando tudo começou. Essas coisas que são ditas não afetam meu trabalho, até porque são totalmente erradas. Meu propósito em fazer o trabalho é tentar entender como a coisa está se espalhando. É tentar gerar informação para que, de alguma maneira, possa contribuir. Não vai ser usada pelo governo federal, porque está muito nítido que todo conhecimento gerado por muitos pesquisadores extremamente competentes não está sendo incorporado, mas estamos sendo ouvidos por governos locais. Então, tem muita coisa de sucesso localmente acontecendo no Brasil. São exemplos em que a ciência está sendo ouvida. E aí você chega em um momento como a CPI, em que realmente reunir o conhecimento que foi gerado é recurso para mostrar as mentiras e as negações que estão sendo afirmadas. Acho que todo mundo trabalhando com covid é movido pelo mesmo objetivo: gerar conhecimento. Nosso trabalho não é afetado por essas bobagens, mas ganha um propósito ainda maior: contrapô-las com evidência científica.

K.D.: O Renan Calheiros propôs que tivesse uma agência de checagem durante os depoimentos. Mas temos visto por parte de senadores e depoentes governistas um discurso muito enfático do kit-covid, do tratamento precoce, da cloroquina. Dizem que ainda é uma discussão na comunidade científica, quando na verdade já existe consenso a respeito disso. Esse tipo de discurso na CPI pode prejudicar ainda mais o curso da pandemia?

M.C.: Há muita desinformação circulando. Infelizmente, ainda há muita gente que acredita. Estamos falando de uma sociedade polarizada. As pessoas que vão para a rua seguir o presidente, andando de moto, sem máscara, provavelmente ainda acreditam em cloroquina, provavelmente são aquelas que não usam máscara. Claro que esse comportamento vindo de cima tem um impacto na adesão, no entendimento do que é certo, tem esse efeito na percepção do risco e no comportamento de um grupo muito específico, o grupo que apoia essa liderança. Agora, também temos que levar em conta que o único país que ainda discute cloroquina é o Brasil.

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    “Há muita desinformação circulando. Infelizmente, ainda há muita gente que acredita. Estamos falando de uma sociedade polarizada. As pessoas que vão para a rua seguir o presidente, andando de moto, sem máscara, provavelmente ainda acreditam em cloroquina, provavelmente são aquelas que não usam máscara. Claro que esse comportamento vindo de cima tem um impacto na adesão, no entendimento do que é certo, tem esse efeito na percepção do risco e no comportamento de um grupo muito específico, o grupo que apoia essa liderança.”

    K.D.: No estudo da Science, vocês mencionam que o Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes que possui um sistema de saúde universal, gratuito, bem estruturado. Voltando lá em março de 2020, quando estávamos na iminência do vírus começar a circular no país, mas ainda sem transmissão comunitária, como você pensava nessa época que o Brasil poderia responder, apesar de termos um presidente negacionista?

    M.C.: Tínhamos toda a experiência de outras emergências de saúde pública feitas pelo Brasil. A mais recente foi a introdução do zika, e nesse caso o Brasil foi o primeiro. Ninguém sabia da relação da microcefalia com a zika congênita. Então, o Brasil teve que dar uma resposta, gerar conhecimento, fazer tudo ao mesmo tempo. Não foi perfeito, mas foi uma resposta boa. Até a Nature publicou um editorial ressaltando a importância dos pesquisadores, das instituições de pesquisa, da verba emergencial do governo. E esse é só um exemplo. Tem vários, como o do HIV/Aids.

    Então, o que aconteceu? Quando a pandemia chega, o SUS já está sub-financiado. Teve a PEC que botou o teto em tudo, congelou gastos da saúde, educação, assistência social. O SUS já entra na pandemia desvalorizado. E tem todo um movimento público-privado, dos planos populares, com o limite de gastos, isso já não era muito bom. Apesar de todas as falas que começaram, de ‘gripezinha’ e não sei o quê; de saber que vários cargos ainda não tinham sido ocupados [no Ministério da Saúde]; de não ter sido formalmente feito um comitê consultivo; o que se esperava? Esperava-se que o Brasil tivesse tempo para planejar, porque já via o que acontecia na China, na Itália. Não seria o primeiro, como no zika. Não era uma questão de 'se chegasse’, mas de quando chegaria.

