Covid-19 pode alterar a personalidade? Veja o que a ciência já sabe

Mal de Alzheimer, mal de Parkinson e traumatismo craniano podem causar mudanças comportamentais ao alterar a anatomia do cérebro. Tudo indica que o novo coronavírus também é capaz disso.

Por Sharon Guynup
Publicado 10 de jan. de 2022, 11:27 BRT
Foto em pb de duas pessoas de costa olhando por uma janela em meio a cortinas

O fotojornalista Jalal Shamsazaran documentou a batalha de seu pai contra o mal de Alzheimer. Nesta foto, a mãe de Shamsazaran lembra o marido de que esta é a casa construída por ele há muitos anos. Os neurocientistas notaram que alguns sintomas de pacientes com covid-19 persistente são semelhantes aos de doenças neurodegenerativas, como o mal de Alzheimer.

Foto de Jalal Shamsazaran, NVP Images

No auge do surto de covid-19 que assolou a cidade de Nova York no início de 2020, Lorna Breen, médica de emergência altamente respeitada, suicidou-se. Ela trabalhava como diretora médica no Hospital Presbiteriano Allen, em Manhattan, e era considerada brilhante, cheia de energia e organizada. Ela não tinha histórico de doença mental. Mas isso mudou depois que Breen contraiu o vírus.

A médica de 49 anos apresentou os primeiros sintomas em 18 de março. Depois de 10 dias acometida com a doença, retornou ao trabalho. Sua família ficou alarmada: ela estava confusa, hesitante, quase catatônica, exausta. Havia algo errado. Eles a trouxeram para casa em Charlottesville, e Breen internou-se em uma ala psiquiátrica do Centro Médico da Universidade da Virgínia. Logo após ter alta, em 26 de abril, tirou a própria vida.

“Ela teve covid-19, e acredito que a doença alterou seu cérebro”, declarou sua irmã Jennifer Feist no programa de televisão Today, do canal NBC.

À época, era recente o conhecimento científico de que esse novo coronavírus não atinge apenas os pulmões e o coração – afeta também outros órgãos, incluindo o cérebro. “As pessoas chegavam ao hospital com depressão severa, alucinações ou paranoia — e então eram diagnosticadas com covid-19”, afirma Maura Boldrini, neurocientista e psiquiatra do Centro Médico Irving da Universidade de Colúmbia, em Nova York.

Agora, passados quase dois anos desde o início da pandemia, é evidente que problemas neurológicos resultantes da covid-19 podem persistir ou se intensificar. Após se recuperarem do vírus, uma quantidade alarmante de pacientes permanece com confusão mental, ansiedade, depressão, dificuldade de raciocínio, perda de memória e dificuldade para formar palavras. Nem todos chegaram a ser internados, alguns tiveram apenas infecções leves.

Atualmente, esses problemas neurológicos são um elemento conhecido de uma síndrome mais ampla, conhecida como “covid longa”, que inclui ao menos 203 sintomas em 10 sistemas do organismo humano.

Boldrini observa que alguns sintomas da covid longa são semelhantes aos causados por diversos quadros crônicos que alteram o cérebro e a personalidade, como outras infecções virais, traumatismo craniano e doenças neurodegenerativas como Parkinson, Alzheimer e Huntington. Esses males podem alterar drasticamente como as pessoas experimentam, interpretam e entendem o mundo, desestabilizar emoções e influenciar a visão das pessoas sobre si mesmas ou sua forma de interação com outras.

Embora pouco se saiba sobre os mecanismos responsáveis por muitos desses sintomas, pesquisadores acreditam cada vez mais que inflamações podem exercer um papel importante nisso. No caso da covid-19, uma tempestade de proteínas de citocinas inflamatórias pode desencadear uma resposta imune descontrolada, que pode lesionar ou destruir células cerebrais para sempre.

E com as lesões cerebrais, “podemos não ser mais a mesma pessoa”, afirma Boldrini.

Personalidade, comportamento e cérebro

personalidade humana é o conjunto de características e hábitos profundamente arraigados que influenciam pensamentos, sentimentos e comportamentos. É criada por uma interação complexa entre natureza e aprendizado: traços herdados codificados em nosso DNA são influenciados por nosso ambiente social e modificados durante as primeiras experiências de desenvolvimento.

