Corrida contra o tempo: vencer a Ômicron exige adaptação das vacinas atuais
Cientistas afirmam que atualizar as vacinas disponíveis para a nova variante é uma empreitada simples e que produzirá imunizantes seguros.
Funcionários trabalham na linha de produção da CoronaVac, vacina da Sinovac Biotech contra o Sars-CoV-2 em centro de produção biomédica, em São Paulo, Brasil, em 14 de janeiro de 2021.
Há quase um ano, em 11 de dezembro de 2020, a Agência de Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (“FDA”, na sigla em inglês) autorizou a primeira vacina contra a covid-19 do país. A vacina da Pfizer-BioNTech e as de outras empresas que se seguiram reforçaram nossa imunidade coletiva contra todas as variantes do novo coronavírus que surgiram desde então.
Mas agora cientistas temem que as mutações da Ômicron alterem o vírus de forma tão significativa que as fórmulas das vacinas talvez precisem ser adaptadas.
Tão logo a Ômicron foi descrita no fim de novembro, as empresas se apressaram em declarar que estavam analisando a situação. Além de verificar o desempenho de seus imunizantes atuais em relação à nova variante; a Moderna prometeu “desenvolver em breve uma vacina candidata a dose de reforço específica para a Ômicron”; a Pfizer declarou que teria um imunizante disponível em março de 2022; e a Johnson & Johnson anunciou que “está em busca de uma vacina específica para a variante Ômicron”.
A Novavax, que entrou com pedido de autorização, mas cuja vacina ainda não está disponível nos Estados Unidos, declarou, em comunicado, que sua versão direcionada à Ômicron estará “pronta para começar a ser testada e produzida nas próximas semanas”.
De certa forma, a corrida para reformular as vacinas é impressionante. “Não existem muitas vacinas alteradas com regularidade: o sarampo, a rubéola e a hepatite, por exemplo, não mudaram”, afirma Michael Osterholm, diretor do Centro de Pesquisa e Política de Doenças Infecciosas da Universidade de Minnesota.
Contudo, em comparação com esses patógenos mais estáveis, esse novo coronavírus evolui de forma acelerada. Especialistas que estudam a fundo a disseminação da Ômicron afirmam que as iniciativas das farmacêuticas para adaptar uma vacina a essa variante são justificadas, pois a última variante parece mais bem preparada para se esquivar da imunidade do que as anteriores.
“Meu otimismo em relação à Ômicron diminuiu ao longo da semana passada”, com a chegada de mais dados — embora preliminares — provenientes da África do Sul, afirma Vaughn Cooper, professor de microbiologia e genética molecular da Faculdade de Medicina da Universidade de Pittsburgh. “A taxa de infecção entre indivíduos que já haviam adoecido ou sido vacinados e que contraíram a Ômicron é bastante elevada.”
Reescrevendo o código genético
A capacidade da Ômicron de infectar pessoas que deveriam ter imunidade provavelmente resulta de sua quantidade enorme de mutações — mais de 30 — em sua proteína de espícula, a parte do vírus que facilita a invasão de células humanas.
Mais preocupantes são as inúmeras mutações no que é conhecido como domínio de ligação ao receptor, a região da espícula responsável pela adesão às células humanas, explica Cooper. Os linfócitos B, parte do sistema imune humano, geram três tipos principais de anticorpos, cada um direcionado a um segmento distinto da superfície da proteína de espícula. As variantes anteriores apresentaram mutações em uma ou duas dessas regiões visadas pelos anticorpos, mas a Ômicron tem mutações em todas as três, observa ele.
Outras variantes preocupantes, em especial a Beta, compartilham com a Ômicron algumas das mutações com potencial de se esquivar de anticorpos, mas nenhuma outra tem tantas alterações, ou nas mesmas combinações da Ômicron. “É possível que algumas das mutações atuem em coordenação com outras mutações. Ou talvez a ação delas se anule. Ainda não sabemos”, conta Katelyn Jetelina, professora assistente de epidemiologia do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Texas em Houston e autora do blog popular Your Local Epidemiologist (“Seu epidemiologista local”, em tradução livre).
A principal questão é se as mutações ou alguma combinação delas é capaz de confundir o sistema imune treinado para detectar a proteína de espícula, seja por vacinações anteriores ou por ter contraído a covid-19.
“Alterações expressivas no formato ou estrutura da espícula podem modificar a eficácia com que nossas células imunológicas neutralizam o vírus”, destaca Jill Weatherhead, professora assistente de medicina tropical e doenças infecciosas da Faculdade de Medicina Baylor, nos Estados Unidos. Ela ressalta, entretanto, que ninguém ainda sabe se é isso será confirmado.
Caso sejam necessárias mudanças nos imunizantes, as novas vacinas de RNAm serão mais fáceis de modificar do que a maioria das vacinas existentes contra as demais doenças. O processo deve levar apenas alguns meses, conta Onyema Ogbuagu, especialista em doenças infecciosas da Faculdade de Medicina da Universidade Yale e pesquisador principal dos estudos da vacina da Pfizer contra a covid-19.
O princípio ativo de uma vacina de RNAm é o código genético que fornece instruções para células humanas produzirem a proteína espícula do vírus. O RNAm é desenvolvido em laboratório a partir de quatro componentes químicos denominados nucleotídeos. Para atingir as novas mutações na espícula, basta retirar alguns dos componentes anteriores e substituí-los por novos, explica Ogbuagu.
