Sua próxima vacina pode ser cultivada em plantas de tabaco
A tão esperada tecnologia de vacina à base de plantas pode facilitar a chegada de vacinas contra a covid-19 a países em desenvolvimento.
Funcionária examina plantas de tabaco que contêm vacinas, na estufa da empresa Medicago, na cidade de Quebec, no Canadá.
A pandemia de covid-19 evidenciou problemas alarmantes em relação à capacidade de produção de vacinas em escala global. A fabricação convencional de vacinas é dispendiosa e complexa. Desse modo, para os poucos países que possuem tecnologia, recursos humanos e fundos suficientes para a produção de vacinas, vem sendo um desafio todo o processo de fabricação e distribuição das bilhões de doses de vacinas contra a covid-19, com os obstáculos do controle de qualidade e riscos de contaminação.
Além disso, as vacinas convencionais devem ser mantidas em temperaturas baixas; algumas, por exemplo, precisam ser mantidas a -60 graus Celsius durante o transporte e no local de armazenamento. Todo o processo para manter as vacinas em temperatura ideal é, além de caro, um grande obstáculo para sua distribuição em áreas rurais, em comunidades de difícil acesso ou em países com infraestrutura limitada. Para alguns cientistas, usar plantas no processo de fabricação de vacinas pode ser a solução.
Embora as vacinas à base de planta ainda não estejam disponíveis para uso humano, há várias delas em desenvolvimento. A Medicago, empresa canadense de biotecnologia, está realizando ensaios clínicos de fase três para uma vacina à base de planta contra a covid-19. De acordo com Brian Ward, diretor médico da Medicago, os ensaios clínicos para uma vacina à base de planta contra a gripe, também desenvolvida pela empresa, já foram concluídos e a vacina aguarda aprovação final do governo canadense. Em dezembro, a Kentucky BioProcessing, subsidiária de biotecnologia da British American Tobacco Company nos Estados Unidos, anunciou que sua vacina contra a covid-19 à base de planta estava entrando nos ensaios clínicos de fase um e, em outubro do ano passado, a empresa japonesa Icon Genetics GmbH começou os ensaios clínicos de fase um para uma vacina de origem vegetal contra norovírus. Universidades, start-ups de biotecnologia e governos fizeram parcerias bem financiadas para ampliar as pesquisas nessa área. O governo sul-coreano investiu US$ 13,5 bilhões em pesquisas de vacinas à base de planta. A primeira instalação de produção de vacinas à base de planta do país, na cidade de Pohang, deve ser inaugurada em outubro deste ano. Segundo uma estimativa, o valor de mercado da vacina à base de planta deverá aumentar de US$ 40 milhões para US$ 600 milhões nos próximos sete anos.
“A indústria de vacinas à base de planta está se movendo a passos lentos, mas com certeza está avançando. Agora, produzir uma vacina contra o coronavírus é perfeitamente viável e muito rápido, então eu diria que é possível produzir dezenas de milhões de vacinas suficientes para os próximos seis meses ou mais”, afirma Kathleen Hefferon, escritora e professora de microbiologia da Universidade de Cornell, especializada em pesquisa de plantas e biotecnologia agrícola. “Agora que temos maior possibilidade de sucesso, espero que essas facilidades abram as portas para novos avanços no desenvolvimento de vacinas à base de planta”.
Os problemas com as vacinas convencionais
A indústria de vacinas à base de planta não é nova; seus primeiros protótipos remontam ao início da década de 1990. Segundo Hefferon, nessa época os cientistas chegaram a utilizar batata, arroz, espinafre e milho, entre outras plantas, para produzir vacinas contra dengue, poliomielite, malária e peste bubônica, mas nenhuma delas atingiu o estágio final de ensaios clínicos, talvez devido à falta de estrutura regulatória para medicamentos à base de planta ou insegurança em investir em novas biotecnologias.
Em 2006, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos aprovou uma vacina à base de planta para a doença de Newcastle, que infecta aves. Mas nenhuma vacina à base de planta foi aprovada para uso em humanos e, até recentemente, nunca havia passado para a fase de ensaios clínicos avançados.
Para produzir vacinas, é necessária a produção em massa de antígenos (moléculas que desencadeiam uma resposta imunológica a um vírus ou bactéria específica). Geralmente os antígenos produzidos são vírus e bactérias inativados ou mortos, toxinas ou proteínas virais e bacterianas, como a proteína de espícula do Sars-Cov-2. Para as vacinas contra a covid-19 da Pfizer-BioNTech e da Moderna, as moléculas de mRNA — pequenos fragmentos de material genético que instruem as células humanas a fabricar a proteína de espícula do novo coronavírus — também devem ser purificadas em laboratório e produzidas em massa, o que é bastante dispendioso.
Os antígenos de vacinas convencionais são produzidos pelos cientistas ao infectarem células de organismos como insetos, rins de macaco e ovários de hamster. Manipuladas em laboratório, essas células entram em contato com o vírus ou fragmento de código genético viral introduzidos que enganam as células, fazendo com que criem cópias do vírus ou antígeno. As linhagens celulares são incubadas em grandes biorreatores de metal por dias ou até semanas, passando por um processo de purificação longo e complexo antes de serem envasadas em frascos.
Os desafios são o preço dos biorreatores, a quantidade necessária de profissionais treinados para operá-los e o alto risco de contaminação. Além disso, os biorreatores que cultivam diferentes tipos de antígenos devem ser mantidos em instalações separadas e em condições rigidamente controladas e estéreis.