“O cérebro é, obviamente, muito importante para definir quem somos. Está intrinsecamente ligado ao nosso ego e à nossa identidade”, afirma Ann McKee, neurologista, neuropatologista e chefe do Centro de Encefalopatia Traumática Crônica da Universidade de Boston, que estuda trauma craniano repetitivo. “É um órgão altamente especializado, e cada uma de suas regiões possui funções extraordinariamente específicas.”

Embora a personalidade básica geralmente permaneça constante ao longo da vida adulta, quadros clínicos que interfiram na função cerebral podem induzir mudanças extremas na personalidade — e há cada vez mais evidências de que isso ocorra com algumas pessoas acometidas com a covid-19.

Alguns pacientes desenvolvem comportamentos impulsivos ou irracionais, como Ivan Agerton. No início de 2021, o ex-fuzileiro naval e fotógrafo de documentários de 50 anos de idade desenvolveu psicose após se recuperar de uma infecção por covid-19. Ele ficou paranoico e com complexo de perseguição e estava convencido de que um oficial da SWAT (unidade do esquadrão de armas e táticas especiais dos Estados Unidos) estava acampado do lado de fora de sua casa em Seattle. Ele acabou hospitalizado em uma ala psiquiátrica, por duas vezes.

Para alguns pacientes, essa psicose da covid-19 desaparece sozinha com o tempo. Em junho, Agerton contou que estava totalmente recuperado. Mas não se sabe por quanto tempo esses sintomas induzidos pela covid-19 podem persistir. Um estudo com 395 pessoas internadas com covid-19 verificou que 91% desenvolveram problemas cognitivos, fadiga, depressão, ansiedade, disfunções de sono ou enfrentaram dificuldades com atividades cotidianas seis meses depois de terem alta hospitalar.

Profissionais da saúde e pesquisadores estão em busca de maneiras de tratar esses sintomas duradouros, e o primeiro passo é identificar sua causa.

Reconhecendo alterações no cérebro

Em 1906, o psiquiatra e neuroanatomista Alois Alzheimer detalhou os resultados de uma autópsia cerebral em uma mulher de 55 anos chamada Auguste D. Nos anos anteriores a sua morte, ela perdeu gradualmente a conexão com a realidade, apresentando insônia forte e sendo atormentada por paranoia e desconfianças crescentes sobre sua família. Ela também padecia de uma profunda perda de memória.

Após o exame, Alzheimer observou que o cérebro da mulher encolheu drasticamente. Estava repleto de aglomerados viscosos de placas e depósitos anormais que, quase 80 anos depois, se tornariam a indicação característica do mal de Alzheimer. Esses emaranhados de proteína beta-amiloide haviam se acumulado entre os neurônios do cérebro. Hoje, sabemos que eles impedem os sinais elétricos de alcançar outras regiões do cérebro, músculos e órgãos. Alzheimer também encontrou emaranhados de outra proteína, a tau, que também interrompia a comunicação entre os neurônios.

Conforme os neurônios param de funcionar e morrem, o cérebro encolhe e o comportamento de uma pessoa torna-se mais imprevisível. Com menos neurônios nas regiões do cérebro responsáveis pela aprendizagem e pela memória, essas funções começam a ficar prejudicadas, observa Boldrini. Pessoas com o mal de Alzheimer esquecem onde deixam objetos e ficam desorientadas. Além de poder não reconhecer pessoas conhecidas, ficam facilmente chateadas, confusas, iradas, irritadas ou atacam entes queridos ou cuidadores.

Os danos ao córtex cerebral afetam a linguagem, o raciocínio e o comportamento social; no fim, espalham-se e destroem grande parte do cérebro. Segundo Antonio Terracciano, professor do departamento de geriatria da Universidade Estadual da Flórida, a demência se torna debilitante e a doença acaba se revelando fatal.

descoberta de Alois Alzheimer foi um marco na pesquisa neurológica por associar mudanças comportamentais a mudanças anatômicas do cérebro. Desde as observações originais de Alzheimer, pesquisadores reconheceram que muitas doenças podem desencadear mudanças na personalidade ou transtornos de humor.

