Conheça os fatos sobre linhagens de células fetais e vacinas contra a covid-19

À medida que mais pessoas solicitam isenções aos decretos de vacinação por motivos religiosos, especialistas explicam como e por que as células fetais são utilizadas no desenvolvimento de medicamentos, desde vacinas a analgésicos comuns.

Por Priyanka Runwal
Publicado 29 de nov. de 2021, 11:43 BRT
Diversos grupos de células 293 de rim embrionário humano em cultura. Essas células são uma ferramenta ...

Diversos grupos de células 293 de rim embrionário humano em cultura. Essas células são uma ferramenta padrão na pesquisa biomédica e no desenvolvimento de medicamentos.

Image by GerMan101, Getty

Em meio aos decretos federais de vacinação nos Estados Unidos, surgiu um debate envolvendo bombeiros, policiais e outros trabalhadores que solicitaram isenções religiosas para não tomarem as vacinas contra a covid-19. O número de doses aplicadas deve aumentar à medida que o prazo de vacinação de 4 de janeiro se aproxima para grandes empresas privadas e algumas unidades de saúde. Uma justificativa frequente que as pessoas alegam em pedidos de isenções religiosas é a relação entre as vacinas e as células fetais humanas.

Realmente células fetais foram utilizadas em testes ou no desenvolvimento e produção de vacinas contra a covid-19. As células são cultivadas em laboratório, derivadas de alguns abortos eletivos realizados há mais de três décadas. Essas mesmas linhagens celulares também são utilizadas para testar e aumentar nossa compreensão sobre diversos medicamentos de uso comum, incluindo Tylenolibuprofenoaspirina, que continuam sendo testados em pesquisas para o tratamento de doenças, como o Alzheimer e a hipertensão.

“Muitas pessoas não percebem a importância das linhagens de células fetais para o desenvolvimento de medicamentos e vacinas que salvam vidas e que são amplamente utilizados”, explica Amesh Adalja, especialista em doenças infecciosas no Centro Johns Hopkins para Segurança da Saúde. “O uso dessas células no desenvolvimento de vacinas contra a covid-19 não é diferente ou especial.”

A comunidade científica está repassando recomendações para alguns líderes religiosos. Em uma declaração de dezembro de 2020, a Conferência de Bispos Católicos dos Estados Unidos se referiu a essas linhagens celulares como moralmente comprometidas por sua relação, embora remota, com abortos. Contudo, reiteraram a mensagem do Vaticano justificando o uso de vacinas, na falta de alternativas, como um ato de caridade e responsabilidade moral em situações de alto risco para a saúde, como a pandemia da covid-19.

Embora não esteja claro quantas isenções religiosas para as vacinas contra a covid-19 foram concedidas até agora, os solicitantes devem comprovar “sinceridade religiosa” e, em alguns casos, atestar que também evitarão os medicamentos de uso comum desenvolvidos com células fetais.

No entanto os médicos temem que as objeções de algumas pessoas possam resultar, em parte, na incompreensão da ciência. Richard Zimmerman, especialista em medicina familiar da Faculdade de Medicina da Universidade de Pittsburgh e médico em meio período no East Liberty Family Health Care Center em Pittsburgh, nos Estados Unidos, afirma que alguns de seus pacientes expressaram ceticismo porque acreditam que as vacinas contra a covid-19 contêm células de fetos abortados. Essa afirmação está incorreta.

Saiba como as células fetais são utilizadas no desenvolvimento de medicamentos, de onde elas são provenientes e por que é tão difícil encontrar alternativas.

Por que as células fetais são necessárias para o desenvolvimento de medicamentos

Ao contrário das bactérias, os vírus precisam de um hospedeiro para sobreviver: eles só podem crescer e se reproduzir dentro das células hospedeiras que infectam. Normalmente, as vacinas contêm pequenas doses de versões enfraquecidas ou inativadas de um vírus, ou de partes essenciais dele, para que o organismo do hospedeiro entre em contato com o patógeno sem adoecer, permitindo que o sistema imunológico crie anticorpos e consiga combater o vírus caso seja invadido pelo germe no futuro.

Para produzir vacinas em massa, os fabricantes precisam encontrar uma forma de produzir enormes quantidades dos componentes virais.

Cientistas utilizam ovos fertilizados de galinhas, por exemplo, como hospedeiros para multiplicar os vírus da gripe e produzir as vacinas anuais contra a doença. Todavia, os fabricantes de vacinas preferem cultivar o vírus em células de mamíferos, principalmente porque ajudam a prevenir a mutação do vírus e aumentam a produção. 

