Medo, estresse e correria – o cotidiano dos profissionais de saúde em ambulâncias
Na linha de frente do combate ao coronavírus, médicos, enfermeiros e socorristas do Samu trabalham sob risco constante de contágio. Fotógrafo acompanhou uma equipe na cidade de Santo André, zona metropolitana de São Paulo.
Dentro do elevador, na frente de um espelho, a enfermeira Andrea Valentim e o médico João Paulo Negretti se preparam para atender paciente com suspeita de Covid-19 no centro de Santo André, zona metropolitana de São Paulo. O Samu da cidade de São Paulo socorre, em média, 600 casos por dia. Pelas estimativas do diretor médico do serviço, pelo menos 70% desses atendimentos estão diretamente relacionados ao novo coronavírus.
“É sempre um dilema: caso o paciente seja sedado e acabe falecendo, a família não vai conseguir trocar as últimas palavras; por outro lado, se não for, as chances de sobrevida caem bastante”, explica o médico de urgências João Paulo Negretti aos familiares de um paciente recém internado em um hospital particular de Santo André. Consternados, filha e neto do homem de 80 anos buscavam orientação sobre se deveriam ou não intubá-lo.
“Eu sempre sou a favor do paciente, mas entendo que a decisão final é muito difícil e somente da família”, conclui o mineiro de 28 anos, quase dois deles dedicados ao socorro de emergências. Negretti é um dos 60 médicos da equipe do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) de Santo André, quarto maior município da Grande São Paulo. Em todo o estado, o mais afetado pela pandemia no Brasil, foram 4.501 mortes por coronavírus e 58.247 casos confirmados até 15 de maio. Em todo o país, no mesmo período, foram 14.455 mortes e 212 mil casos.
O Sars-CoV-2, nome oficial do novo coronavírus, trouxe mudanças de rotina e protocolo para os profissionais que estão na linha de frente de atendimento às vítimas da doença. Aos habituais macacão, luva e máscara cirúrgica, foram adicionados macacão químico impermeável, óculos de proteção e máscara facial ao equipamento de proteção básico. A cada chamado por suspeita de Covid-19, as equipes – compostas por médico, enfermeiro e socorrista – precisam se paramentar por completo, o que pode levar entre 10 a 20 minutos.
Em meio a um atendimento, o médico João Paulo Negretti explica, pelo celular da esposa do paciente, a familiares a gravidade da situação e por que recomendava a intubação do homem de 80 anos.
A enfermeira Andrea Valentim e o médico João Paulo Negretti amparam paciente inconsciente a caminho da UTI de um hospital particular.
“Se não tivéssemos esse EPI [Equipamento de Proteção Individual], nem sairia da base”, comenta o médico Ricardo Trevisan, minutos ante de atender a um chamado para transferir um paciente de um hospital de campanha para o Centro Hospitalar do Município de Santo André, diante da piora da sua saúde. O doente, já intubado e sedado, apresentava quadro da pneumonia típica da Covid-19 e precisava de um leito em unidade de tratamento Intensivo (UTI).
Hospitais de campanha – estruturas improvisadas em ginásios, estádios, centros de convenções – têm sido construídos desde o início da quarentena oficial no Estado de São Paulo. Em Santo André, cuja população é de cerca de 570 mil habitantes, são dois. Juntos, contam 205 vagas, 32 delas de UTI. Já na cidade de São Paulo, três hospitais provisórios foram montados às pressas. Estruturas no Anhembi, no Ibirapuera e no Pacaembu somam 2.240 vagas de baixa complexidade para enfrentar a pandemia. Esses hospitais têm portas fechadas, e os pacientes só chegam transferidos de outras unidades. Segundo Veridiana Abud, médica reguladora do Samu, é incomum o atendimento de pessoas em estado crítico em suas casas. “A maioria das pessoas busca uma UPA [Unidade de Pronto Atendimento] ou hospital antes disso – quando começa a sentir falta de ar, por exemplo.”
