É seguro combinar vacinas de fabricantes diferentes contra a covid-19? Especialistas avaliam

Embora essa medida ainda não esteja autorizada, estudos sugerem que algumas combinações de doses de reforço não apenas são seguras, mas oferecem maior proteção.

Por Meryl Davids Landau
Publicado 22 de out. de 2021, 07:45 BRT
Sinovac

Profissional de saúde administra uma dose da vacina Sinovac na cidade de Guayaquil, no Equador, em 19 de agosto de 2021. Com 32% da população imunizada, o Equador está focado em aplicar doses de reforço.

Foto de Mariana Miller, Agencia Press South, Getty Images

É seguro tomar as primeiras doses da vacina contra covid-19 de um fabricante e tomar a dose de reforço de outro? A questão intrigou os profissionais de saúde desde antes da aplicação da primeira dose — e essa questão vai além do espectro acadêmico. Permitir a combinação de vacinas de fabricantes diferentes contra a covid-19 pode melhorar significativamente a distribuição da vacina e até oferecer benefícios clínicos.

Um comitê consultivo da Agência de Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês) analisa dados de um estudo recente conduzido pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês) que busca responder a essa pergunta e os resultados preliminares sugerem que a resposta pode ser positiva.

Se a FDA aprovar a combinação de vacinas de diferentes marcas, a decisão pode ajudar na vacinação em todo o país, diz Pedro Piedra, professor de virologia molecular, microbiologia e pediatria da Faculdade de Medicina Baylor, em Houston. “A qualquer momento, uma empresa farmacêutica pode ter um problema de fabricação, seja por algum tipo de contaminação ou falta de reagentes. Por isso é útil ter mais opções”, explica Piedra.

A medida também favoreceria médicos e farmacêuticos, afirma Robert M. Jacobson, diretor médico do programa de imunização de cuidados primários da Clínica Mayo. “Os profissionais da saúde que aplicam a vacina poderiam trabalhar com apenas uma marca e aplicá-la em todos os pacientes em vez de serem obrigados a recusar alguns pacientes”, diz ele. Isso reduziria o desperdício, porque mais pessoas poderiam tomar a vacina de qualquer frasco aberto, observa Jacobson.

O apoio científico para a mistura de vacinas seria um grande benefício, especialmente para países de baixa renda, muitos dos quais não têm estoques nacionais de vacina. Eles poderiam utilizar qualquer vacina que recebessem de grupos beneficentes ou de doações pontuais. Isso é ainda mais importante pelo fato de apenas 2,5% das populações nesses países terem recebido a primeira dose da vacina.

Dados mais amplos de combinações de vacinas na Inglaterra 

Pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, conduziram algumas das primeiras pesquisas sobre a mistura de vacinas contra covid-19 em estudos realizados no final de 2020, antes mesmo que as vacinas fossem autorizadas no país. O estudo é conhecido como Com-COV (Comparando combinações de esquema vacinais contra covid-19), a equipe inicialmente procurou misturar e combinar as vacinas produzidas pela AstraZeneca-Oxford e Pfizer-BioNTech.

“Inicialmente os esforços se concentravam no lançamento da vacina contra covid-19: os profissionais se preocupavam com possíveis problemas com a distribuição de vacinas, possíveis problemas de segurança ou com os procedimentos a serem executados caso um paciente chegasse ao posto de vacinação e não soubesse qual vacina havia tomado como primeira dose”, diz Matthew Snape, vacinologista da Universidade de Oxford e investigador-chefe dos estudos Com-COV.

Mas rapidamente houve o interesse em entender se esse procedimento de vacinação, conhecido na medicina como vacinação heteróloga, poderia oferecer vantagens imunológicas. Quando os pesquisadores aplicaram duas doses das vacinas AstraZeneca ou Pfizer-BioNTech em 830 pacientes, com quatro semanas de intervalo entre as doses, ou doses com a combinação das duas fabricantes, todos os pacientes apresentaram uma resposta imunológica que indicava uma taxa satisfatória de proteção contra o vírus.