No início, os cientistas utilizavam células animais. Posteriormente, porém, perceberam que essas células podem abrigar outros vírus animais indesejáveis, que contaminariam a vacina. Uma versão inicial da vacina contra a poliomielite amplamente administrada entre 1955 e 1963,por exemplo, foi produzida utilizando células de macacos e, depois, cientistas descobriram que as células estavam contaminadas com um vírus de macaco denominado SV40.

Outro problema era que alguns vírus humanos não cresciam tão bem em células animais não humanas. Dessa forma, os cientistas passaram a utilizar células fetais humanas para cultivar vírus para vacinas.

“Elas eram conhecidas por raramente conter vírus contaminantes”, explica o biólogo celular Leonard Hayflick, da Universidade da Califórnia, em São Francisco, nos Estados Unidos. Ele criou a cepa de célula fetal mais antiga, conhecida como WI-38, a partir de um aborto eletivo na Suécia no início da década de 1960. Hayflick sabia que as células fetais humanas, ao contrário das células humanas adultas, tinham menos probabilidade de conter vírus indesejados.

Ao longo dos anos, porém, os cientistas identificaram outras células animais que poderiam ser seguras para desenvolver vacinas contra certos vírus. As células renais do macaco-verde-africano, por exemplo, têm sido utilizadas para desenvolver diversas vacinas, incluindo algumas contra a poliomielite e a varíola.

Além disso, principalmente com os novos vírus humanos, “há preferência pelo uso de uma linhagem celular humana”, esclarece Alessondra Speidel, cientista de biomateriais no Instituto Karolinska da Suécia, possivelmente porque são susceptíveis de infectar e crescer melhor em células humanas do que animais.

De onde as células fetais são provenientes?

Para criar cepas de células fetais, os cientistas devem isolar milhões de células de pequenos pedaços de tecido coletados de um embrião morto. Cada célula pode dividir-se em duas cerca de 50 vezes. E essas células podem ser congeladas — ou, em alguns casos, imortalizadas — de modo que as células em uso atualmente são de tecidos coletados décadas atrás.

Hayflick, por exemplo, congelou dez milhões de células pulmonares fetais humanas — derivadas de um feto abortado — em cada um dos 700 recipientes de vidro depois que a população de células original duplicou sete vezes. Dado seu potencial para continuar duplicando pelo menos mais 30 vezes, cada recipiente pode render “milhares de quilos de células”, diz ele. “Suficiente para fornecer células WI-38 aos fabricantes mundiais de vacinas por vários anos.” Essas células pulmonares são atualmente utilizadas  para produzir vacinas contra a varicela, rubéola, hepatite A e raiva. Outros cientistas transformaram as células renais e retinais fetais para que se tornassem imortais, ou seja, podem dividir-se por tempo indefinido. A linhagem celular PER.C6, por exemplo, é derivada de células retinais imortalizadas de um feto de 18 semanas abortado em 1985.

A Johnson & Johnson utiliza a PER.C6 para produzir sua vacina contra a covid-19. A empresa usou essas células para cultivar adenovírus — modificados para que não se replicassem ou causassem doenças — que foram então purificados e empregados para distribuir o código genético para a proteína de espícula do Sars-CoV-2. A vacina da J&J não contém nenhuma das células fetais que antes abrigavam os adenovírus, porque foram extraídos e filtrados.

A Pfizer e a Moderna utilizaram outra linhagem celular imortal, células 293 de rim embrionário humano (HEK-293, na sigla em inglês), derivada do rim de um feto abortado na década de 1970. As células foram utilizadas durante o desenvolvimento para confirmar que as instruções genéticas para produzir a proteína de espícula do Sars-CoV-2 funcionavam em células humanas. Foi como um teste de prova de conceito, explica Speidel, e as células fetais não foram usadas para produzir nenhuma dessas vacinas de RNAm.

“A questão é se alguém acredita que é eticamente aceitável desenvolver e utilizar medicamentos, vacinas e tratamentos que salvam vidas e que dependem de uma linhagem celular criada a partir de células humanas de fetos abortados meio século atrás”, declara Frank Graham, especialista em medicina e virologia molecular e professor emérito da Universidade McMaster, no Canadá, que criou a linhagem de células HEK-293.

Mesmo que as futuras vacinas possam, de alguma forma, evitar o uso dessas linhagens de células fetais, é difícil ignorar o papel fundamental que desempenham. O mesmo ocorre com o uso generalizado dessas células no estudo de diversas doenças comuns, como diabetes e hipertensão, e no avanço de seus tratamentos.

E, além da ciência, a mensagem de altruísmo foi a que mais repercutiu entre diversos dos pacientes de Zimmerman hesitantes com relação a vacina. “Ninguém quer transmitir uma doença infecciosa para um ente querido”, afirma ele.

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