O que precisamos saber sobre a tão comentada imunidade coletiva
Sem a imunidade coletiva, os países enfrentarão surtos localizados. Mas especialistas afirmam que, mesmo que ela não seja alcançada, ainda há motivos para se ter esperança.
Jason Wallace (centro), diretor da Comissão para Pais, Homens e Meninos do Distrito de Colúmbia, recebe apoio emocional do diretor do Departamento de Cultura e Vida Noturna, Shawn Townsend (esquerda) e do vice-prefeito John Falcicchio (direita) enquanto toma a vacina da Johnson & Johnson contra o novo coronavírus, aplicada pela enfermeira Kendria Brown. No evento organizado pelo Departamento de Saúde do Distrito de Colúmbia, também era distribuída uma cerveja às pessoas recém-vacinadas, cortesia oferecida pela empresa Solace Brewing.
A imunidade coletiva costuma ser considerada a cartada final contra a pandemia de covid-19. Esse limiar é atingido quando o vírus não consegue se espalhar com facilidade porque a maioria das pessoas adquiriu imunidade através da vacinação ou pela infecção natural. Desse modo, “o vírus simplesmente não encontra mais nenhuma pessoa que possa ser infectada”, e a ameaça desaparece, conforme explica Monica Gandhi, professora de medicina e especialista em doenças infecciosas da Universidade da Califórnia, em São Francisco, nos EUA.
Especialistas estimam que, no caso da covid-19, a imunidade de rebanho será atingida quando 65% a 80% da população for vacinada — uma estatística que parecia plausível para os Estados Unidos, quando vacinas altamente eficazes começaram a ser administradas. Mas, depois de atingir o auge no início de abril, com uma média de sete dias com mais de três milhões de doses aplicadas por dia, a taxa caiu, o país passou a administrar uma média de um milhão de doses por dia.
Em meio a um turbilhão de desinformação, problemas de distribuição e hesitação justificada, até o dia 3 de junho somente 51% dos norte-americanos haviam recebido pelo menos uma dose, e apenas 41% estavam totalmente imunizados.
No dia 1° de junho, Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, anunciou que qualquer pessoa que for vacinada no país pode ganhar uma rodada gratuita de cerveja da Anheuser-Busch. Esse é um dos incentivos mais recentes oferecidos pelo governo para ajudar a cumprir a meta de aplicar pelo menos uma dose da vacina em 70% dos adultos até 4 de julho, um marco importante na tentativa do país em alcançar a imunidade coletiva. Alguns estados também oferecem bilhetes de loteria, café gelado gratuito ou — no caso do estado da Virgínia Ocidental —caminhões e rifles de caça personalizados.
Mesmo assim, alguns especialistas afirmam ser possível que os Estados Unidos nunca atinjam a imunidade de rebanho. Em uma pesquisa de opinião recente realizada pela Fundação Kaiser Family, 13% dos adultos norte-americanos declararam que “definitivamente não” tomarão a vacina. O que irá acontecer, então? Vamos analisar o que os cientistas têm a dizer sobre a situação dos Estados Unidos no momento, o impacto disso na retomada da rotina pré-pandemia e por que ainda há motivos para se ter esperança, mesmo que o número necessário para alcançar a imunidade coletiva não seja atingido.
O que é imunidade de rebanho?
O conceito de imunidade de rebanho é bastante simples: imagine um rebanho de gado. Se um animal do rebanho for infectado por um vírus e nenhum dos outros estiver imune, o vírus tem o potencial de se espalhar pelo grupo todo, possivelmente adoecendo ou matando cada animal. Mas, se alguns dos animais adquirirem imunidade, podem impedir a transmissão para os outros.
O cálculo do número de pessoas em uma determinada população que precisam adquirir imunidade para proteger o resto da comunidade depende de alguns fatores: a rapidez com que um patógeno pode se disseminar entre as pessoas; a suscetibilidade da população à infecção; e comportamentos individuais que podem facilitar ou mitigar a transmissão, como a propensão ao uso de máscaras e ao distanciamento social.
A imunidade coletiva ocorre quando uma pessoa infectada transmite o vírus para menos de uma pessoa, em média. Nas primeiras fases da pandemia atual de covid-19, a média de transmissão do Sars-CoV-2 era entre três e quatro novos casos por indivíduo infectado. Naquele ponto, os cientistas acreditavam que, para a imunidade de rebanho ser atingida, seria necessário vacinar 60% a 70% da população.