A resposta mais eficaz ocorreu entre os pacientes que tomaram a primeira dose da AstraZeneca e a segunda dose da Pfizer. Os níveis de anticorpos (que indicam a capacidade do corpo de lutar contra o coronavírus) e de células T (responsáveis por limitar a propagação interna da doença) obtiveram maior desempenho com essa combinação. Ainda não se sabe qual dessas duas reações imunológicas é a mais importante, afirma Snape. Os pesquisadores também ainda estão investigando se essa vantagem imunológica permanece meses após a aplicação das doses combinadas; novas amostras de sangue colhidas seis meses após as doses iniciais estão sendo estudadas, afirma o especialista em vacinas.

A combinação de vacinas aplicadas para essa pesquisa causou maior número de reações adversas, mas todos os efeitos colaterais relatados não passaram de dor de cabeça, febre e calafrios — sintomas que passavam em poucos dias. Nenhuma combinação levantou preocupações em relação à segurança do procedimento.

“Esses resultados geraram muitas discussões”, diz Waleed Javaid, epidemiologista e diretor de prevenção e controle de infecções no Mount Sinai Downtown, na cidade de Nova York. Mas sem dados de longo prazo, ainda não se pode confirmar a eficácia da combinação de vacinas, acrescenta Javaid.

A vacina da AstraZeneca não é autorizada nos Estados Unidos, mas muitos especialistas a comparam com a vacina da Johnson & Johnson, porque ambas são baseadas em vetores virais. Nessas duas vacinas, um adenovírus, como os que causam o resfriado comum, entrega um pequeno pedaço do código genético do vírus SARS-CoV-2 ao organismo, desencadeando uma resposta imunológica.

No entanto, a vacina da AstraZeneca é produzida com adenovírus de chimpanzés, enquanto a da Johnson & Johnson utiliza adenovírus humano. Isso faz com que as duas vacinas sejam diferentes o suficiente para que não se possa aplicar os resultados do estudo uma à outra, explica Dan Barouch, diretor do Centro de Virologia e Pesquisa de Vacinas do Beth Israel Deaconess Medical Center de Boston.

“Os esquemas de vacinação heteróloga podem oferecer vantagens, pois cada vacina tem características diferentes. Mas cada combinação deve ser estudada separadamente para garantir a segurança e imunogenicidade”, diz Barouch.

Nos últimos meses, a Oxford começou a estudar combinações com as vacinas da Moderna e Novavax, outros tipos de vacina não autorizadas nos Estados Unidos. A expectativa é apresentar os resultados das combinações dessas quatro vacinas ainda em outubro, anuncia Snape.

O que o NIH descobriu sobre a combinação de vacinas

O NIH embarcou em sua própria pesquisa sobre a combinação de vacinas em junho, e os resultados preliminares provisórios foram publicados na última quarta-feira. Eles estão agora sob revisão pelo Comitê Consultivo de Vacinas e Produtos Biológicos Relacionados da FDA.

Os cientistas recrutaram cerca de 450 pacientes que completaram o esquema vacinal com as vacinas autorizadas nos Estados Unidos. Pelo menos três meses depois, essas pessoas receberam uma dose de reforço, tanto com a mesma vacina aplicada nas primeiras doses como com vacinas de outra fabricante. Quando a equipe do NIH analisou os níveis de anticorpos presentes em amostras de sangue dos participantes do estudo 15 dias após a dose de reforço, a combinação demonstrou aumentar os efeitos da vacinação, principalmente para aqueles que haviam tomado a dose inicial da vacina da Johnson & Johnson.

As cerca de 50 pessoas que tomaram a dose de reforço da Moderna tiveram um aumento em seus níveis de anticorpos de 76 vezes em comparação com um aumento de apenas 4 vezes nas pessoas que receberam outra dose da Johnson & Johnson. Já a dose de reforço da Pfizer aumentou a taxa de anticorpos dos participantes em 35 vezes.

A mudança de uma vacina de tipo RNAm para outra foi menos extrema. Os pacientes que tomaram as doses da Pfizer e Moderna obtiveram um aumento de 32 da resposta imunológica, enquanto os que tomaram duas doses da Pfizer tiveram um aumento de apenas 20 vezes. Pacientes que tomaram a primeira dose da Moderna e a segunda dose da Pfizer apresentaram resultados muito semelhantes aos que tomaram as duas doses da Moderna. Nenhum paciente que tomou vacinas de RNAm obtiveram um aumento maior com a dose de reforço da Johnson & Johnson.