“A pandemia de covid-19 deixou evidente que não há capacidade de fabricação de vacinas em escala global”, afirma John Tregoning, pesquisador de doenças infecciosas da Universidade Imperial do Reino Unido. Isso se deve aos custos inacessíveis, falta de locais adequados e grande demanda de profissionais envolvidos. O Departamento de Defesa dos Estados Unidos estima que manter uma instalação que fabrique apenas três tipos de vacinas, durante 25 anos, pode chegar a custar US$ 1,5 bilhão.
Plantas como fábricas de vacinas
A produção de vacinas à base de planta descarta a necessidade de biorreatores, pois as próprias plantas fazem a função desses equipamentos. As plantas podem ser cultivadas em estufas farmacêuticas e climatizadas. As estufas impedem o contato de insetos e pragas com as plantas e não requerem condições estéreis, como é o caso da fabricação de vacinas convencionais.
Na estufa da Medicago em Raleigh, estado da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, dois braços mecânicos seguram uma bandeja de aço com 126 plantas em período juvenil da espécie Nicotiana benthamiana — uma parente australiana da planta do tabaco utilizada para produzir cigarro. A bandeja de plantas é rapidamente invertida e mergulhada em uma bacia de metal com um líquido contendo milhões de agrobactérias, um grupo de bactérias que naturalmente infectam as plantas. Nessa estufa, as agrobactérias são alteradas para abrigar um pequeno fragmento de DNA do vírus influenza ou covid-19. Enquanto as plantas estão submersas, um pequeno aspirador suga suas raízes, fazendo com que as folhas murchem. Poucos segundos depois, o ar é liberado, fazendo com que as folhas voltem a se expandir. Assim, as plantas absorvem o líquido repleto de agrobactérias, que por sua vez se espalham por toda a estrutura vascular da planta.
Em questão de minutos, as plantas Nicotiana benthamiana foram transformadas em biorreatores em miniatura. As agrobactérias transferem o DNA viral para as células vegetais, que então fazem milhões de cópias de partículas semelhantes a vírus que servem como antígenos, mas não são infecciosas.
“É muito bacana. Na verdade, é uma das melhores coisas que existem. É chamado de agroinfiltração ou infiltração a vácuo”, diz Brian Ward, da Medicago. As plantas são reassentadas na estufa e, após cinco ou seis dias, as folhas são colhidas, colocadas em uma esteira rolante, cortadas em pequenos pedaços e mergulhadas em uma solução com enzimas que decompõem a parede celular da planta, liberando milhões de partículas semelhantes a vírus, que são purificadas e envasadas, como explica Ward. O produto final é uma vacina de origem vegetal. A vacina contra a gripe da Medicago foi a primeira do mundo a concluir os ensaios clínicos de fase três, em 2018.
Para vacinas convencionais, depois que o vírus ou as partículas virais são extraídos das células que os desenvolveram e, posteriormente purificados, devem ser mantidos sob refrigeração. Esse processo também ocorre, por exemplo, com as vacinas à base de planta contra a gripe e contra a covid-19 desenvolvidas pela Medicago.
Mas a etapa de purificação é desnecessária nos processos de desenvolvimento de outras vacinas à base de planta. Outra planta que também é frequentemente utilizada na produção de vacinas é a alface geneticamente modificada. Henry Daniell, pesquisador da Universidade da Pensilvânia que esteve envolvido na produção de vacinas à base de alface, conta que os cientistas utilizam uma arma genética para inserir um fragmento do DNA viral no genoma do cloroplasto de uma semente de alface. Essa seria a parte da planta responsável pela fotossíntese — o processo pelo qual a planta converte a luz solar em energia utilizável. Os cloroplastos carregam cerca de 100 cópias do genoma (material genético que fornece à célula as instruções de funcionamento e para fazer cópias de si mesma) do DNA viral, o que a diferencia da maioria das outras células, que possuem apenas uma cópia. Isso significa que os cloroplastos podem produzir até 100 vezes a quantidade do antígeno-alvo.
Uma vez que o gene viral foi inserido no genoma, a semente é cultivada sob condições controladas, porém normais, em uma fazenda ou estufa e, em seguida, colhida. Mas nesse caso, como a alface é uma planta comestível, em vez de purificar as partículas semelhantes a vírus removendo todas as células e detritos da planta, os cloroplastos contendo o antígeno são moídos para formar um pó que depois será formulado em uma pílula ou cápsula para ser administrado por via oral. Várias vacinas à base de alface para humanos e animais estão em desenvolvimento, mas nenhuma avançou para os ensaios clínicos. A vantagem de uma vacina em comprimido é que ela pode ser armazenada em temperatura ambiente por longos períodos, o que torna desnecessário todo o processo de armazenamento em temperaturas baixas.
Os custos estimados da produção de vacinas à base de planta ainda não foram divulgados, mas de acordo com Daniell, “não há dúvida de que é mais barato produzir vacinas em plantas em vez de utilizar os biorreatores tradicionais. As instalações de fermentação de biorreatores custam milhões de dólares. Além disso, é necessário purificar o material, manter as doses em temperaturas baixas e assim por diante”.
A tecnologia de vacinas à base de planta não só ajudará o mundo a reagir melhor a pandemias atual e futuras, como também é uma oportunidade de expandir a produção de vacinas para países em desenvolvimento, de acordo com Hefferon. As vacinas continuam sendo fundamentais para a saúde pública. As campanhas de vacinação evitam de quatro a cinco milhões de mortes por ano. No entanto muitos países ainda não têm acesso a vacinas contra sarampo, meningite e coqueluche. Isso significa que cerca de 1,5 milhão de pessoas por ano ainda morrem em decorrência de doenças infecciosas evitáveis.
“A desigualdade na distribuição de vacinas entre os países ricos e pobres é enorme e, talvez, com mais diversidade de plataformas de fabricação, seria possível disponibilizar vacinas para mais pessoas de forma mais rápida”, indica Tregoning.