Mas, à medida que surgiram variantes mais contagiosas, esse número aumentou para 65% a 80%, relata Saad Omer, epidemiologista de doenças infecciosas e diretor do Instituto de Saúde Global da Universidade de Yale. Em dezembro de 2020, Anthony Fauci, assessor da Casa Branca, sugeriu que até 90% da população precisaria ser vacinada para atingir a imunidade de rebanho.
Mas imunidade coletiva não é o mesmo que erradicação — fato que os especialistas afirmam ter sido mal compreendido diversas vezes durante a pandemia em curso. Essencialmente, ainda que a imunidade coletiva desacelere o nível de transmissão, surtos ainda podem ocorrer, mesmo após uma determinada população atingir o limiar de pessoas imunizadas, explica Michael Osterholm, diretor do Centro de Pesquisa e Políticas de Doenças Infecciosas da Universidade de Minnesota.
Por exemplo, no caso do sarampo ou da difteria, mesmo que o público em geral não precise se preocupar com elas, ainda ocorrem surtos locais dessas doenças. Assim como acontece com a gripe sazonal, outras doenças também podem se tornar endêmicas, circulando em uma população em um nível menos virulento, mas capaz de infectar quando nossas defesas falham.
“O que os limiares de imunidade de rebanho geram é um controle mais sustentável e de longo prazo dos surtos”, complementa Omer.
O que acontecerá se não atingirmos a imunidade coletiva?
Alguns especialistas temem que esse limiar seja inalcançável. Mesmo com a autorização da vacina da Pfizer para uso emergencial em adolescentes, o jornal New York Times estima que 70% desta população não receberão a primeira dose da vacina antes do mês de outubro — isso se a taxa de vacinação não continuar diminuindo. No entanto ainda existem grandes grupos de pessoas não vacinadas em todo o país, incluindo crianças menores de 12 anos, que ainda não são passíveis de imunização.
Osterholm compara o limiar de imunidade de rebanho a um meteorologista informando a temperatura média nacional, em vez das condições do tempo locais. As taxas de vacinação — e sua consequente proteção — variam de comunidade para comunidade. Embora a maioria dos estados do nordeste dos Estados Unidos tenha aplicado pelo menos uma dose em mais de 60% da população, uma grande quantidade de estados do sul, incluindo Mississippi e Louisiana, vacinou menos de 40%.
“A natureza do coronavírus e de outras doenças infecciosas é encontrar pontos de vulnerabilidade”, afirma Amber D’Souza, professora de epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg. “Portanto, onde houver grupos de pessoas desprotegidas, haverá surtos de infecções. É apenas uma questão tempo para que aconteçam.”
Infecções naturais podem ajudar a preencher a lacuna da imunização, mas Omer afirma ser impossível ter certeza do número de pessoas que adquiriram a imunidade natural. Não se sabe ao certo quanto tempo dura a imunidade natural, no entanto Osterholm afirma estar evidente que as vacinas proporcionam imunidade superior.
Se os Estados Unidos não atingirem a imunidade coletiva, haverá mais surtos do que se o país ultrapassasse esse limiar. Mas é provável que a situação não se torne tão extrema em comparação com o mês de janeiro, quando houve o pico no número de hospitalizações e mortes no país inteiro. Omer afirma que, em vez disso, haveria surtos periódicos menores e menos vidas perdidas, já que as pessoas voltam a ficar em casa durante os meses de outono e inverno.
“Isso não significa que teremos que fechar o país inteiro cada vez que um surto ocorrer”, diz Omer. “Mas lembre-se de que, se houver uma enchente em um mês e a água chegar ao pescoço no próximo, a situação é muito ruim, mesmo que a água ainda não esteja acima da cabeça.”
Osterholm também chama a atenção para uma falsa sensação de segurança em comunidades com baixos níveis de vacinação— incluindo o sul dos Estados Unidos — mesmo que o número de casos esteja caindo. “Não sabemos por que o vírus se comporta dessa maneira, por que ele vem e vai”, ele afirma. “Temos que ter cuidado para não interpretar a ausência de casos no momento como um sinal de que estamos protegidos.”