    Teve tempo para planejar a compra dos equipamentos de proteção – antes, e não quando o mundo inteiro quis comprar máscara. Teve tempo para pensar nos protocolos, e isso inclui o que faríamos com os agentes comunitários de saúde – qual é o treinamento que precisam ter, o equipamento de proteção para ir a campo. Já imaginar que talvez teria que contratar mais agentes, porque alguns, pela idade, talvez não fossem colocados em campo. Já tinham alguns estudos vindo da China mostrando os fatores de risco, comorbidade, idade. Houve tempo para se preparar para que, quando chegasse, já tivesse a estratégia de Saúde da Família pronta para ir a campo, sendo o agente um dos principais eixos da resposta. Estaria lá para poder identificar quem está com sintoma, quem está doente. Veja, toda aquela discussão que teve de rastreamento de contato só fazia sentido no começo, quando não estava com a curva lá em cima. Cheio de casos, nem que se bote o Exército conseguimos rastrear todo mundo. Todo esse planejamento poderia ter acontecido. A estratégia de Saúde da Família e os agentes nunca foram formalmente envolvidos. Um protocolo que saiu o ano passado, depois de um tempão, era para falar do atendimento na unidade, mas os agentes não receberam treinamento, nem equipamento de proteção. O que vimos é que em algumas cidades houve uma mobilização, mas por iniciativa local, porque não veio a recomendação federal. Você deve se lembrar de toda a confusão que deu de equipamentos. Teve estado do Nordeste que mandou avião para não sei aonde para trazer máscara; e aí vem o Ministério Público e quer processar o estado. O estado está tentando dar uma resposta, porque não veio a resposta a nível federal.

    Não teve um planejamento e uma ação que respeitassem o pacto integrado da saúde, que é a base do SUS – o nível federal provê as recomendações e orientações; o estadual e municipal são implementadores. Se tem uma ruptura nesse pacto, que é o que vimos, o nível municipal tenta fazer a coisa certa, mas sem uma orientação do nível federal; e o estadual ou está brigando com o federal e ajudando o municipal, ou está apoiando o federal e atrapalhando a vida do municipal. Virou uma coisa louca.

    O poeta inglês Damian Barr escreveu: “Não estamos no mesmo barco. Todo mundo está na mesma tempestade. Alguns estão em super-iates. Outros só têm o remo”. Foi isso que aconteceu quando você olha para as respostas dos municípios. E aí, claro, cada município fez uma coisa, em um momento do tempo diferente, com intensidades diferentes. Quando falamos de lockdown, teve município que fez. Araraquara fez, foi bem feito, um lockdown sério. Não demorou tanto tempo assim, aos pouquinhos já foi reabrindo. Agora, você faz um lockdown que não é um lockdown de verdade, que tem coisa que está aberta, que ninguém segue à risca, e ele se arrasta por muito tempo… As pessoas começam a reclamar, ainda mais em um país desigual como o Brasil.

    Na época do planejamento que deveria ter acontecido, tinha que ter um olhar para a desigualdade. Não podemos pegar uma medida que foi feita na Itália e meter no Brasil, com o nível de desigualdade que temos. A inclusão do agente comunitário é uma das formas de se abordar as desigualdades locais. Eles sabem onde estão os idosos, as casas onde não têm água. Era uma das chances de o Brasil dar uma resposta com o olhar para a desigualdade. A outra é deixar de lado essa bobagem da dicotomia entre saúde e economia e, no momento em que se faz um lockdown, entrar com auxílio emergencial. Não dá para fechar e não ter o auxílio, pensando no trabalhador informal, na pessoa que tem que ir para a rua de qualquer maneira. Trabalho e ensino remotos não são para todo mundo no contexto brasileiro. Foi tudo errado. Em vez de planejar, fazer as coisas certas e usar os recursos que o Brasil tinha e que nos torna diferente dos outros países, não usamos nada disso. E ainda se promoveu coisas erradas e desinformação.

    “A inclusão do agente comunitário é uma das formas de se abordar as desigualdades locais. Eles sabem onde estão os idosos, as casas onde não têm água. Era uma das chances de o Brasil dar uma resposta com o olhar para a desigualdade. ”

    K.D.: Na CPI, já tivemos o depoimento dos quatro ministros da Saúde. Como você avalia essas quatro gestões? Como avalia o que ouvimos com a realidade de como se deu a disseminação?

