Campo nazista esquecido em solo britânico revelado por arqueólogos

Uma investigação forense com duração de uma década esclarece um capítulo da Segunda Guerra Mundial ocorrido nas Ilhas do Canal que muitos prefeririam apagar.

Por Megan Gannon
Publicado 2 de abr. de 2020, 09:55 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Os portões de entrada do campo de concentração nazista Sylt estão entre as poucas ruínas visíveis ...

Os portões de entrada do campo de concentração nazista Sylt estão entre as poucas ruínas visíveis ainda restantes do campo em Alderney, nas Ilhas do Canal, parte da Dependência da Coroa Britânica conhecida como Bailiado de Guernsey.

Foto de Les Gibbon, Alamy

Atualmente, o local do antigo campo de concentração Sylt é um lote de terra coberto de vegetação, junto aos penhascos acidentados de Alderney, parte de uma Dependência da Coroa Britânica nas Ilhas do Canal. Contudo, apenas 75 anos atrás, era uma prisão alemã temida e fortemente vigiada, onde centenas de homens sofreram e morreram nas mãos dos carrascos nazistas em seu solo.

Ao fim da guerra, o Lager (campo) Sylt e outros campos alemães menores em Alderney foram desativados e, aos poucos, desapareceram na paisagem. Agora, uma equipe britânica de arqueólogos reconstruiu o Lager Sylt e estudou sua construção em sua história breve, porém brutal. A pesquisa foi publicada no periódico Antiquity.

Caroline Sturdy Colls, arqueóloga especializada em locais usados no Holocausto e principal autora do estudo, afirma que as provas dos crimes cometidos no Lager Sylt foram “encobertas física e metaforicamente”.

“Como cidadã britânica e pesquisadora, eu não tinha ouvido falar das atrocidades cometidas em Alderney durante a Segunda Guerra Mundial até fazer minha pesquisa de doutorado”, afirma Sturdy Colls, atualmente professora de arqueologia de conflitos e investigação de genocídios da Universidade Staffordshire, na Inglaterra. “Eu sabia que os alemães haviam ocupado as Ilhas do Canal, mas não que haviam construído esses campos”.

Sturdy Colls e seus colegas queriam analisar o que os métodos arqueológicos forenses poderiam revelar sobre esse período. Começaram a estudar o Lager Sylt em 2010, reunindo evidências de registros históricos, fotografias aéreas antigas e novas técnicas de pesquisa não invasivas, como a tecnologia LiDAR , e radares de penetração no solo.

Um ponto importante da pesquisa foi simplesmente provar que grande parte do campo ainda existe hoje. A história local da guerra continua sendo um tabu na ilha. Sturdy Colls afirma que alguns moradores de Alderney aceitaram bem a pesquisa. Mas a equipe encontrou resistência a seus estudos por parte das autoridades locais, sobretudo após um documentário de 2019 intitulado “Adolf Island“ (“Ilha Adolf”, em tradução livre) ter  mostrado seus estudos sobre o campo e alegando que ainda podem haver covas coletivas não identificadas no cemitério da época da Segunda Guerra Mundial.

A imagem do campo de Sylt, obtida por aerofotogrametria em 2017, revela como restam poucas ruínas visíveis do campo acima do solo. Uma placa em homenagem póstuma (indicada com a letra “A”) foi instalada por um sobrevivente do campo em 2008.

Foto de Centre of Archaeology, Staffordshire University, Antiquity Publications Ltd.

Um campo esquecido

Após a derrota da França para os nazistas em junho de 1940, o governo britânico decidiu que seria muito difícil defender seus territórios autônomos nas Ilhas do Canal, o arquipélago entre a França e a Inglaterra. Embora muitos civis tenham permanecido em Jersey e Guernsey, as maiores ilhas do Canal, quase todos os moradores de Alderney foram evacuados. Os alemães não encontraram resistência ao chegar à ilha de quase oito quilômetros quadrados em julho.

