Promissor sinal de vida detectado em Vênus talvez nem exista

A detecção de gás fosfina nas nuvens de Vênus — um possível sinal de vida — pode ter sido causada por uma anomalia acidental no processamento de dados, conforme sugerido em novas análises.

Por Nadia Drake
Publicado 26 de out. de 2020, 14:49 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Essa imagem de Vênus, submetida a um processo de colorização, foi captada pela sonda Galileu em ...

Essa imagem de Vênus, submetida a um processo de colorização, foi captada pela sonda Galileu em 14 de fevereiro de 1990 a uma distância de mais de 2,7 milhões de quilômetros. Foi utilizada uma tonalidade azulada para destacar os contrastes sutis nos contornos das nuvens.

Foto de NASA, JPL

RECENTEMENTE, ASTRÔNOMOS ENCONTRARAM indícios animadores de que poderia haver vida flutuando nas nuvens que cobrem Vênus. Contudo, ao que parece, a busca por vida extraterrestre está longe de acabar, pois novas pesquisas já estão pondo em xeque essa descoberta.

A detecção de gás fosfina na atmosfera de Vênus, anunciada no mês passado, desencadeou uma profusão de especulações sobre a possibilidade de que o gás tenha sido produzido por micróbios extraterrestres daquele planeta, para onde agora a Nasa cogita enviar uma sonda. No entanto três novos estudos independentes não conseguiram encontrar evidências de fosfina na atmosfera venusiana.

“Disseram que não encontraram fosfina. É bastante perturbador”, afirma Conor Nixon, cientista planetário do Centro Goddard de Voos Espaciais da Nasa que examinou o estudo, mas não participou da análise. O estudo foi revisado por pares e aceito para publicação no periódico Astronomy & Astrophysics.

Dois outros grupos processaram novamente os dados originais da equipe de descoberta e também não conseguiram encontrar evidências de fosfina.

Mas detectar um sinal tênue de uma molécula específica em outro planeta é um processo complexo e os autores originais do estudo não estão surpresos que outros cientistas estejam conduzindo uma análise mais aprofundada de sua pesquisa.

É normal. A ciência é assim. Se fosse possível observar fosfina a olho nu, teria sido descoberta há muito tempo”, afirma Clara Sousa-Silva do Centro de Astrofísica Smithsoniano de Harvard, uma autora do estudo. “É um grande alívio que esses dados estejam finalmente sendo analisados por outras pessoas.”

Uma descoberta surpreendente

A primeira detecção, publicada no periódico  Nature Astronomy em setembro, indicou a presença do gás fosfina flutuando pelas espessas nuvens sulfúricas de Vênus em uma quantidade mais de mil vezes superior à encontrada na atmosfera da Terra. Em planetas rochosos como Vênus e a Terra, as condições não são consideradas tão extremas a ponto de produzir moléculas de fosfina sem a presença de vida. Alguma espécie de metabolismo ou processo químico desconhecido seria necessária para explicar as elevadas quantidades de gás fosfina na atmosfera venusiana (na Terra, vários micróbios produzem fosfina. Os humanos também produzem, em laboratórios de metanfetamina e na indústria de semicondutores).

A equipe identificou fosfina utilizando dois instrumentos que captam ondas de rádio. Inicialmente, em 2017, Jane Greaves, da Universidade de Cardiff, e colegas encontraram o que poderia ser fosfina com o Telescópio James Clerk Maxwell (Jcmt, na sigla em inglês), no Havaí. Mas essa observação precisava de confirmação e, em 2019, a equipe recorreu a um instrumento mais poderoso: o Atacama Large Millimeter/submillimeter Array (“Grande Conjunto Milimétrico e Submilimétrico do Atacama”, em tradução livre, ou Alma, na sigla em inglês), uma rede de 66 antenas de rádio no alto do deserto chileno.

Nos dados do Alma, a equipe encontrou um sinal fraco na frequência em que a energia seria absorvida por moléculas de fosfina na atmosfera venusiana, conhecida como linha espectral. Se de fato houver fosfina em Vênus nas grandes quantidades observadas, argumentou a equipe, sua presença seria difícil de explicar se não fosse produzida biologicamente (uma nova reanálise de dados da sonda Pioneer-Venus, que visitou Vênus no fim da década de 1970, reforça, por ora, a possibilidade de existência de fosfina, embora não possa confirmá-la).

