Memória pode ser alterada em ratos. Seriam os humanos os próximos?

Experimentos realizados nos animais podem ajudar a tratar diversos transtornos mentais. Especialistas discutem as promessas e os perigos do estudo.

Por Sarah Gibbens
Publicado 20 de jul. de 2018, 17:32 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Quando os ratos são submetidos a experiências positivas, negativas ou neutras, as proteínas se ligam a uma memória específica, permitindo que os pesquisadores localizem onde no cérebro ela está armazenada.
Foto de Stephanie Grella

Você se lembra como se sentiu a primeira vez que andou de bicicleta? E o seu primeiro beijo – ou primeiro coração partido? Momentos memoráveis e as emoções que despertam ficam na nossa mente por décadas, moldando quem somos como indivíduos.

Mas, para aqueles que passaram por um trauma, as memórias podem ser um tormento. E memórias doloridas podem levar a transtornos mentais.

E se memórias traumáticas não tivessem que causar tanto sofrimento? Enquanto as pesquisas sobre o funcionamento do cérebro evoluem, vários grupos de neurocientistas se aproximam de técnicas capazes de manipular a memória para tratar doenças como o transtorno de estresse pós -traumático (TEPT) ou Alzheimer.

Por enquanto, as experiências estão sendo conduzidas apenas em animais, como ratos. Mas, com o sucesso desses testes iniciais, os cientistas já pensam em testes com humanos, apesar das implicações éticas sobre o que significaria modificar partes fundamentais da identidade de uma pessoa.

Provavelmente seremos capazes de alterar a memória humana em um futuro não tão distante – mas deveríamos fazer isso?

O que é a memória?

Neurocientistas definem a memória como um engrama – uma mudança física no tecido do cérebro associada a uma lembrança em particular. Recentemente, exames cerebrais revelaram que um engrama não está isolado apenas em uma região do cérebro, e, em vez disso, se manifesta como um colorido borrifado pelo tecido nervoso.

Nessas gaiolas, os ratos são submetidos a condições que servem de gatilho para memórias negativas e positivas.
Foto de Joseph Zaki

“Uma memória se parece mais com uma teia do que com um ponto único”, diz o neurocientista e explorador da National Geographic Steve Ramirez, da Universidade de Boston. Isso acontece porque, quando uma memória é criada, isso inclui todos os inputs visuais, de audição e táteis que tornam uma experiência memorável, e células do cérebro são codificadas em todas essas regiões.

Hoje em dia, cientistas conseguem até mesmo rastrear como as memórias se movem pelo cérebro, como detetives atrás de pegadas na neve.

Enquanto trabalhava no MIT, em 2013, Ramirez e seu colega Xu Liu fizeram uma grande descoberta: conseguiram atingir as células que compõem um engrama no cérebro de um rato e, em seguida, implantar uma memória falsa. No experimento, os ratos reagiram com medo a um estímulo específico a que não haviam sido condicionados anteriormente.

Apesar dos cérebros dos ratos não serem tão evoluídos quanto dos humanos, Ramirez diz que eles podem ajudar os neurocientistas a entenderem como funcionam as nossas memórias.

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    A cor verde representa uma proteína fluorescente indicando uma memória “marcada”.
    Foto de Stephanie Grella

    “O cérebro humano é uma Lamborghini e estamos trabalhando com um triciclo, mas as rodas são as mesmas”, ele diz.

    Copiar, colar, deletar

    Em seu trabalho atual, Ramirez e seus colegas investigam se memórias positivas e negativas são armazenadas em diferentes grupos de células do cérebro, e se as memórias negativas podem ser substituídas por positivas.

    Para preparar os ratos para os experimentos, a equipe injeta um vírus no cérebro dos animais que contém proteínas fluorescentes e implantam fibras óticas cirurgicamente. Os ratos recebem então uma dieta que impede a fluorescência do vírus até que os pesquisadores estejam prontos para marcar uma experiência positiva ou negativa.

    Memórias positivas são criadas colocando ratos machos em gaiolas com fêmeas por uma hora, e memórias negativas são criadas colocando os ratos em gaiolas que dão pequenos choques nos pés. Uma vez que os ratos estejam condicionados a associar os gatilhos com cada experiência, eles passam por uma cirurgia onde os cientistas podem estimular as células associadas com os engramas positivos ou negativos.

    Eles estão descobrindo que ativar memórias positivas enquanto um rato está na gaiola que associa a medo, faz com que o rato fique menos medroso. Os pesquisadores acreditam que essa “reeducação” de memória pode ajudar a eliminar os traumas do rato.