No entanto, com a disseminação da doença, mais e mais pessoas temem ir aos hospitais por medo da contaminação. Esse cenário levou duas equipes – uma do Samu e uma de resgate dos bombeiros – a um apartamento de classe média no centro de Santo André na última terça-feira (5/05). Cinco profissionais, entre técnicos, enfermeiro e médico, se espremiam em um dormitório para salvar um homem com dificuldade para respirar, baixa oxigenação e acúmulo de líquido no pulmão. O ambiente com pouca ventilação tornava ainda pior a sensação da enfermeira Andrea Valentim, de 45 anos, que, além dos trajes duplos, protegia-se com uma máscara de filtro químico e uma pesada máscara facial.
O médico Carlos Lins conversa com a equipe de médicos reguladores. Esses profissionais, que em tese existem em todos os serviços de Samu do Brasil, atendem os chamados feitos pelo 192, orientando quem está do outro lado da linha e tomando as próximas providências. Dependendo da gravidade do caso, eles decidem pelo envio de ambulância básica, intermediária ou avançada. Estas últimas são as únicas que funcionam como UTI móveis e levam médicos a bordo.
Alexandre Souza (à esquerda), socorrista, e seus colegas Rosangela Maza, enfermeira, e Ricardo Trevisan, médico, 28 anos, dão entrada de paciente intubado e inconsciente no Centro Hospitalar do Município de Santo André, vindo do hospital de campanha montado em um ginásio da cidade. O paciente de cerca de 60 anos e diagnosticado com Covid-19 teve de ser transferido diante da piora quadro clínico.
“Claro que temos medo de fazer atendimentos de Covid”, comenta Andrea. “Você vê minha situação: minha filha, que mora comigo, está grávida de sete meses; é preciso tomar muito cuidado com a roupa, principalmente na volta à base, quando tiramos tudo.” Após quase três horas de sufoco, entre trajeto, atendimento e transporte do paciente, Andrea começou a passar mal durante o caminho de volta à base. Com pressão baixa e ligeiramente desidratada, ela foi a primeira a remover a proteção, com auxílio dos colegas. “É muito tempo, sob pressão, estresse, local apertado… a sensação é como correr uma São Silvestre com uma roupa de astronauta”, comentou a enfermeira, ainda se recuperando. “A maioria dos profissionais de saúde se contamina justo neste momento. Enquanto você está atendendo, sua atenção está alta; quando você relaxa é que está o perigo.”
Sem alívio
Francis Fujii, diretor médico do Samu de São Paulo, também atua na linha de frente e diz que todos sofrem com a situação. “Estamos há mais de 40 dias sob alta pressão e estresse, vendo até mesmo a morte de colegas pela Covid-19; constantemente você pensa ‘não posso falhar em nenhum detalhe’ porque qualquer errinho pode infectar a mim, a um colega, ou minha família”, comenta ele, que comanda uma equipe de 120 ambulâncias, dez delas como UTI móveis. “Aquele momento de respiro, de alívio, não existe mais; o que dá esperança é manter a visão de futuro.”
Nesta terça-feira (12/05), a linha de frente sofreu mais uma baixa: o socorrista Daniel Oliveira, do Samu de Osasco morreu vítima do coronavírus. “Nós somos bem informados e não ficamos muito preocupados, mas claro que dá receio; um colega nosso de 32 anos, também médico, acabou morrendo muito rápido, apesar de saber tudo o que podia”, me contou o médico João Paulo Negretti, que também contraiu o vírus – assim como a esposa, que, como ele, é médica de urgência. Os primeiros sintomas que diz ter sentido foram conjuntivite, dores no peito e nas costas, tosse, diarreia, febre, falta de paladar e olfato. Ao fim, a diabetes já estava desequilibrada. “Isso mostra como a doença não é nada parecida com uma gripe; com a forma leve dela, tive reflexos no corpo todo. A doença é sistêmica, ataca de modo muito mais amplo o corpo inteiro, diferente do que se pensava”, disse.
Dr. Ricardo Henrique Tevisan é médico de emergências do Samu de Santo André.
Alexandre Aparecido Souza, condutor e socorrista do Samu de Santo André.
Renan Chaves (à esquerda), condutor e socorrista de emergência, e Andrea Valentim, enfermeira de emergências há 15 anos.
