Coleta da castanha resiste em integração ancestral com a floresta amazônica

No sul do Amapá, o trabalho extrativista da coleta da castanha-do-brasil enfrenta as mudanças climáticas e conhece novas negociações com o mercado.

Por Débora Pinto
fotos de Maurício de Paiva
Publicado 17 de out. de 2019, 16:03 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
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Um castanheiro deposita no solo da floresta os ouriços coletados para que sejam quebrados depois ali mesmo. Esses movimentos, geralmente realizados desde a infância pelos trabalhadores, são repetidos dezenas de vezes por dia.
Foto de Maurício de Paiva
Para chegar aos castanhais das suas comunidades, estes coletores do Amapá precisam enfrentar as pedras e corredeiras do Rio Iratapuru. Essa jornada, que dura pelo menos três dias, não seria possível sem um acentuado senso de colaboração.
Foto de Maurício de Paiva

“E castanheiro lá perde para onça, rapaz?”

No barraco de madeira às margens do Rio Iratapuru, no sul do Amapá, um grupo de cerca de 20 pessoas – a maioria homens, quatro mulheres e um bebê de 11 meses – tem suas redes de dormir embaladas por histórias de caça em meio à escuridão da noite amazônica. O retumbar das águas da Cachoeira Panelas, logo adiante, mistura-se às vozes masculinas que se fundem na descrição de encontros – reais ou imaginários – com o grande felino. A conversa em pouco tempo torna-se uma barafunda de falas e risos.

Aos poucos, o silêncio é instaurado – todos são vencidos pela exaustão física provocada pela subida do rio, iniciada na mesma manhã na vila de São Francisco do Iratapuru. Na manhã seguinte, vai ter início uma longa jornada em canoas e batelões para se chegar ao Igarapé Amazonas, em que todos passarão até três meses trabalhando na coleta da castanha-do-brasil.

Um acampamento completo, até mesmo com televisão movida a gerador, é montado para até três meses de permanência na floresta, no período da coleta. Alguns barracos de madeira, onde eles comem e repousam em redes, ficam montados de um ano para outro.
Foto de Maurício de Paiva
Fundada por dez famílias, em 1991, a vila de São Francisco deu lugar à barragem da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio do Iratapuru. A empresa de energia reorganizou a comunidade num ponto a 500 metros dali. A vila atual tem cerca de 300 moradores, casas amplas de alvenaria, posto de saúde, campo de futebol e igreja.
Foto de Diogo Moreira

Na alvorada, Osenira Pereira da Silva, de 48 anos, e Josielma Vieira dos Santos, de 30, assumem os seus lugares junto a dois fogareiros para esquentar a água do café. No fim da tarde anterior, enquanto os homens deslizavam as cinco embarcações cachoeira acima, foram elas que também organizaram a área da cozinha no barraco e prepararam o arroz e as carnes de paca e de charque ensopadas. Dois homens experientes, o pai de Josielma e o marido de Osenira lideram a viagem rio abaixo: Josué dos Santos, o “seu” Antônio, de 58 anos, e Orlandelay Miranda Flexa, de 56, respectivamente. “A gente só consegue ir aos castanhais entre março e abril, no ‘inverno’, quando chove e o rio fica mais alto”, explica o seu Antônio. Esse é o período em que os ouriços de até 2 quilos param de cair das castanheiras de 60 metros. “Eles causariam sérios ferimentos se atingissem as pessoas no solo.”

Mesmo com o aumento no nível das águas, o percurso é uma saga, sobretudo em áreas em que a incidência de pedras é maior. As mais de 20 corredeiras do percurso, às vezes, exigem que os castanheiros se lancem rio adentro para usar a força dos próprios braços contra o fluxo d’água. Em cada canoa ou batelão, um proeiro experiente aponta as direções a seguir nos botes e onde se amontoam adultos, crianças, bebês, cães e toda sorte de objetos – de roupas a espingardas, de placas solares a televisores. A viagem até o Igarapé Amazonas é só o início do ciclo, que será intenso durante os meses na floresta. Essa jornada, contudo, já evidencia algumas habilidades essenciais para a atividade extrativista da coleta da castanha-do-brasil na região do Iratapuru: conviver, navegar, caçar, dentre tantas outras que ali são passadas de geração em geração.