    “Usamos uma memória positiva para tentar redesenhar parte da memória,” diz Ramirez. Entretanto, não está claro se as memórias originais de medo são totalmente apagadas ou apenas suprimidas.

    Utilizando-se de luz direcionada ao crânio do rato, a equipe de pesquisa consegue retirar uma memória.
    Foto de Monika Shpokayte

    “Se fosse um documento de Word, não saberíamos se salvamos um documento novo ou se substituímos o original”, diz Stephanie Grella, membro da equipe.

    Usando uma técnica diferente, a neurocientista da Universidade de Toronto Sheena Josselyn conseguiu eliminar completamente memórias de medo nos ratos. Após identificar as células específicas associadas ao engrama, a equipe fez com que as proteínas nessas células ficassem suscetíveis à toxina da difteria, uma doença que os ratos resistem facilmente. Uma vez injetadas com a toxina, essas células morriam, e o rato deixava de sentir medo.

    Do rato ao homem

    Tanto Ramirez quanto Josselyn salientam que seus trabalhos com os ratos servem como um alicerce, e ambos acreditam no potencial para tratamentos em humanos a longo prazo.

    “Memórias traumáticas podem ser reescritas com informações positivas”, diz Ramirez. Aqueles que sofrem de TEPT ou depressão podem ter suas memórias alteradas, de forma que não tenham mais uma resposta emocional às lembranças dolorosas.

    Josselyn espera que a pesquisa feita em ratos possa um dia servir para tratar pessoas que sofrem de transtornos mentais como esquizofrenia e Alzheimer.

    Mas não pense que você entrará numa clínica e pedirá para mudarem suas memórias a hora que você quiser, diz Ramirez.

    Os testes em ratos envolvem técnicas como jogar uma luz azul diretamente no cérebro, o que envolve cortar o crânio do rato e expor tecido nervoso, uma técnica dificilmente utilizada em humanos. Os tratamentos futuros poderiam utilizar infravermelho, um tipo de onda que penetra a pele humana, diz Ramirez, enquanto Josselyn acredita que a ingestão ou injeção de componentes químicos seriam a opção mais viável. Mas ambos dizem que esses tratamentos estão décadas à nossa frente.

    Deveríamos?

    Se um dia for possível alterar a memória humana, quem seria elegível para esse tipo de tratamento? Somente os que puderem pagar por ele? E crianças? E o que seria do sistema judiciário se testemunhas e vítimas não se lembrassem do crime?

    Essas são questões que o bioético Arthur Caplan, da Universidade de Nova York, diz valer a pena se pensar antes mesmo de a tecnologia estar pronta para os humanos. Ele era uma das pessoas a se manifestar sobre a ética do CRISPR, uma ferramenta de edição de genes que pode modificar embriões humanos e potencialmente alterar gerações inteiras.

    “Acredito fortemente que a hora de se pensar nas questões éticas é bem anterior ao momento que as tecnologias estejam prontas”, ele diz.

    Em relação à manipulação de memórias, Caplan diz que cientistas e legisladores precisam pensar sobre as qualificações mínimas que permitiriam uma pessoa a receber esse tipo de tratamento. Não deveria ser para todo mundo, ele diz, talvez apenas para aqueles sofrendo de TEPT severo e quando todos os outros tratamentos já tiverem falhado.

    Se os militares puderem usar esse tratamento em veteranos de guerra que sofrem de TEPT, eles poderiam ter permissão para alterar as memórias daqueles que ainda retornarão para a guerra?

    “Eles deveriam saber se fizeram coisas horríveis? Isso os impediria de cometer atos horríveis de novo? Ou você quer correr o risco de ter pessoas fazendo coisas terríveis, para depois apenas apaga-las?”, supõe ele.

    Enquanto os neurocientistas avançam com as pesquisas, eles dizem que os dilemas éticos estão sendo levados em consideração.

    “A ideia de manipular memórias pode e deve ser usada em um contexto clínico”, diz Ramirez. Ele não vê a possibilidade nem como boa nem como ruim. É como água, vai depender de como você irá usar.

    “Algo tão fundamental pode ser usado tanto para nutrir seu corpo, ou pode ser usado para técnicas de tortura. Se a água pode ser usada para o bem e para o mal, qualquer outra coisa também pode”, ele diz.

    “Não sou 100% contra”, Caplan acrescenta. “Mas deve-se ter muito cuidado.”

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