    M.C.: As perguntas que fizeram na CPI para os ministros são específicas. Eu acho que tem ações que foram importantes. Por exemplo, o Teich assinou um acordo para trazer a [vacina da] AstraZeneca para a Fiocruz. Ele não ficou muito tempo, porque se recusou a assinar aquele protocolo da cloroquina – foi só ele sair que o protocolo apareceu. O grande ponto aqui é que, por tudo que está sendo falado, é nítido que quem manda é o presidente. O atual, Marcelo Queiroga, está tentando se posicionar como um ministro da Saúde deveria se posicionar e, de certa forma, já disse coisas que vão contra o que o presidente fala. Como isso vai se desenvolver ao longo do tempo, eu não sei, mas acho que qualquer pessoa que tenta fazer a coisa certa, seguindo o juramento que fez quando se formou – no caso do Teich e do Mandetta, que são médicos –, não vai durar muito tempo. A postura do ministro Pazuello é totalmente diferente. Ele não é da área. Falam que ele era bom de logística, e tudo que a gente viu de logística não foi tão bom assim. É uma pessoa que não tem bagagem técnica, que nomeou outras pessoas para cargos altos no ministério da Saúde que também não são técnicos, um absurdo. O depoimento mais lamentável entre os ministros é claro que foi o do Pazuello, ainda mais com o habeas corpus para não vai falar disso ou daquilo. Mas até o que ele falou é inacreditável. Acho que a diferença é nítida entre postura, conhecimento técnico e compromisso com a própria profissão. A Mayra e o próprio Pazuello praticamente atacam instituições renomadas, que têm um histórico e uma contribuição científica para o Brasil, como a Fiocruz e a Anvisa. É quase uma tentativa de destruir instituições fortes, importantes, sem as quais o Brasil não seria tão bem posicionado internacionalmente em contribuição científica. O que cada um fez de certo ou de errado são coisas pontuais, que talvez não foram nem discutidas nessa CPI por não ser o escopo.

    K.D.: A ausência de uma coordenação nacional, com diretrizes para organizar as ações de estados e municípios, é o principal fator responsável para o Brasil estar nessa situação, com mais de 460 mil vidas perdidas e uma epidemia sem previsão de controle?

    M.C.: Eu não gosto muito de ir para esse lado do principal. É um conjunto de erros que se acumulam e, juntos, criam o cenário que levou à situação em que estamos. Era uma das primeiras coisas que tinham que acontecer. É o pacto integrado do SUS. Se não usa o SUS e a estratégia de Saúde da Família e rompe o pacto, destrói a forma como a resposta da saúde púbica acontece no país. Então, claro que isso foi importante. O Brasil é muito grande. Alguns municípios conseguiram reagir da melhor forma possível e ter medidas bem rigorosas, mas são 5.565. Precisamos desse pacto integrado. Eu não vou dizer que é o principal, mas claro que é um dos fatores. É como se tivesse uma cascada de eventos: um leva a outro, que leva a outro, que leva a outro.

    K.D.: Seriam aquelas cinco considerações que vocês fazem no estudo da Science, que ajudam a explicar? Você fez um estudo específico sobre o primeiro ponto, a desigualdade social do Brasil, com diferentes condições de renda e de estrutura e qualidade de saúde pública. O que encontrou?

    M.C.: É um ponto importante. O Brasil tem uma desigualdade muito grande historicamente. Então, não dá para deixar isso de lado, porque claro que importa. No estudo do Lancet, exatamente nos municípios mais desiguais, a desigualdade contribuiu para esse espalhamento inicial. Mas, depois, também tem lugares com muita desigualdade, mas que conseguiram reagir. O destaque é o Nordeste comparado com a região Norte, por exemplo. Por que essa desigualdade importa? Veja o caso do Amazonas. Todos os leitos de UTI estão em Manaus, os outros municípios têm um sistema em que a ambulância vai, pega e leva para a capital. Se todos os leitos já estiverem ocupados em Manaus, não conseguem absorver a demanda de outros municípios. Mas qual é a maneira de minimizar ou mitigar esses efeitos da desigualdade? É através do sistema de saúde. E no seu histórico de 30 anos, foi exatamente isso que o SUS conseguiu fazer. Claro que há variações na qualidade, não é perfeito, mas é melhor do que não ter esse pacto integrado e esse sistema de saúde. Então, as desigualdades importam, sim, mas sozinhas não explicam o que estamos vendo. E esse é um ponto importante. Você não pode simplesmente dizer: foi a resposta do governo; ou: são as desigualdades. Cada um tem uma contribuição importante, não podemos deixar nenhum deles de fora.

    “É inacreditável que as pessoas continuem usando máscaras costuradinhas. PFF2 para todo mundo – para professor, para motorista de ônibus. ”

    K.D.: Nos Estados Unidos, tinha um cenário muito similar ao Brasil em termos de descontrole da epidemia. Após a posse do Joe Biden, que medidas realmente eficazes foram colocadas em prática para controlar a epidemia? O que o Brasil pode tirar de lição?