D’Souza acrescenta que as doenças infecciosas são dinâmicas: enquanto o vírus puder circular por qualquer lugar — tanto em bolsões nos Estados Unidos quanto em países que ainda não têm amplo acesso às vacinas — ele representa uma ameaça para pessoas imunodeprimidas e outras que não foram vacinadas. Ele também pode dar origem a variantes que não podem ser combatidas pelas vacinais atuais.
E ainda não se sabe por quanto tempo as vacinas protegem contra o vírus e se mais doses de reforço serão necessárias. Mesmo que os Estados Unidos atinjam a imunidade de rebanho, ela pode não durar.
“Um dos desafios que teremos em relação à imunidade de rebanho é que ela não será uma situação definitiva”, afirma Osterholm. “Estar vacinado hoje não significa necessariamente estar vacinado no ano seguinte.”
Por que há motivos para se ter esperança
Porém cientistas enfatizam que nem todas as notícias são pessimistas.
“Estou preocupado com o ritmo lento da vacinação, mas, por outro lado, também há sinais de esperança”, indica Omer, citando a queda no número de casos, hospitalizações e mortes no país. “Acho que estamos observando os efeitos indiretos da vacinação em ação.”
Assim como atingir a imunidade coletiva não significa erradicar um vírus, também não é necessário fazer grandes esforços para garantir os benefícios da vacinação. D’Souza argumenta que a imunidade de rebanho deve ser considerada algo gradual, e não um número isolado: à medida em que mais pessoas são vacinadas, a população inteira fica mais protegida.
“Talvez o número de 80% de pessoas vacinadas nunca seja atingido, e não há problema nisso”, ela diz.
Omer chama a atenção para as taxas impressionantes de imunização entre pessoas mais vulneráveis à morte e à forma grave da doença. De acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), 75% das pessoas com 65 anos ou mais estão totalmente vacinadas e quase 86% receberam pelo menos uma dose. Omer, que participou de um comitê consultivo no CDC sobre a priorização da vacinação, comenta que essa era a intenção.
“Todos nós queremos que as taxas de infecção caiam, mas primeiro queremos ver as mortes diminuírem, e de forma mais acentuada”, ele conclui. De fato, esses números estão caindo. A média no número de mortes em todo o país passou de mais de 3,5 mil por dia para cerca de 500. O número de novos casos também caiu para menos de 15 mil na média de sete dias. “Isso abriu espaço para agirmos mais, tanto no nível social quanto físico.”
Gandhi aponta que, uma vez que restrições comportamentais são uma forma de controlar a epidemia, é necessário aliviar essas restrições para verificar se a imunidade de rebanho realmente foi atingida. Nesse caso, há boas notícias vindas de Israel, onde o número de casos caiu tanto até o dia 19 de abril — quando apenas 54% da população havia recebido as duas doses — que o governo afrouxou as restrições.
“Foi um caso fascinante porque não houve aumento no número de casos durante a o relaxamento gradual das restrições”, relata Gandhi.
Osterholm afirma que, embora ele não acredite que os Estados Unidos conseguirão atingir a verdadeira imunidade coletiva, isso não diminui a importância de vacinar mais pessoas. Imunizar 50% a 70% da população com uma vacina que tem 95% de eficácia contra a covid-19 trará muitos resultados.
“O vírus terá mais dificuldades para encontrar alguém que possa ser infectado”, ele diz. “Ele vai encontrar, mas vai demorar mais tempo. E quanto mais pessoas estiverem vacinadas, mais protegidas estarão as pessoas não vacinadas.”
D’Souza conta que, nos Estados Unidos, as próximas semanas e meses serão cruciais para observar se os programas estaduais de vacinação funcionaram ou se a taxa de vacinação em crianças aumentará à medida que são disponibilizadas vacinas para grupos de pessoas mais jovens.
“Quanto mais pessoas vacinarmos, maior será o benefício”, ela acrescenta. “Queremos voltar ao ponto em que as pessoas possam ir a um grande show sem se preocuparem, em que as escolas possam ser reabertas sem uso de máscaras e distanciamento social. Esse é o objetivo — voltar a ter uma vida sem preocupações.”