Na cidade de São Paulo, onde o Samu é responsável por atestar óbitos desde o final de março, profissionais têm observado mais mortes por infarto e acidente vascular cerebral em pessoas diagnosticada com a Covid-19. “Estão descobrindo que esse novo coronavírus afeta o sangue, provocando mais casos de trombos, como são chamados os coágulos dentro dos vasos, e isso leva a derrames e ataques cardíacos”, explica a diretora médica do Samu, Juliana Saracuza. Ex-jogadora profissional de vôlei, campeã do mundo em 2001, Saracuza encontrou seu lugar na emergência após sofrer um grave acidente de ônibus com sua equipe, o Vôlei Futuro, em 2011. “Eu consegui manter a calma e decidi que aquele era meu caminho; sou apaixonada pelo meu trabalho”, conta ela, do alto dos seus 2,03 metros.
Lidando com a doença
A inflamação dos pulmões, que afeta a troca de gases dentro do orgão, é o quadro mais conhecido do novo coronavírus, e de onde vem o ‘Sars’ de seu nome, acrônimo em inglês para ‘síndrome respiratória aguda grave’. O tratamento de pessoas em estado crítico da síndrome, que exige intubação, é definido por um delicado equilíbrio entre fornecer mais oxigênio via respirador sem reduzir a pressão arterial.
A pneumonia causada pelo Sars-Cov-2 deixa o pulmão rígido, o que vem sendo identificado em tomografias. Para oxigenar o sangue, é necessário aumentar a pressão do respirador no pulmão, o que acaba comprimindo vasos e, no coração, baixando a pressão arterial. A solução, então, é o uso de medicamentos que ativam o coração e seus vasos. No entanto, muitas dessas drogas tornam os vasos mais estreitos, prejudicando a oxigenação do paciente. Lidar com esse equilíbrio em uma doença nova é um desafio, e exige medidas diferentes do que era praticado até hoje. “Estamos usando uma pressão no respirador duas a três vezes maior do que antes da Covid-19; isso mostra o tamanho do dano nos alvéolos que a doença causa”, diz Negretti. Outro método usado em UTIs é manter os pacientes deitados de barriga para baixo, o que facilita a abertura do pulmão e melhora o fluxo de ar.
O paciente idoso mencionado anteriormente acabou sendo intubado, internado na UTI e, até o fechamento desta reportagem, estava estável, segundo familiares.
A enfermeira Andrea Valentim, 46, e o médico João Paulo Negretti, 28 se cumprimentam após atenderem idoso suspeito de Covid-19 inconsciente em sua casa. Após cada atendimento os membros da equipe analisam o que poderiam ter feito melhor, mais rápido, ou que medidas seriam mais efetivas para o paciente.
Modelo Francês
Inspirado no serviço francês de atendimento de emergências, o Samu foi criado em 2003 e é financiado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Toda chamada para o 192 passa por médicos, conhecidos como médicos reguladores, que, à distância, avaliam a gravidade da situação e qual o tipo de equipe a ser destacada. Assim como o resto do SUS, o sistema é organizado pelas prefeituras, que recebem recursos e financiamento dos governos federal e estadual. Como a organização é feita de maneira independente em cada cidade, seguindo alguns parâmetros gerais, é comum haver serviços mais bem avaliados que outros até mesmo em locais vizinhos – algo que a pandemia acabou tornando mais nítido.
Hoje, o financiamento é dividido em 50% pela União, e 25% por estados e municípios, cada. A ambulância de suporte avançado, como são chamadas as UTI móveis, custa cerca de R$ 450 mil. Já a manutenção – entre equipe, medicamentos, insumos e peças – consome entre R$ 100 mil e R$ 130 mil por mês. Segundo o Ministério da Saúde, o serviço está presente em 3.618 dos 5.570 municípios do Brasil, com 3.274 ambulâncias e outros veículos que atendem 174 milhões de pessoas. O Samu da cidade de São Paulo socorre, em média, 600 casos por dia. Pelas estimativas do diretor médico do serviço, pelo menos 70% desses atendimentos agora estão diretamente relacionados ao novo coronavírus. Em Santo André, município 20 vezes menor, foram 313 atendimentos relacionados à Covid-19 desde 22 de março.