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    As condições para o florescimento das castanheiras aparecem em boa parte da Bacia Amazônica. O Amapá é hoje o sexto maior produtor de castanha-do-brasil, principal produto não madeireiro da Amazônia. Amazonas, Acre e Pará representam 93% da safra brasileira. O Brasil é o segundo maior produtor, com 31% da produção mundial, e safra anual média de 35 mil toneladas.
    Nos quebradores, ouriços de castanha são apoiados sobre pedras e rompidos com pequenos machados. Ao ritmo das batidas dos machados, os castanheiros contam histórias ou, juntos, silenciam de forma contemplativa, imersos na floresta.
    Foto de Maurício de Paiva

    Um hectolitro equivale a cinco latas de 18 litros de castanha já extraída dos ouriços. Na prática, podem ser cinco latas e meia. Já seis latas formam uma “barrica”. A medida depende de com quem, e em que contexto, se negocia. No cotidiano dos castanheiros do Iratapuru, o conceito de quilo não é dos mais caros. Já as medidas flutuantes são parte de uma economia que adere a afetos e solicita escolhas que vão muito além da simples obtenção de recurso financeiro. “A coleta da castanha movimenta a vida de toda a comunidade. O preparo para a jornada, a reunião com os companheiros e tudo aquilo que se vive nos castanhais são, na verdade, expressões da cultura, da potência e de uma profunda capacidade de adaptação desses ribeirinhos”, explica Magda Ribeiro, antropóloga e professora da  Universidade Federal de Minas Gerais, que realizou sua pesquisa de doutorado sobre as práticas econômicas de São Francisco do Iratapuru.

    De acordo com as observações dela, as relações locais nem sempre se valem de regras gerais preestabelecidas. Um hectolitro de cinco latas e meia pode ser interessante a depender do valor oferecido, das necessidades postas por vendedor e comprador – o atravessador – ou pela urgência em se receber certa quantia em troca da castanha. Como o afeto pelo outro é sempre um aspecto a ser considerado, “busca-se efetivamente realizar as transações com o intuito final de que as partes sintam que estão de acordo, o que solicita flexibilidade e abertura”, completa Magda. A astúcia nos negócios dos ribeirinhos do Iratapuru é um importante eixo na resistência desse povo tradicional amazônico. 

    Macacos são caças comuns na área do Igarapé Amazonas, ponto de extração da castanha.
    Foto de Maurício de Paiva
    Veados também fazem parte do cardápio dos extrativistas no Igarapé Amazônia.
    Foto de Maurício de Paiva

    Na vila de São Francisco, a Cooperativa Mista dos Produtores e Extrativistas do Rio Iratapuru (Comaru) é referência mais estável para a venda do produto, que é beneficiado em uma pequena fábrica e, após ser transformado em óleo, comercializado para a empresa Natura Cosméticos.  A comunidade foi a primeira na Amazônia a realizar essa parceria. “Nós oferecemos um adiantamento para os custos da permanência nos castanhais e os cooperados se comprometem a nos entregar uma certa quantidade de castanha, a um preço determinado”, explica Aldemir Pereira da Cunha, presidente da Comaru. Nem todos os trabalhadores dos castanhais são cooperados e alguns são moradores das outras quatro vilas da região. De todo modo, é prática comum a realização do chamado “reco”, que é a extração de castanhas para além do oferecido à cooperativa para venda direta – um modo de obter renda extra. Os atravessadores podem ser encontrados tanto na própria comunidade quanto em Monte Dourado, na margem paraense do Rio Jari, na divisa com a cidade amapaense de Laranjal do Jari.

    O Brasil é hoje o segundo maior produtor mundial, tendo perdido o seu posto de liderança em 2015 para a Bolívia. Em 2017, os extrativistas viram o produto escassear até 70% em algumas regiões, o que provocou alta recorde nos preços. A média geral de produção brasileira, que varia de 20 mil a 40 mil toneladas desde o início dos anos 2000, chegou, em 2017, ao ponto máximo de 10 mil toneladas, conforme os dados oficiais. 

    Os castanheiros do Iratapuru são reconhecidos por sua capacidade de fazer embarcações com toras da floresta. As canoas são utilizadas durante a coleta e também estão destinadas ao momento mais desafiador de todo o ciclo: descer o rio, com toda a produção de meses de trabalho.
    Foto de Maurício de Paiva
    A farinha de mandioca, que homens e mulheres produzem nas comunidades, é acompanhamento da caça que alimenta os extrativistas durante o período de coleta.
    Foto de Maurício de Paiva

    Segundo pesquisadores da rede Kamukaia, que realiza o monitoramento de castanheiras em diferentes áreas da Amazônia, a mudança no regime de chuvas é a principal causa da brusca alteração. Outras hipóteses foram levantadas, como o desmatamento e a diminuição de polinizadores, mas não contaram com comprovações empíricas. Já as variações do fenômeno La Niña provocaram o atraso das chuvas e a extrema seca em 2015, justamente o momento em que os frutos da safra de 2017 iniciavam o seu amadurecimento. “Nenhum outro fator poderia atingir essa escala”, aponta Lúcia Wadt, pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). “Macapá registrou, em 2015, mais de 100 dias sem incidência de chuvas, indício do contexto que, acreditamos, alterou diretamente o florescimento das castanheiras na região”, completa Marcelino Guedes, professor nos programas em Biodiversidade Tropical e Ciências Ambientais na Universidade Federal do Amapá. 

