Teoria cósmica abalada: matéria escura distorce aglomerados de galáxias mais que o imaginado
De acordo com o principal modelo da estrutura do universo, os aglomerados maiores não deveriam ser tão distorcidos como observado nos telescópios.
Esta imagem do telescópio espacial Hubble da NASA/ESA mostra o aglomerado de galáxias MACS J1206. Aglomerados de galáxias como esse têm uma massa enorme e sua gravidade é intensa o suficiente para dobrar visivelmente o caminho da luz, como uma lupa.
ASSIM COMO OS HUMANOS, AS GALÁXIAS não conseguem ficar sozinhas. Impulsionadas pela gravidade, elas tendem a se agrupar e algumas até acabam formando o que poderíamos chamar de megacidades agitadas: aglomerados com até mil galáxias, que juntas pesam um milhão de bilhões de vezes mais que o nosso Sol.
Mas de todas as estrelas brilhando nesses aglomerados, apenas uma fração da massa de toda a estrutura é visível. Até onde os cientistas sabem, o verdadeiro peso de um aglomerado fica contido em um material que não pode ser visto: uma substância invisível e misteriosa chamada matéria escura. Assim como o concreto e o asfalto de uma cidade, um enorme halo de matéria escura sustenta todo o aglomerado de galáxias. E assim como os prédios surgem nas ruas da cidade, cada galáxia fica em seu próprio halo secundário de matéria escura.
Por décadas, astrônomos tentaram compreender o papel da matéria escura como planejadora urbana do cosmos, moldando a estrutura de nosso universo. Mas as últimas observações sugerem que, independentemente do que a matéria escura seja, ela não está se comportando como os pesquisadores esperavam.
Em um estudo publicado na revista científica Science, os pesquisadores analisaram como 11 gigantescos aglomerados de galáxias dobram a luz que passa por eles, vista da Terra. O estudo constatou que esses aglomerados abrigam um número de bolsões densos de matéria escura que é mais de 10 vezes maior do que o previsto por modelos de supercomputadores.
“Quando uma lacuna dessas é encontrada, na maioria das vezes, ela revela que há um elemento do modelo que precisa ser refinado”, diz o coautor do estudo Priyamvada Natarajan, astrofísico teórico da Universidade de Yale. “Mas, às vezes, a lacuna nos mostra o caminho para uma nova teoria — embora isso ocorra muito raramente na história da ciência.”
Uma lente de câmera cósmica
O estudo é o mais recente a questionar o principal modelo dos ingredientes fundamentais do universo e como eles interagem ao longo do tempo, conhecido como Lambda Cold Dark Matter (Lambda Matéria Escura Fria ou Lambda-CDM).
De acordo com esse modelo, até 5% da matéria e energia combinadas do universo correspondem à matéria bariônica: a conhecida mistura de partículas que compõe planetas, estrelas, galáxias, organismos e tudo o mais que conseguimos ver. A maior parte do universo, 68% ou mais, é feita de energia escura — representada pela letra grega lambda (Λ) — uma enigmática força repulsiva que impulsiona a expansão acelerada do universo.
Os 27% restantes do universo são compostos por uma substância invisível chamada matéria escura. De acordo com o modelo, a matéria escura possui massa e pode criar campos gravitacionais, mas não reage consigo mesma, não emite luz e não interage instantaneamente com a matéria normal, a não ser por meio da gravidade.
Para testar o Lambda-CDM, pesquisadores liderados por Massimo Meneghetti, astrônomo do Observatório Astronômico de Bolonha, na Itália, decidiram examinar alguns dos maiores aglomerados de galáxias conhecidos. A equipe queria saber como a massa é distribuída dentro de um aglomerado e, para isso, mediram um fenômeno que aparece em telescópios como um efeito de câmera psicodélico.
Assim como uma bola de boliche colocada sobre uma cama elástica deforma e estica a superfície, a matéria distorce a geometria do espaço-tempo ao seu redor. Objetos enormes, como galáxias ou aglomerados de galáxias, distorcem tanto o espaço-tempo que as distorções dobram qualquer luz que atravessa. Os astrônomos conseguem visualizar esse efeito, chamado de lente gravitacional.
Quando um objeto é especialmente grande e denso, a lente gravitacional que ele forma consegue até mesmo dividir a luz. Do nosso ponto de observação, nessa anomalia, parece que o objeto está rodeado por diversas imagens da mesma fonte de luz ao fundo.
