Variantes da covid-19 surgirão até que o mundo seja vacinado

A emergência da Ômicron ressalta as consequências da desigualdade na distribuição das vacinas. Segundo especialistas, será necessário mais do que doações para resolver o problema.

Por Amy McKeever
Publicado 6 de jan. de 2022, 14:55 BRT
Foto de empilhadeira carregando caixas de vacinas na traseira de um avião de carga

O governo mexicano doou 150 mil doses da vacina da AstraZeneca contra a covid-19 para a Guatemala. As vacinas chegaram à base da Força Aérea na Cidade da Guatemala em 24 de junho de 2021.

Foto de Johan Ordonez, AFP via Getty Images

Angelique Coetzee ficou intrigada. A médica sul-africana vinha atendendo pacientes com covid-19 que, em sua maioria, apresentavam dor de garganta e febre. Mas, em 18 de novembro, Coetzee examinou um homem de 29 anos que se queixava de fadiga extrema e fortes dores de cabeça — sintomas mais relacionados com insolação do que com a covid-19. Ao fim daquele dia, Coetzee havia atendido sete ou oito casos semelhantes.

“Não fazia sentido para mim”, disse Coetzee, presidente da Associação Médica da África do Sul.

Em uma semana, pesquisadores descobririam que os pacientes haviam sido infectados com uma nova variante do Sars-CoV-2, posteriormente batizada de Ômicron, que possui um grande número de mutações e pode ser transmitida mais rapidamente do que as variantes anteriores. A Ômicron agora é dominante na África do Sul e em muitos outros países, inclusive nos Estados Unidos.

O avanço da Ômicron reacendeu a discussão sobre como garantir que o mundo inteiro tenha acesso a vacinas contra a covid-19. A Organização Mundial da Saúde estabeleceu como meta vacinar 70% da população global até meados de 2022. Embora países ricos, como os Estados Unidos, já tenham imunizado mais de 60% de suas populações, a vacinação em países de baixa renda está atrasada. Na África do Sul, apenas 27% da população completou o esquema vacinal; já em países como Nigéria, Papua Nova Guiné e Sudão, esse número é inferior a 3%.

O problema vai além das restrições de oferta. Segundo especialistas, os países de baixa renda enfrentam enormes desafios de infraestrutura para distribuir doses de maneira rápida e abrangente. Eles explicam que os países ricos têm mais do que apenas uma obrigação moral de ajudar a lidar com a desigualdade do acesso à vacina, porque quando o vírus está em circulação, a possibilidade de surgirem novas mutações é maior.

As mutações são previsíveis por parte dos vírus, sendo que seu único propósito é infectar células e, com isso, se replicar. No corpo de uma única pessoa, o vírus Sars-CoV-2 pode copiar seu próprio genoma milhares de vezes. Os coronavírus possuem as chamadas enzimas de correção, que evitam a introdução de erros em seu código genético, mas ainda assim os erros escapam da atividade dessas enzimas, provocando as mutações.

A maioria dessas mutações são inúteis ou mesmo destrutivas para o próprio vírus, aponta Wendy Barclay, virologista do Imperial College, na Inglaterra. Segundo Barclay, a probabilidade de uma mutação oferecer alguma vantagem ao vírus, como torná-lo mais transmissível ou capaz de superar a imunidade causada pelas vacinas, é de apenas 1 em 100 mil. Porém, conforme um vírus se espalha, a probabilidade para se replicar aumenta.

A melhor maneira de evitar o surgimento de novas variantes é, portanto, interromper a propagação, impedindo o vírus de se replicar. Isso pode ser feito por meio de distanciamento social, uso de máscaras e testes, mas a melhor medida é a vacinação em massa.

“Enquanto a África não for vacinada, nunca conseguiremos dormir em paz”, afirma Coetzee.

Como a vacinação elimina variantes

As vacinas têm duas vantagens principais: elas salvam vidas, evitando que pessoas sejam acometidas por quadros graves da doença, e ajudam a controlar a replicação viral. Infecções em pessoas vacinadas tendem a ser leves, o que significa que uma pessoa infectada não transmite o vírus na mesma proporção e nem pelo mesmo tempo caso não estivesse vacinada. Isso dá ao vírus menos tempo para se replicar dentro do organismo e menos possibilidade de transmissão.

Por isso é necessário equidade na vacinação. Permitir que um vírus, transmissível como o Sars-CoV-2, se propague por partes do mundo onde um grande número de pessoas não foram vacinadas cria um problema real, explica Ingrid Katz, diretora associada do Instituto Global de Saúde de Harvard, nos EUA. “A única maneira de superar esse problema é aplicar todas as medidas disponíveis, e isso inclui vacinar o mundo todo”, diz ela.

