Conheça os ‘’sobreviventes” de um genocídio que nunca existiu

Líder dos indígenas caribenhos conhecidos como taínos descreve como a história de seu povo foi apagada — e o que estão fazendo para recuperá-la.

Por Jorge Baracutei Estevez
fotos de Haruka Sakaguchi
Publicado 6 de nov. de 2019, 07:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Durante séculos, acreditava-se que o povo indígena da região do Caribe, conhecido como taíno, estivesse extinto. Mas, recentemente, historiadores, auxiliados por exames de DNA, confirmaram o que muitas pessoas autoidentificadas como taínos modernos já sabiam: que um genocídio havia sido perpetrado no papel, depois que o censo parou de contabilizá-los, mas que a identidade deles persistira. Jorge Baracutei Estevez (acima), que lidera um grupo comunitário de taínos em Nova York, trabalhou com a fotógrafa Haruka Sakaguchi para retratar os taínos da atualidade e seus hipotéticos registros no censo.

O povo que hoje chamamos de taínos descobriu Cristóvão Colombo e os espanhóis. Não foi Cristóvão Colombo que nos descobriu, pois estávamos em casa, e eles, perdidos no mar quando desembarcaram em nossas praias. É assim que encaramos essa questão — na História, porém, somos os descobertos. Os taínos são os povos falantes das línguas aruaques e habitantes da região do Caribe, que migraram da América do Sul ao longo de um período de 4 mil anos. Os espanhóis esperavam encontrar ouro e especiarias exóticas quando desembarcaram no Caribe, em 1492, mas o ouro era escasso, e as especiarias, estranhas para eles. Colombo, então, voltou sua atenção à melhor mercadoria que encontrou: o tráfico de escravos.

Em função do pesado tratamento recebido nas minas de ouro e nos canaviais, e das inúmeras doenças trazidas pelos espanhóis, a população sofreu um rápido declínio. Foi assim que nasceu o mito da extinção dos taínos. Os taínos foram declarados extintos logo após 1565, quando um censo revelou a presença de somente 200 índios em Hispaniola, que hoje representa os territórios da República Dominicana e do Haiti. Os registros do censo e os relatos históricos são bastante claros: não havia mais índios no Caribe após 1802. Mas, então, como podemos ser taínos?

Poucos historiadores analisaram profunda e criticamente os registros desse censo, muito embora índios continuassem a aparecer em relatórios, testamentos e certidões de casamento e nascimento durante todo o período colonial, e posteriormente. Sobrevivemos porque muitos dos nossos ancestrais se refugiaram nas montanhas. Quando começou a inquisição espanhola em 1478, todo judeu que não quisesse ser torturado ou assassinado precisava apenas se converter ao catolicismo. Estes ficaram conhecidos como conversos (convertidos). O mesmo aconteceu com os índios taínos. Então, depois de 1533, quando os indígenas escravizados foram “alforriados” pela monarquia espanhola, qualquer espanhol que relutasse em libertar seus escravos taínos simplesmente os reclassificava como africanos. Em todo esse período, espanhóis do Caribe se casavam com mulheres taínas. E os filhos deles, também não seriam taínos?

Genocídio no papel significa a prática de fazer um povo desaparecer dos documentos. O censo de 1787 realizado em Porto Rico aponta 2,3 mil indígenas puros na população, mas, no censo seguinte, de 1802, não aparece um único índio (o projeto de fotografia presente nesta matéria imagina como teriam sido os dados desse censo). Uma vez que se coloca algo no papel, pouco se pode fazer para mudá-lo. Toda enciclopédia apresenta relatos pessoais de Colombo, registrando que ele nos chamava de índios e que, logo depois de sua passagem, não sobrou um único índio no Caribe. Não importa a sua aparência física ou a identidade que você afirma possuir — você está extinto.  Isso é genocídio no papel: uma narrativa criada pelos conquistadores e perpetuada por todo e cada pesquisador que veio depois.

Nasci na cidade de Jaibon, na República Dominicana. Como todo jovem criado nos Estados Unidos, eu já tinha aprendido que não havia uma única gota de sangue indígena no Caribe, que todo e cada índio havia sido exterminado. Mas as pessoas como eu sempre se identificaram como indígenas. Sempre soubemos da nossa ancestralidade indígena.