A gravidade da matéria escura contribui para esse efeito e os aglomerados de galáxias parecem estar repletos dele. De acordo com nossos melhores modelos, os aglomerados de galáxias não apenas estão inseridos em grandes halos de matéria escura, mas cada galáxia em um aglomerado também fica dentro de seu próprio halo secundário de matéria escura.
Quando a equipe de Meneghetti mapeou 11 aglomerados de galáxias e contabilizou as lentes gravitacionais menores, eles detectaram um número mais de 10 vezes maior do que o esperado. A observação sugere que os halos secundários de matéria escura são muito mais densos do que as simulações de computador haviam previsto — uma descoberta que parece contradizer o Lambda-CDM.
Ajustando a teoria do universo
Essa discrepância não é a primeira a surgir entre observações do universo e Lambda-CDM. No entanto a nova descoberta é especialmente surpreendente porque a incompatibilidade é diferente de todas as outras encontradas até agora nos testes desse modelo, explica o astrofísico da Universidade do Texas em Austin, Mike Boylan-Kolchin, que não participou do estudo.
A estrutura das galáxias próximas implica o fato de a matéria escura ser menos densa nesses locais do que a teoria havia previsto. A nova anomalia detectada, no entanto, caminha na direção oposta, mostrando que a matéria escura dos aglomerados de galáxias precisa ser ainda mais densa do que sugere o Lambda-CDM.
“Encontramos um problema que vai exatamente na direção oposta”, afirma Meneghetti.
O que poderia estar causando o novo conflito entre teoria e observação? É possível que os modelos de computador não capturem perfeitamente como as galáxias se formam ou que simplesmente não tenham a resolução necessária para criar um modelo de estruturas tão imensas — mas os autores do estudo dizem que consideraram essas possíveis fontes de erro e, até o momento, a discrepância parece ser simplesmente grande demais para ser explicada por eles.
Parte do desafio é que quaisquer ajustes teóricos realizados precisam ser tão bons quanto o Lambda-CDM para explicar as outras propriedades do universo. A teoria sustenta que a matéria escura é “fria” ou que as partículas se moviam bem lentamente nos primórdios do universo. Essa lentidão foi crucial para preservar as regiões onde a matéria escura era discretamente mais densa do que a média. Posteriormente, essas regiões superdensas entraram em colapso devido à sua própria gravidade, atuando como uma espécie de sustentação para a matéria normal se agrupar e formar estrelas, planetas e galáxias.
Embora o modelo seja ótimo para explicar sistemas cósmicos em grande escala, suas previsões não combinam tão bem com estruturas com menos de 3,3 milhões de anos-luz de diâmetro, a escala de grandes galáxias ou grupos de galáxias. Os astrônomos tendem a visualizar menos objetos pequenos, ou regiões menos densas dentro das galáxias, do que o previsto pelo Lambda-CDM — mesmo que as novas observações tenham encontrado regiões mais densas do que a teoria sugere.
Os modelos futuros provavelmente serão capazes de explicar esse comportamento duplo da matéria escura em pequenas escalas. “É como tentar passar por várias agulhas diferentes ao mesmo tempo”, diz James Bullock, astrofísico da Universidade da Califórnia-Irvine que não participou do estudo.
Mathilde Jauzac, física da Universidade de Durham e especialista em lentes gravitacionais (que também não participou do estudo), acrescenta que será difícil continuar procurando uma solução para o impasse. Aglomerados de galáxias gigantes não são tão comuns. O novo estudo incluiu o maior número possível de aglomerados: 11.
Como os aglomerados de galáxias gigantes são raros, eles não surgem com frequência em simulações, acrescenta Jauzac. Portanto, para observar um número maior deles, os responsáveis pelos modelos teriam que simular volumes muito maiores de espaço, o que exigiria cálculos complexos e repletos de números.
Quando os astrofísicos conseguirem identificar contradições suficientes no Lambda-CDM, eles podem encontrar um caminho para uma nova teoria que explica, de forma ainda mais precisa, a história completa do universo: como o big bang desencadeou uma série de interações cósmicas que resultaram, etapa por etapa, estrela por estrela, no nosso planeta natal, a Terra — e, finalmente, na raça humana.