Embora seja quase impossível identificar as origens exatas de uma variante viral, sabemos que, na Índia, os baixos níveis de vacinação desempenharam um papel crucial no surgimento e no aumento catastrófico da variante Delta no início de 2021.

No último ano, o país começou a aplicar vacinas apenas em pessoas consideradas do grupo de risco, idosos, pessoas com comorbidades ou frequentemente expostas ao vírus. Até setembro de 2021 não havia previsão para a vacinação do restante da população adulta.

“Tudo isso foi baseado na premissa de que a Índia estava fora da zona de perigo”, disse K. Srinath Reddy, presidente da Fundação de Saúde Pública da Índia. Os casos e mortes diminuíram em meados de janeiro de 2021, e os especialistas previam que a Índia havia alcançado uma imunidade de rebanho suficiente para evitar outra onda. Então, acrescenta Reddy, a Índia retomou o turismo, os comícios eleitorais e os festivais religiosos.

“Foi como se a Índia estivesse ignorando o vírus, mas o vírus não nos ignorou”, diz Reddy.

A variante Delta foi identificada pela primeira vez em março, quando menos de 1% da população de quase 1,4 bilhão de pessoas havia completado o esquema vacinal. Consequentemente, o número de casos e hospitalizações aumentaram, seguidos por altas taxas de mortalidade pela doença.

Infelizmente, a desigualdade na distribuição de vacinas já existia muito antes de qualquer vacina contra a covid-19 ser aprovada. Os países ricos já haviam encomendado bilhões de doses nos primeiros acordos com as empresas farmacêuticas, deixando os países de baixa renda sem acesso às vacinas desde o início.

“Se configurou um sistema de desigualdade desde o início”, diz Katz.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) fez parceria com organizações sem fins lucrativos internacionais para lidar com essas desigualdades por intermédio da Covax, uma iniciativa que visa garantir vacinas para países de baixa renda. Mas as vacinas ainda são destinadas desproporcionalmente para os países ricos, à medida que administram doses de reforço.

Alguns países ampliaram o número de doses disponíveis para doação em nome da igualdade de acesso às vacinas, mas Reddy ressalta que essas doações nem sempre foram bem planejadas. No ano passado, houve diversos casos em que países ricos esperaram para doar os estoques de vacinas até que estivessem próximos à data de vencimento, resultando na perda de milhares de doses doadas. Por exemplo, o Sudão do Sul teve que destruir quase 60 mil doses em abril, e aproximadamente um milhão de doses foram descartadas na Nigéria em novembro.

“Isso não é caridade, é despejo”, lamenta Reddy.

Ainda assim, Amavi argumenta que a Covax fez toda a diferença ao abordar a questão da equidade da vacina contra a covid-19 em comparação com as campanhas de vacinação anteriores. A vacina contra o papilomavírus humano, por exemplo, foi disponibilizada pela primeira vez em 2006, mas muitos países africanos só tiveram acesso a ela nos últimos dois anos.

“Com a Covax, vimos que, em menos de um ano, todas as vacinas contra a covid-19 foram disponibilizadas em todos os países”, salienta Amavi. “Acredito que seja uma grande conquista fazer a ponte entre os países produtores e os países africanos que, no início, estavam sem receber os imunizantes.”

Longa jornada para a distribuição global

Recebido o número suficiente de doses, os países devem planejar a distribuição. Embora os países de baixa renda possam obter descontos, eles acabam gastando mais do que os outros países para implementar a distribuição.

“É um desafio para os países africanos”, esclarece Coetzee. “Não importa quantas doações cheguem até nós.”

De acordo com o Painel Global sobre Equidade da Vacina, os países de baixa renda teriam que aumentar seus gastos com saúde em uma média de quase 57% para vacinar 70% de suas populações. Isso ocorre porque muitos países de baixa renda carecem de infraestrutura — desde a capacidade da rede elétrica até profissionais de saúde capacitados — para administrar as doses a bilhões de pessoas. Distribuir as vacinas de RNAm é particularmente desafiador, pois requer acesso a caminhões refrigerados e armazenamento ultrafrio em instalações de saúde com poucos recursos, mesmo em períodos com melhores condições.

Em contraste, os países de alta renda precisam apenas aumentar os gastos em menos de 1% adicional para vacinar toda a sua população.

Na Índia, com a chegada da variante Delta, o programa de imunização acelerou. Reddy diz que o país tem usado drones para ajudar a distribuir doses em áreas remotas e lançou uma campanha de vacinação em domicílio. O ministro da saúde da Índia relata que 85% de sua população elegível já recebeu a primeira dose e mais da metade já completou o esquema vacinal. No entanto, muitos países de baixa renda simplesmente não têm a capacidade de mobilizar milhares de profissionais de saúde para ir de porta em porta — se é que possuem um número suficiente de profissionais capacitados.