O mal de Huntington, doença hereditária que destrói os neurônios em uma região do cérebro denominada gânglios da base, pode fazer com que as pessoas percam as inibições ou se tornem mais impulsivas. É um dos motivos pelos quais a taxa de suicídio entre pessoas com Huntington é até 10 vezes maior que a média nos Estados Unidos.

No caso do mal de Parkinson – provavelmente causado por uma combinação de fatores genéticos e ambientais –, os neurônios que produzem o neurotransmissor dopamina se rompem ou morrem. Sem dopamina suficiente, surgem os tremores característicos da doença e os movimentos ficam lentos.

O mal de Parkinson também reduz os níveis de um neurotransmissor denominado serotonina, que regula o humor, o apetite e o sono. Essas alterações químicas no cérebro podem causar sintomas neurológicos que geralmente se manifestam anos antes do início dos tremores, afirma Jeff Bronstein, que dirige o Curso de Transtornos do Movimento da Faculdade de Medicina David Geffen da Universidade da Califórnia, em Los Angeles.

Alguns sintomas desse mal são ansiedade e dificuldade de concentração e de alternar tarefas. Cerca de metade dos pacientes desenvolve depressão, conta Bronstein. Ele também observou pacientes totalmente apáticos, voltados para si mesmos. Com a fala ou a memória prejudicadas, os pacientes evitam conversar com a família e amigos, tornando-se mais retraídos à medida que a depressão se aprofunda.

Irritabilidade atípica ou alterações de humor também podem indicar doença de Lyme. Essa infecção bacteriana transmitida por picada de carrapato causa inflamação que pode provocar inchaço do cérebro ou de seu revestimento, causando perda de memória em curto prazo, dificuldade de concentração e sintomas como ansiedade e depressão.

Muitos vírus já são conhecidos por causar disfunções no cérebro. Boldrini relata como foram os primeiros dias da epidemia de HIV, antes que estivessem disponíveis medicamentos antivirais que bloqueassem a replicação do patógeno e reduzissem a carga viral.

“Os pacientes de HIV-aids apresentavam paranoia, alucinações, mas também sintomas cognitivos, problemas de memória e de concentração”, observa Boldrini. À medida que a infecção viral se espalha pelo cérebro, as membranas do cérebro e da coluna vertebral incham e o complexo de demência da aids agrava.

Muitas das mudanças comportamentais observadas em pacientes com sintomas persistentes de covid-19 também são semelhantes às de traumatismo craniano sofrido em acidentes de carro, de concussões decorrentes de esportes de contato como futebol americano ou rúgbi, ou do serviço militar em tempos de guerra. Danos aos lobos frontais, localizados atrás da testa, podem prejudicar as funções executivas: organização, planejamento e multitarefa. Memória e consciência própria podem deteriorar e os pacientes podem não perceber essas perdas.

Alguns sobreviventes de traumatismo craniano perdem o controle emocional, conta McKee, da Universidade de Boston, incluindo jovens antes tranquilos. Ela observou mudanças cognitivas em atletas de 17 anos que praticam esportes de contato, e jogar futebol americano antes dos 12 anos aumenta o risco.

A conexão com a covid-19

Algo comum entre esses quadros clínicos é um processo inflamatório prolongado. Ocorre no traumatismo craniano e em doenças neurológicas, como o mal de Alzheimer, que causa perda adicional de células cerebrais e exacerba a formação de placas.

Quando o sistema imune inicia um ataque contra um vírus ou outro invasor, ondas de células inflamatórias circulam pela corrente sanguínea como soldados de infantaria. Com a covid-19 e outras doenças, essas células imunológicas podem atravessar a barreira hematoencefálica normalmente protetora. Se a inflamação sair do controle, o processo pode matar neurônios, ressalta Bronstein.

Kriegstein observa que “a maioria das manifestações neurológicas da infecção por Sars-CoV-2 parece ser resultado de efeitos indiretos provavelmente desencadeados por respostas imunes ou inflamatórias”.