No entanto alguns cientistas estão incrédulos. Na ocasião, John Carpenter, cientista do Observatório Alma, questionou a forma de análise dos dados utilizada pelos cientistas da equipe original e sugere que o procedimento pode ter gerado anomalias nos sinais.

Além disso, os astrônomos normalmente procuram diversas linhas espectrais produzidas pela mesma molécula para confirmar sua presença — imagens de que a equipe não dispõe.

“A linha espectral de fato existe e é significativa?”, indaga Nixon. “Se houver uma linha, seria de fosfina? E se for, significaria a existência de vida?”

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Verificação com outro telescópio

No momento do anúncio, a equipe ainda buscava confirmação da detecção por meio de linhas espectrais identificáveis por telescópios infravermelhos — mas as observações foram adiadas devido à atual pandemia. Agora, outra equipe com Greaves e Sousa-Silva, da equipe de detecção original, fez uma análise de Vênus utilizando dados de arquivos anteriores de outro telescópio, o Infrared Telescope Facility (“Instalação de Telescópio Infravermelho”, em tradução livre, ou Irtf, na sigla em inglês), no Havaí.

Essas imagens, obtidas em 2015, não indicam nenhum sinal forte de fosfina. Liderados por Therese Encrenaz, do Observatório de Paris, os autores do estudo concluem que os dados indicam que o limite máximo do possível teor de fosfina existente na atmosfera venusiana é de um quarto da quantidade originalmente detectada. As imagens também sugerem que qualquer eventual fosfina precisaria estar em altitudes acima das nuvens do planeta, o que os astrônomos consideram improvável devido à rápida degradação do gás.

Sousa-Silva aponta várias possíveis explicações para a ausência de fosfina nas visualizações infravermelhas. As quantidades de fosfina podem variar ao longo do tempo, ou então as visualizações infravermelhas podem não ter sido profundas o suficiente nas nuvens para detectar o gás nos níveis informados. Até agora, ainda não há um consenso entre a equipe sobre a altitude captada pelas visualizações infravermelhas.

“Acredito no estudo de Encrenaz e que, portanto, não foi encontrada fosfina — no local observado”, afirma Sousa-Silva. “A questão é em que local? Qual foi a altitude observada? Será que a exploração foi profunda o suficiente e não foi encontrada fosfina porque nunca existiu nessa altitude? Será que a fosfina não foi encontrada porque é variável? Ou será que a exploração não foi tão profunda quanto imaginávamos?

Outro olhar sobre os dados

Enquanto Encrenaz e os membros da equipe de descoberta analisavam os dados do Irtf, duas outras equipes processaram novamente os dados originais utilizados na detecção. Nenhuma das novas análises independentes desses dados conseguiu encontrar indícios confiáveis do gás.

O primeiro grupo, composto por mais de vinte pesquisadores, não conseguiu encontrar evidências de fosfina nos dados do Jcmt e do Alma. O Jcmt detectou uma linha espectral na frequência certa, mas a equipe sugere que pode ser explicada pela presença do gás dióxido de enxofre na atmosfera de Vênus, que, por acaso, gera uma linha espectral no mesmo local.

“É um gás muito comum em Vênus”, afirma Nixon. “Não há polêmica sobre sua presença.”

Os dados do Alma, que produz imagens de altíssima resolução, passaram por uma análise mais complexa. Objetos brilhantes e próximos, como Vênus, podem causar perturbações em conjuntos de telescópios ultrassensíveis como o Alma. Para obter um sinal a partir das imagens de Vênus, os astrônomos tiveram de eliminar o ruído de rádio produzido pela atmosfera da Terra, pelo próprio planeta Vênus e até mesmo pelos equipamentos do observatório.

“É uma redução de dados bastante complexa”, afirma Bryan Butler, do Observatório Nacional de Radioastronomia, que estuda objetos do sistema solar utilizando o Alma e que participou da nova análise. “Vênus é um objeto muito brilhante e grande e, ainda que tenha de fato sido detectada uma linha, é somente uma linha tênue.”