Se os resultados desse estudo, junto com outros em andamento em todo o mundo, continuarem apresentando benefícios, o Comitê Consultivo sobre Práticas de Imunização (ACIP, na sigla em inglês) dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, na sigla em inglês) pode, em última instância, aprovar um protocolo de combinação de vacinas. Mas isso ainda não ocorreu.

O único protocolo de combinação autorizado nos Estados Unidos é para pessoas imunocomprometidas que recebem a terceira dose de alguma vacina de RNAm para aumentar sua resposta imunológica insuficiente às duas primeiras doses. O CDC recomenda o uso da mesma marca, mas se não estiver disponível, diz que pode ser utilizada uma vacina de RNAm de outra marca.

Por que apenas algumas vacinas são intercambiáveis?

Historicamente, a combinação de doses de vacinas de diferentes fabricantes raramente foi autorizada para outras doenças, aponta Jacobson. Isso se deve ao tipo de financiamento da pesquisa de vacinas no país, diz ele. Antes de qualquer produto ser autorizado, seu fabricante deve pagar grandes quantias para conduzir estudos suficientemente amplos para provar que sua vacina é segura e eficaz. Eles também devem convencer o FDA de que são capazes de fabricar cada dose seguindo exatamente as mesmas especificações que foram utilizadas em seus ensaios clínicos.

“Um fabricante não vai querer investir para analisar se seu produto pode ser utilizado em combinação com outras marcas. Não há nenhum benefício financeiro para eles”, diz Jacobson.

Cientistas independentes ocasionalmente realizam essa pesquisa por conta própria e apresentam os dados ao ACIP. Foi com base em dados de pesquisas independentes, por exemplo, que o comitê aceitou que crianças menores de nove anos pudessem tomar duas doses da vacina contra a gripe de diferentes fabricantes entre várias opções disponíveis no mercado, diz Jacobson. Da mesma forma, pacientes podem alternar a marca de vacinas contra hepatite A ou hepatite B.

“Décadas de pesquisa mostraram que, em geral, se os antígenos são gerados por uma vacina que utiliza um processo semelhante de fabricação, é possível misturar e combinar. Mas existem algumas exceções”, diz Jacobson. Por exemplo, a mistura entre fabricantes de meningococos B não é permitida. “Se o fornecedor não pode obter a dose de reforço da mesma marca que da primeira dose, é necessário recomeçar o esquema vacinal”, diz ele.

Alguns países já deliberaram que alguns grupos de pacientes podem receber a segunda dose da vacina contra covid-19 de um fabricante diferente. Quando um raro distúrbio de coagulação do sangue apareceu em um pequeno número de pacientes mais jovens que receberam a vacina da AstraZeneca, alguns governos cogitaram não exigir que os pacientes que haviam tomado a primeira continuassem o esquema vacinal da AstraZeneca.

“Isso é exatamente o que prevíamos ao trabalharmos na geração de dados”, diz Snape sobre os estudos do Com-COV. No Canadá é permitido que as pessoas que receberam a primeira dose de AstraZeneca terminem o esquema vacinal com uma vacina de RNAm, se preferirem.

Você deve tentar tomar uma dose de combinação de vacinas?

Com o sistema de saúde fragmentado nos Estados Unidos, é possível que algumas pessoas tenham recebido uma segunda ou terceira dose de uma vacina diferente por meios não oficiais. Muitas pessoas fizeram isso nos Estados Unidos, talvez influenciadas por dados que revelaram maior eficácia de outras vacinas ou impacientes, pois os reforços das vacinas Moderna e Johnson & Johnson ainda não foram aprovados.

Embora os resultados preliminares do NIH indiquem o aumento das taxas de imunidade, o número de participantes do estudo foi insuficiente. E embora nenhum evento adverso sério tenha ocorrido, reações incomuns seriam descobertas apenas quando milhares de pessoas recebessem as doses combinadas, diz Piedra. Também resta saber se as mudanças no sistema imunológico observadas 15 dias após a vacina representam proteção contra a doença efetivamente.

Além disso, se você escolher sua própria dose de reforço não autorizada, o que poderá fazer caso pesquisas posteriores comprovem que uma combinação diferente é melhor? É por isso que os especialistas dizem que é uma má ideia tornar-se seu próprio comitê consultivo de vacinas e tomar uma decisão fora de hora. “A decisão de misturar vacinas de fabricantes diferentes”, diz Javaid, “deve ser feita de maneira segura e científica, e não aleatoriamente.”

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