A inflamação também parece interferir no metabolismo cerebral. Os pesquisadores suspeitam que o processo interrompe o fluxo de serotonina e faz com que o corpo produza uma abundância de substâncias tóxicas aos neurônios.

Boldrini foi uma das primeiras a examinar cérebros de humanos e animais de pesquisa mortos em decorrência da covid-19 para verificar o que ocorria em nível celular. Sob o microscópio, Boldrini e sua equipe examinaram amostras de cérebro tingidas com corantes de cores vivas para caracterizar diferentes tipos de células. Foram observadas alterações no hipocampo, região do cérebro inserida profundamente no lobo temporal que desempenha um papel importante na aprendizagem e na memória. Ela e sua equipe contaram cerca de um décimo de neurônios novos normalmente presentes no hipocampo.

“A confusão mental faz muito sentido diante dessa perda de neurônios em decorrência da covid-19”, explica Boldrini. A equipe também identificou lesões na medula, que controla a respiração e os movimentos. Boldrini continuará examinando outras regiões do cérebro em busca de possíveis lesões.

Outros pesquisadores, utilizando dados de imagens cerebrais do Reino Unido, encontraram recentemente evidências de lesões em tecidos, um córtex mais delgado e perda da massa cinzenta em pessoas que testaram positivo para o vírus. Os autores ressaltaram que houve “declínio cognitivo significativamente maior” em pacientes hospitalizados.

Além de causar inflamação, o vírus pode infectar diretamente as células cerebrais. “Foram encontradas evidências de que algumas células dentro do cérebro podem ser infectadas com o Sars-CoV-2; a partir delas, o vírus pode se replicar e infectar outros tipos de células”, afirma Joseph G. Gleeson, neurologista da Universidade da Califórnia, em San Diego, nos EUA.

Outros pesquisadores verificaram que células importantes de sustentação do cérebro denominadas astrócitos eram os principais tipos de células vulneráveis à infecção, segundo Madeline Andrews, pós-doutoranda em neurociência da Universidade da Califórnia, em São Francisco. Essas células em formato de estrela, abundantes no cérebro e na medula espinhal, regulam como os neurônios se comunicam, garantem que a barreira entre o cérebro e o restante do corpo humano permaneça intacta, e muito mais.

“Os astrócitos infectados podem funcionar de forma diferente e podem não conseguir desempenhar suas funções normais na homeostase do cérebro saudável”, conta Andrews.

O vírus que causa a covid-19 também pode reduzir o fluxo sanguíneo aos neurônios ao comprimir vasos capilares — vasos sanguíneos de menor calibre — ou interferir em sua função, o que poderia explicar por que o vírus causa derrames: ele priva o cérebro de oxigênio. “O cérebro é muito delicado, e alterações no fluxo sanguíneo ou na saúde celular podem provocar mudanças permanentes na função cerebral”, afirma Gleeson.

Mas muitas perguntas permanecem, incluindo como evitar que o vírus cause danos cognitivos expressivos. A resposta, segundo Boldrini, é não deixar o sistema imune enfrentá-lo por muito tempo ou de forma muito agressiva.

Diversos tratamentos estão sendo usados para evitar reações exageradas do sistema imune. O remdesivir, tratamento antiviral intravenoso, foi aprovado para pacientes internados; dois novos antivirais orais, o molnupiravir da Merck e o Paxlovid da Pfizer, demonstraram reduzir internações hospitalares e mortes de pacientes com risco de desenvolver o estado grave da doença. Essas medicações impedem a reprodução do vírus, o que pode impedir uma resposta imune excessiva.

Outros medicamentos se destinam especificamente a modular a resposta imune: corticosteroides, inibidores da interleucina-6 e inibidores da janus quinase.

Compreender os efeitos da covid-19 sobre o cérebro pode ter implicações muito mais amplas. Boldrini preservou algumas dezenas de cérebros de pacientes mortos em decorrência do vírus. Ao comparar tecidos de pacientes que apresentaram sintomas neurológicos com aqueles sem esses sintomas, ela espera esclarecer o papel da inflamação em inúmeras doenças neurodegenerativas.

“Por mais devastadora que seja esta doença”, prossegue ela, “talvez nos ajude a entender melhor o funcionamento do cérebro”.

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