    M.C.: Podia, né. Bom, nunca é tarde para fazer alguma coisa. A grande diferença aqui [nos Estados Unidos] é que o apoio à pesquisa científica sempre foi bipartidário. Não tem republicanos e democratas disputando sobre quanto de recurso será colocado nos institutos de saúde e de ciência. Assim que a pandemia começou, teve um programa de aceleração de conhecimento científico, e isso realmente permitiu o desenvolvimento das vacinas. No Brasil, não. O Brasil cortou o dinheiro para pesquisa. Temos grupos tentando desenvolver vacina, mas com pouquíssimo recurso. Esse é um ponto que temos que levar em conta. Apesar de o governo Trump ser do jeito que era, com um discurso muito parecido com o do Bolsonaro, o apoio à pesquisa estava ali. Todo o mecanismo para esses grupos se dedicarem e, em tempo recorde, desenvolverem vacina estava lá e deu frutos. Esse é o grande diferencial. A vacinação no fim do ano ainda estava desorganizada. Quando o governo Biden entrou, eles viram que o controle de informações – para onde foi vacina, para onde vai – e o planejamento estavam um caos. Eles puseram isso em ordem, e rapidamente, os Estados Unidos chegaram a vacinar mais de 4 milhões por dia. Agora está caindo um pouco. Em alguns estados está chegando a um limite em que tem que começar a dar ticket de futebol e não sei o que mais, para as pessoas se vacinarem. O Brasil poderia ter comprado mais vacinas no ano passado, como essas de mRNA, e não fez. Só foi comprar a Pfizer esse ano. É uma tremenda diferença.

    Aqui tinha desinformação do mesmo jeito. O Trump falava da cloroquina, tinha essas bobagens todas, tudo igual. Quando chegou esse ano com o novo governo, mudou da água para o vinho. Até os dados coletados e disponibilizados mudaram, porque antes não tínhamos muita coisa. O apoio à ciência permitiu o desenvolvimento das vacinas e foi o divisor de águas. Aqui não tem um sistema único de saúde, é totalmente diferente. Não tem nem essa chance de ter um olhar para a desigualdade. Você olha as estatísticas de mortes por covid, e são negros e latinos que estão morrendo. Não tinha nem a chance de usar um sistema de saúde disponível para todo mundo. Tem gente que sobreviveu à covid que ainda está pagando a conta do hospital. Há semelhanças, mas também diferenças importantes que permitiram chegarmos no momento em que estamos agora.

    K.D.: Quais são as principais ações que o Brasil precisa adotar atualmente, para começar a controlar a epidemia e deixar esse efeito de iô-iô, em que se melhora um pouquinho e reabre de novo, depois vem mais uma onda?

    M.C.: O que tem que fazer é algo diferente do que se fez antes. Por que está nesse iô-iô? Exatamente por isso que disse. Fecha. Começa a cair – e não está caindo muito rápido, ainda está em um nível muito alto – e reabre rápido demais, sem fazer nada diferente. O que tinha que acontecer? Na medida em que começa a cair, é preciso entrar com medidas novas. Por exemplo, treinar e capacitar os agentes comunitários de saúde e começar a ter uma resposta local. Temos testes de antígeno agora, que não são caros. Coloca esses testes na bolsa do agente comunitário, que pode testar as pessoas, e não apenas na farmácia, onde só o rico vai comprar. Mas precisa criar um protocolo. Se a pessoa testa positivo, o que o agente faz? Qual é o esquema que vai montar para isolar algumas dessas pessoas, que estão infectadas em uma casa em que moram várias outras? Tem que tirar aquela pessoa de lá, talvez isolar as outras. Enfim, o que precisa é fazer algo diferente. Simplesmente começar a reabrir, com vacinação extremamente lenta, com as pessoas passando a relaxar em termos de uso de máscara, passando aquela sensação de que resolveu o problema – é claro que vai aumentar de novo.

    Já há alguns locais, o [Hospital Albert] Einstein, por exemplo, que já estão pensando em expandir leitos, porque já tem muita gente internada. Fica nessa situação em que, na verdade, nunca chegamos a um nível muito baixo, porque não fazemos nada diferente. Nesse momento, há alianças de prefeitos e algumas coligações. Eu participo de um grupo que tenta trabalhar com essas alianças. O que estamos fazendo é isso: gerar documentos, prover informação para protocolos, interagir diretamente com os agentes, tentar de alguma maneira – via doação, seja lá o que for – distribuir máscaras de alta qualidade. É inacreditável que as pessoas continuem usando máscaras costuradinhas. PFF2 para todo mundo – para professor, para motorista de ônibus. Agora, achar que, quando começa a cair, mas ainda com mais de duas mil mortes por dia, já pode voltar ao normal, aglomerar em um bar… Aí não tem jeito. Vamos ficar nessa, e pior: criamos as condições para novas variantes emergirem. Já temos alguns casos da variante que inicialmente surgiu na Índia. Já saiu a notícia de que uma nova variante foi identificada, a P.4. Criamos o ambiente ideal para que surjam novas variantes, e algumas dessas variantes podem acabar evadindo a imunidade de uma infecção anterior, que foi o caso da P.1, com muitos casos de reinfecção, ou outra que pode evadir também a imunidade da vacina. Aí voltaríamos à estaca zero. É totalmente inconsequente o que estamos vendo de reabertura, sem a introdução de outra medida que permita a contenção.

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