Para piorar ainda mais a complexidade, o observatório Alma identificou recentemente um erro em seu sistema de calibragem que produziu um espectro de Vênus com interferência demais para Greaves e seus colegas trabalharem. “Esses dados são confusos, sensíveis e repletos de interferências”, explica Sousa-Silva (o Alma retirou os dados originais de Vênus de seus arquivos e atualmente está reprocessando-os).

Com o uso de uma técnica denominada ajuste polinomial, a equipe de descoberta original procurou a linha espectral da fosfina eliminando matematicamente o ruído de fundo ao redor da região do espectro onde haveria fosfina. Em tese, esse tipo de análise permite aos astrônomos determinar quais regiões das imagens são interferências e quais são sinais reais. Após a homogeneização do espectro feita pela equipe para remover o excesso de interferências, os astrônomos concluíram que o sinal de fosfina era significativo o suficiente para considerá-lo uma detecção.

Porém outros astrônomos estão céticos quanto ao processamento de dados da equipe. Para extrair o sinal de fosfina de um conjunto de dados desorganizado, a equipe subtraiu o ruído de fundo utilizando um polinômio de alta ordem, o que significa que foram utilizadas mais variáveis do que o normal para modelar os dados. Além disso, a equipe modelou o ruído de fundo analisando regiões do espectro fora da área onde seria esperado encontrar sinal de fosfina — um método que normalmente impede que um possível sinal seja obscurecido por ruídos desconhecidos. No entanto a associação entre um polinômio de alta ordem e um conjunto de dados com interferências possibilita a criação artificial de um sinal falso onde estaria a fosfina.

“É possível melhorar o ajuste de um conjunto de dados adicionando mais variáveis, mas é preciso definir um parâmetro que indique quando parar”, afirma Meredith MacGregor, astrônoma da Universidade do Colorado, em Boulder. “Em algum momento, serão ajustados ruídos e ampliados sinais que não são reais.”

Butler baixou os dados do Alma e começou do zero, refez algumas das calibragens iniciais e, em seguida, processou os dados como faria normalmente. Não encontrou nenhuma evidência de fosfina no espectro do planeta.

“Apenas utilizei o que, em minha experiência, são as melhores práticas para reduzir esse tipo de dados”, conta Butler. “Se não for utilizado o mesmo procedimento deles, não fica visível nenhum traço [de fosfina].” Além disso, ao processar os dados empregando os mesmos métodos da equipe de descoberta original, ele verificou que o ajuste polinomial produzia linhas espectrais falsas.

Outra análise dos dados do Alma, liderada por Ignas Snellen, do Observatório de Leiden, e colegas, também não conseguiu encontrar nenhum sinal de fosfina. Essa equipe também informou que o ajuste polinomial de alta ordem poderia criar várias anomalias nas linhas espectrais.

“Eles mostraram que esse processo de ajuste pode ser bastante problemático”, afirma Nixon. “É muito inconstante e pode produzir elementos visuais com a mesma facilidade em que os elimina. No fim, não é possível ter certeza do que está sendo observado.”

Greaves e sua equipe se recusam a comentar as novas análises das observações do Alma até que o observatório tenha a possibilidade de processar novamente os dados.

Uma busca contínua

Essas tentativas de confirmar a descoberta de fosfina são exatamente como a ciência deve operar, alegam muitos astrônomos. A replicação independente não é tão comum quanto deveria, embora seja parte fundamental da confirmação de descobertas. A determinação definitiva da presença de fosfina em Vênus terá de aguardar até que as novas análises sejam revisadas por pares e publicadas — e depois submetidas a escrutínio — e talvez por mais observações do planeta.

“Precisamos de outras imagens para não depender de poucos conjuntos de dados repletos de interferências”, afirma Sousa-Silva. “O que se conclui é que são necessários mais dados e mais análises.”

Os pesquisadores estão confiantes de que, com o tempo, desvendarão o mistério da fosfina. “A meu ver, a ciência sempre corrige seus erros e, em condições ideais, nos dias atuais, com a internet e as modernidades de hoje, não serão necessários anos para efetuar essas correções”, afirma Nixon.

Alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias. “Se esse resultado não se confirmar”, conta Butler, “não seria o primeiro”.

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