Outro desafio é convencer as pessoas a tomar a vacina. Amavi diz que grande parte da hesitação em todo o mundo em relação à vacina pode ser atribuída a uma infodemia sobre a covid-19, ou a disseminação de desinformação semeada pelo movimento antivacina.

Mas Katz diz que é compreensível que as populações de países de baixa renda sejam céticas quanto a vacina. Ela observa que relatórios anteriores sugeriam que as vacinas da Pfizer e da Moderna eram mais seguras e eficazes do as que estavam disponíveis para países de baixa renda, como a da AstraZeneca e a da Johnson & Johnson.

Embora essa disparidade se deva a problemas relacionados à rede de frio, Katz diz que isso acabou criando uma compreensível hesitação em relação à vacina em países onde as pessoas sentem que ficaram presas às piores vacinas. Para remediar isso, Katz afirma que os especialistas em saúde pública devem fazer o melhor para garantir à população que as vacinas que estão recebendo sejam seguras e eficazes.

O que pode ser feito em relação à desigualdade de distribuição de vacinas?

As soluções para a desigualdade na distribuição das vacinas devem começar com os próprios países. Katz diz que os países ricos podem compartilhar mais doses de vacinas ou até mesmo ceder o próximo carregamento a países de baixa renda. A comunidade internacional também pode fornecer assistência financeira para construção de infraestrutura de saúde — o que também ajudaria durante a próxima pandemia.

Especialistas em saúde pública também solicitaram à Moderna e à Pfizer que ajudassem os países de baixa renda a produzir suas próprias vacinas de RNAm — o que reduziria drasticamente os encargos de aquisição, transporte e distribuição. Katz diz que isso exigiria que as empresas não apenas liberassem seus direitos de propriedade intelectual, mas também compartilhassem tecnologia e matérias-primas.

Ela acrescenta que, embora as vacinas da Pfizer e da Moderna tenham se destacado no início, provando uma eficácia de mais de 90% na prevenção de quadros graves, há novas evidências promissoras para outras vacinas.

A vacina de dose única da Johnson & Johnson, por exemplo, foi apenas 66,3% eficaz em seus ensaios clínicos originais, mas a empresa relatou, no segundo semestre de 2021, que uma segunda dose aumenta a eficácia da vacina contra quadros moderados a graves para 94%. Embora as doses da Johnson & Johnson possam ser menos eficazes contra as variantes mais recentes, Katz argumenta que esses dados mostram que duas doses são quase tão eficazes quanto as vacinas de RNAm.

Barclay também aponta para novos dados do Reino Unido, mostrando que a combinação de vacinas pode aumentar a imunidade. Um estudo publicado no periódico The Lancet descobriu que pessoas que inicialmente receberam duas doses da vacina AstraZeneca possuíam níveis mais elevados de imunidade após receberem uma dose de reforço de uma das seis outras vacinas disponíveis.

“Então nem tudo está perdido”, diz a virologista. Se os países podem progredir com a vacinação recebendo as primeiras vacinas, podem reforçar a imunização com as vacinas de RNAm posteriormente.

Coetzee, por sua vez, defende o desenvolvimento de vacinas em comprimidos que possam ser administrados mais facilmente em países de baixa renda. Mesmo que as vacinas de RNAm pudessem ser amplamente disponibilizadas em países de baixa renda, eles ainda precisariam de caminhões refrigerados para transportá-las e de profissionais de saúde capacitados suficiente para misturá-las, diluí-las, dosá-las em seringas e administrar as doses.

“Todos esses elementos são suscetíveis a problemas”, diz Coetzee. “No caso de um comprimido, não há muito que possa dar errado. É necessário apenas se certificar de que o paciente o engula.”

Em última análise, a maioria dos especialistas concorda que legisladores e eleitores em todos os países precisam entender que a segurança é temporária e apenas estará garantida quando mais pessoas do mundo todo forem vacinadas. Katz exorta as pessoas a fazerem doações, defenderem suas comunidades e solicitarem aos governos que façam mais em relação à igualdade de distribuição das vacinas.

“Quando vamos aprender que devemos colaborar de maneira global?”, questiona. “Não podemos continuar assim.”

Coetzee concorda. Ela sugere que os países mais ricos lancem programas para permitir que seus cidadãos patrocinem vacinas para pessoas em países de baixa renda. Além disso, ela afirma que todos que têm acesso à vacina podem ajudar simplesmente sendo vacinados, tomando a dose de reforço — caso se enquadre entre os elegíveis —, utilizando máscara, praticando o distanciamento social e sempre higienizando as mãos.

“O que estamos fazendo como cidadãos?”, pergunta Coetzee. “Todos temos um papel a desempenhar.”

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