No início da década de 1990, começamos a nos encontrar em diferentes eventos indígenas, como pow-wows e festivais. Iniciamos um movimento de restauração para tentarmos preservar o que conhecíamos do idioma e das práticas que ainda empregávamos.

Estudos posteriores de DNA começaram a revelar que os habitantes do Caribe tinham, de fato, DNA mitocondrial dos indígenas americanos: 61% de todos os porto-riquenhos, 23 a 30% dos dominicanos e 33% dos cubanos. É um número bastante alto de marcadores genéticos para um povo supostamente extinto. Em 2016, um geneticista dinamarquês extraiu DNA primitivo de um dente encontrado num crânio de 1000 anos de idade nas Bahamas. Esse dente continha uma fita inteira de DNA taíno. Será que há correspondências com o nosso DNA? Dos 164 porto-riquenhos testados, todos apresentaram correspondência com o DNA taíno.

Com tudo isso, estamos escrevendo o nosso nome de volta na História. A Internet é a nossa mais poderosa aliada. Hoje, temos um grupo de jovens estudiosos que se identificam como taínos. Fazendo novas perguntas e questionando as respostas antigas, eles vêm reescrevendo o nosso nome na História. Alguns livros já pararam de usar a palavra “extinção” para descrever o nosso povo.

Outra forma de afirmar a nossa identidade é atacar a validade dos registros do censo. Por muito tempo, não havia a opção “índio” entre os povos da América Latina — éramos todos hispânicos, brancos, negros ou uma mistura dessas etnias. Quando a opção “índio” ou “indígena” foi inserida no censo porto-riquenho, 33 mil pessoas se identificaram como índios. Nossas identidades sempre estiveram escondidas a olhos vistos. É isso o que esse projeto fotográfico reflete.

Queremos que o mundo saiba que o povo taíno não foi exterminado. Desempenhamos um papel importante na formação das nossas ilhas-nações. Para nós, conhecer essa história é como encontrar um parente há muito perdido, um pedaço de nós mesmos que não sabíamos que existia. Quando me dei conta de que boa parte das nossas tradições orais, cultura material, espiritualidade e idioma é indígena, percebi a grandiosidade do povo taíno.

Até hoje eu me lembro de voltar da escola após uma aula em que aprendemos sobre Colombo. Estava muito empolgado e tinha feito um desenho dos três navios. Ao chegar em casa, minha mãe me contou a história verdadeira. Fiquei chocado. Milhões de pessoas morreram por conta da sede de ouro e de reconhecimento daquele homem. É muito gratificante termos chegado a um ponto, hoje, em que a população no geral, e não só os caribenhos ou os indígenas, concorda que ele não é alguém que deva ser celebrado.

Sempre que penso na minha história e nas atrocidades cometidas pelos espanhóis, me pergunto: o que as avós e mães faziam enquanto seus filhos, irmãos e pais eram massacrados e estuprados, enquanto as vilas eram saqueadas e devastadas? Elas provavelmente rezavam com bastante fé, como qualquer pessoa que está sofrendo. Mas o que aconteceu com essas orações? Elas simplesmente desapareceram no ar, como a fumaça de uma fogueira? E, daí, eu me dou conta: nós, seus descendentes, somos essas orações. Voltamos para acertar as coisas, para contar a nossa história.

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    Depoimento dado a Nina Strochlic

    O chefe Jorge Baracutei Estevez é um Especialista de Programação aposentado do Museu Nacional do Índio Americano, do Instituto Smithsonian. Ele fez parte da equipe que montou a primeira exposição taíno do museu. Hoje, ele atua como líder da Higuayagua, uma organização taína de Nova York e da região do Caribe. Ele vem trabalhando para documentar as histórias orais dos anciões taínos.

    Haruka Sakaguchi é uma fotógrafa japonesa estabelecida em Nova York. Ela e o chefe Jorge Estevez criaram um censo hipotético para imaginar como seria os registros desse censo em 1802, ano em que a população de índios de Porto Rico caiu de um número documentado de 2,3 mil (em 1797) para zero. Sakaguchi pediu que os modelos posassem com roupas que acreditassem resumir sua identidade.

     

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