    Em conversas na mata, os castanheiros falam da mudança climática e suas consequências, assim como do preço recorde de 750 reais a barrica, uma alta de quase 300% em relação à média. Mas, para eles, não faria sentido, por exemplo, retirar menos castanhas para a manutenção de um valor mais elevado, como forma de manter algum controle sobre os preços, em uma lógica coordenada de oligopólio. “A gente sabe que, pelo trabalho que dá, o que ganhamos não é lá muito justo. Mas, quando entramos na mata, é para extrair o máximo possível de castanha. Esse é o nosso trabalho, sempre respeitando a floresta. Para nós, estar aqui é uma escolha”, diz o castanheiro Raimundo Pereira, o Raimundinho.

    As castanhas são extraídas dos ouriços com machados.
    Foto de Maurício de Paiva
    Já extraídas dos ouriços, as castanhas são expostas para secagem em um armazém da vila de São Francisco. Nas comunidades da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Iratapuru, a extração da castanha é um trabalho central na vida das famílias.
    Foto de Maurício de Paiva

    Baliza, Volta Grande, Limão, Chico Lúcio, Abacate, Santa Rita, Beija-Flor. As “colocações”, trechos demarcados para a realização do trabalho de extração da castanha, são observadas no fluxo do rio até a chegada ao Igarapé Amazonas, que fica dentro da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Iratapuru. O extrativismo é permitido nos limites da área, assim como a caça para a subsistência e a derrubada de um número pequeno de árvores para a produção das canoas que serão utilizadas pelo grupo, tanto no dia a dia da coleta quanto no escoamento da produção no final da safra. O percurso da entrada do Igarapé Amazonas até seus castanhais mais distantes pode chegar a quatro dias.

    O critério de antiguidade é respeitado, e as colocações passam de pai para filho. Quem herda uma área pode tanto reunir um grupo e trabalhar nela quanto permitir o uso por outros grupos, a partir do pagamento de uma quantia em dinheiro. Trilhas, aqui chamadas de “piques”, fazem as divisas desses territórios e são facilmente reconhecidas pelos castanheiros. Quando chegam à colocação em que irão trabalhar, os grupos montam os barracos, estruturas de toras de madeira e lona onde são penduradas as suas redes e preparadas as refeições diárias. 

    Na colocação Cabo Velho, está reunida uma equipe formada apenas por homens. Rubelino Monteiro Ribeiro, o Quebra-Gelo, é o mais velho. Figura de aparência frágil e voz mansa, ele se responsabiliza pela comida – arroz e carnes de jacaré, mutum, veado e paca preparados sobre a pequena fogueira. A rotina se inicia por volta das 7 da manhã, sempre com café açucarado e bolachas e, às vezes, uma dose de chimbereba, um preparado de leite de castanha com cupuaçu. A saída para o castanhal é feita em canoas. A equipe da Cabo Velho desembarca no início de um pique e caminha mata adentro até encontrar um “quebrador”, um ponto na mata reconhecido pelo acúmulo de ouriços de castanha já rompidos. A maioria dos quebradores repete a localização de anos anteriores, mas é possível estabelecer novos a partir da observação das castanheiras e dos ouriços no solo. De repente, quando todos começam a organizar os seus equipamentos, Quebra-Gelo desaparece. Retorna, tempos depois, dando notícia dos piques mais transitáveis e dos melhores caminhos a seguir. Ele é conhecido pela incrível capacidade de localização, resultado de uma mistura de intuição, respeito à floresta e treino mental. “Quando estou ali, chega uma hora em que sinto que estou sendo levado pela própria floresta”, conta. Em vários momentos, ele simplesmente sai abrindo piques, sem que ninguém saiba em que direção seguiu ou quando voltará.