Alterar a vacina da Johnson & Johnson, em que o código genético é transportado por um vetor de adenovírus, pode ser um pouco mais desafiador. Mas, no fundo, também implica a reformulação de um fragmento do código, afirma Weatherhead.
Em uma vacina com muitas instruções genéticas, essas alterações seriam poucas, razão pela qual são improváveis novos efeitos colaterais em decorrência das vacinas reformuladas, acrescenta Ogbuagu. “Não é algo complexo como criar uma nova vacina do zero. É mais como fazer a bainha em um vestido para encurtá-lo”, ilustra ele.
Lições aprendidas
Os cientistas indicam a gripe comum sazonal como modelo para modificar as vacinas contra a covid-19. Todo mês de fevereiro, a Organização Mundial da Saúde utiliza dados da influenza em circulação no Hemisfério Sul, combinados com estudos de laboratório, para conjecturar quais cepas de gripe dominarão a temporada seguinte.
As fabricantes de vacinas licenciadas precisam apenas comprovar à FDA que as mudanças direcionadas a essas cepas desencadeiam uma quantidade adequada de anticorpos para combatê-las. As empresas podem fazer esses testes em um grupo limitado de pessoas. Não são obrigadas a conduzir amplos estudos clínicos a cada ano, como é exigido para a aprovação de uma nova vacina.
A diretriz atualizada da FDA emitida em fevereiro de 2021 descreve etapas semelhantes para as variantes da covid-19, um processo conhecido na indústria como “plug and play”, devido a sua característica automática. As fabricantes que adaptaram seus imunizantes podem testar a resposta imune em uma quantidade modesta de pessoas — provavelmente centenas, segundo os especialistas. A diretriz recomenda incluir pessoas com diferentes estágios de vacinação contra a covid-19, como indivíduos sem nenhuma vacinação anterior e com todas as doses de reforço recomendadas. Mas não são exigidos testes de vacinas em todas as faixas etárias, como crianças ou idosos.
Caso seja necessária uma alteração contra cepas da covid-19, a FDA precisará ser ainda mais rápida do que nos casos da gripe comum. “Para a gripe comum, há seis meses para desenvolver novas vacinas; já com a pandemia do novo coronavírus, elas são necessárias imediatamente. Mas não será tomado nenhum atalho”, reitera Osterholm.
As empresas terão que seguir seus processos de produção atuais de forma idêntica em relação a qualquer vacina adaptada que apresentarem. É fundamental para garantir sua segurança, observa ele. Nunca houve um grande número de efeitos colaterais inesperados nas vacinas contra a gripe comum desde a vacina contra a gripe suína em 1976, quando dezenas de pessoas desenvolveram a síndrome de Guillain-Barré, um distúrbio neurológico. Osterholm atribui isso às mudanças na forma de produção das vacinas contra a gripe comum e não a mudanças nas cepas.
Para avaliar se a Ômicron exigirá mudanças em nossas vacinas e doses de reforço, cientistas dos Estados Unidos estão analisando o comportamento da variante em outros países, como Israel e o Reino Unido, onde os sistemas de saúde nacionalizados permitem que seja feita uma pronta correlação entre registros de vacinação e casos de covid-19.
“Durante a pandemia, esses países produziram grandes quantidades de dados entre sete e 10 dias”, afirma Osterholm. Informações da África do Sul, onde a variante se propaga amplamente, também revelarão se o percentual de pacientes gravemente enfermos já vacinados infectados pela Ômicron foi maior do que a mesma população infectada pela Delta.
Exames de sangue em pessoas vacinadas também são utilizados para determinar a eficácia em que os anticorpos podem superar a Ômicron. Esses estudos laboratoriais preliminares já demonstraram que três doses da vacina da Pfizer são eficazes contra a nova variante, segundo a empresa. Mas esses “ensaios de neutralização viral” têm valor limitado, observa Osterholm. “Podem demonstrar que há uma redução substancial na neutralização, mas ainda é preciso verificar isso no atendimento clínico”, prossegue ele.
Ainda que se conclua que as vacinas originais são menos eficazes contra a Ômicron, elas ainda podem se revelar potentes o suficiente, sobretudo por estimular os linfócitos T do nosso sistema imune e os linfócitos B produtores de anticorpos. O problema é que sua ação pode não ser tão rápida. “Essa resposta imune celular leva tempo, então mais pessoas podem adoecer durante sua intensificação — as infecções em vacinados”, afirma Cooper.
Ainda assim, tomar uma das vacinas atualmente disponíveis, incluindo todas as doses de reforço recomendadas, “é a melhor solução no momento”, o que aconselho a todos, ressalta Weatherhead.
Futuramente, talvez as fabricantes consigam uma vacina universal eficaz contra todas as variantes que venham a surgir. O conceito é que, em vez de apenas um, a vacina teria como alvo diversos segmentos essenciais do vírus Sars-CoV-2 sujeitos a mutações, explica Cooper.
Essa técnica poderia parecer pouco provável de se concretizar no passado, afirma Cooper. Mas o sucesso da tecnologia de RNAm e a quantidade de conhecimentos científicos obtidos sobre as interações entre vírus e hospedeiro nesta pandemia “reforçou a noção de vacinas universais contra os principais vírus, como o novo coronavírus e a gripe comum, o bastante para que testes clínicos tenham início em alguns anos”.