    A coleta costuma se iniciar nos quebradores mais distantes da margem do rio, gradativamente seguindo para os mais próximos. A dinâmica de trabalho consiste em sair para a mata com cestos trançados, os “paneiros”, presos às costas, observando a presença de ouriços no solo. Quanto encontrados, são pegos pelo “cambito”, um pedaço de madeira que tem uma de suas pontas cortada em quatro e aberta de forma a permitir o encaixe dos ouriços. É feito então o “bolar”, o ato de levar o ouriço ao paneiro, que vai se enchendo até ser descarregado no quebrador. Inicia-se ali mais uma etapa, a quebra do ouriço com machados para a separação das sementes: descartam-se as de má-formação ou as que tenham fungos, além do chamado “umbigo”, a semente não apropriada para consumo.

    Após a quebra e a seleção, as castanhas são colocadas em sacas, transportadas até a beira do igarapé – uma carga que pode chegar a até 100 quilos. No rio, há uma lavagem com peneiras: as castanhas mais leves flutuam e são também descartadas; as que sobram são novamente ensacadas. “Aqui, o homem só descansa quando dorme”, diz Edmundo Carvalho Belo, o Pará, de 30 anos, exímio proeiro e caçador. Não cooperado, ele trabalha na extração a partir de um combinado que possibilita a garantia de um valor de acordo com as sacas produzidas diariamente.

    Para Francisco de Assis de Souza, o Tica-Pau, de 31 anos, as lembranças de infância se misturam com os períodos de coleta nos castanhais. “Minha mãe fazia uns paneiros de palha pequenos para mim e meus irmãos. Assim, fomos aprendendo”, diz. “É como se isso fizesse parte da minha vida desde sempre.” Neste ano, ele teve pela primeira vez a companhia de sua esposa, Josielma, e do filho, Hítalo, de 14 anos, que tem planos de fazer faculdade de engenharia. “É claro que os estudos são importantes, mas saber trabalhar nos castanhais vai fazer com que ele tenha mais escolha”, explica Josielma. A ida de Hítalo com a família foi possível graças a uma adaptação no calendário da escola da vila, que, pela primeira vez, alterou o período de férias para os meses de abril e maio, uma forma de facilitar a herança cultural do trabalho extrativista e de evitar prejuízos para as crianças e os jovens que acompanhassem suas famílias na coleta. Na colocação Cachoeirinha, onde Leandro Nascimento Pessoa, de 33 anos, e sua esposa, Josirene Baía Ares, de 28, pais de um casal de crianças de 6 e 7 anos, lideram o trabalho de pelo menos mais três famílias, distribuídas em quatro barracos, a preocupação com o futuro também se faz presente. “Eu aprendo muito com a floresta, é um lugar onde estou desde pequeno, quando acompanhava o meu pai”, comenta Pessoa. “Gostaria de que os meus filhos tivessem a mesma oportunidade. Ao mesmo tempo, quero que eles tenham outras chances que eu não tive por não seguir tão longe nos estudos. Mesmo que decidam trabalhar como castanheiros, com o estudo poderão nos ajudar trazendo novidades, mudanças, melhorias.”

    Abertos ao novo e à invenção, os ribeirinhos do Iratapuru viram o ritmo de trabalho se alterar com a presença dos motores nas canoas, há dez anos, uma tecnologia que agilizou bastante os fluxos de produção na região. A novidade de 2019 é o primeiro quadriciclo motorizado a entrar na mata: a partir da abertura de um ramal de 4 quilômetros, o veículo facilitará o transporte de sacas de quebradores mais distantes até a beira do igarapé. Com isso, “mesmo em caso de chuva e lama, será possível transportar em um dia uma quantidade de sacas que, nas costas dos castanheiros, poderia levar uma semana para chegar até a beira”, conta Raimundinho, líder do projeto na colocação Cabo Velho.

    Os novos conhecimentos e tecnologias unem-se à tradição e à força coletiva que será novamente testada quando, no fim da coleta, chegar a etapa considerada a mais difícil, que é a descida do rio com as canoas e os batelões carregados com toneladas de sacas de castanha. As habilidades de navegação serão necessárias para evitar naufrágios e perdas da produção. Quando chegarem à vila de São Francisco, será o momento da celebração com os companheiros, em festas que costumam agitar a comunidade por dias. Esses momentos são cheios de contação de histórias. E, com ou sem onça, elas são o motor afetivo e efetivo que continua a dar sentido ao trabalho castanheiro no Iratapuru. Elas marcam o fim de uma temporada que, por ser cíclica, já navega mirando o próximo recomeço.

    O coletor segue com o cesto cheio de ouriços. A relação humana com as gigantescas árvores castanheiras data de pelo menos 2 mil anos, segundo recentes pesquisas – mais uma conexão com o rico passado pré-cabralino da Amazônia.
    Foto de Maurício de Paiva

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