Ocupadas, as Ilhas do Canal integravam o sistema de defesa costeira nazista chamado de “Muralha do Atlântico”, que contornava a orla ocidental da Europa. Para construir as fortificações de Alderney, a Organização Todt, grupo de engenharia nazista, instituiu vários campos de trabalhos forçados e trabalho escravo na ilha. A maioria dos prisioneiros nos campos era proveniente da Ucrânia, Polônia, Rússia e outros territórios soviéticos, mas também havia um contingente significativo de judeus franceses. Em março de 1943, o Lager Sylt — já nessa época o campo de trabalho mais temido de Alderney — tornou-se um campo de concentração dirigido pela “Unidade da Caveira” da divisão paramilitar da SS.

Moradores de Alderney, evacuados durante a guerra, são recebidos de volta à ilha pelas tropas britânicas em 1946.

Foto de Francis Reiss, Picture Post/Hulton Archive/Getty

Após a guerra, quando os moradores originais retornaram a Alderney e começaram a reconstruir suas vidas, os militares britânicos investigaram os campos abandonados e parcialmente demolidos. Os investigadores mapearam o que restava do Lager Sylt e registraram relatos de testemunhas sobre ataques de cães, espancamentos e tiros. Descobriram que, quando um prisioneiro morria, o médico do campo normalmente era impedido de ver o corpo e obrigado a assinar atestados de óbito previamente impressos, geralmente indicando a causa da morte como “má circulação” ou “insuficiência cardíaca”. Em um cemitério na ilha, os investigadores encontraram um caixão com fundo falso.

Outros depoimentos de prisioneiros nas décadas seguintes ajudaram a demonstrar o tratamento desumano sofrido pelos prisioneiros. Francisco Font, da segunda República Espanhola e trabalhador forçado em um dos outros campos de Alderney, lembra-se de que, uma vez, ao trabalhar perto de Sylt, viu um homem enforcado no portão principal. “Em seu peito, havia uma placa que dizia: ‘por ter roubado pão’”, afirma Font em uma gravação mantida em um arquivo em Jersey. “Seu corpo ficou pendurado assim por quatro dias.”

Embora os nazistas geralmente já alimentassem seus prisioneiros com o mínimo necessário, quando o mar agitado impedia as entregas regulares às Ilhas do Canal, até mesmo esses escassos alimentos poderiam ficar ainda mais reduzidos, afirma o historiador Paul Sanders. Devido à combinação de escassez e corrupção entre os oficiais da SS, “ainda menos alimentos chegavam aos prisioneiros do que em outras regiões da Europa ocupada”, afirma Sanders, autor de The British Channel Islands Under German Occupation 1940-45 (“Ilhas do Canal da Mancha sob ocupação alemã entre 1940 e 1945”, em tradução livre). A inexistência de testemunhas civis agravava essa “infinidade de condições particularmente letais” em Alderney.

“Faz diferença se os criminosos estão sendo vigiados pela população civil”, conta Sanders. “O fato de não haver civis observando o que ocorria em Alderney levou a um ambiente profundamente mais brutal”.

Ao unir fotos em um modelo 3D, os arqueólogos visualizaram um túnel que ligava o terreno do campo de Sylt à casa de seu comandante nazista.

Foto de Centre of Archaeology, Staffordshire University, Antiquity Publications Ltd.

Redescobrindo Sylt

No novo estudo, Sturdy Colls e sua equipe encontraram evidências físicas que confirmam relatos de testemunhas sobre as condições hostis em Sylt. Eles mapearam as depressões rasas remanescentes no quartel do campo, confirmando relatos de testemunhas sobre a superlotação; cada prisioneiro teria menos de 1,5 metro quadrado de espaço no máximo. Durante a remoção da vegetação do local, foram encontrados os banheiros dos prisioneiros. A equipe gerou imagens em realidade virtual para obter uma visão melhor de suas características (como um túnel subterrâneo entre a casa do comandante e o campo), difíceis de enxergar no local devido à iluminação precária.

Com o uso de imagens aéreas históricas, os pesquisadores também analisaram o aumento drástico das dimensões e das medidas de segurança do Lager Sylt após ter sido transformado de um campo de trabalhos forçados em um campo de concentração em 1943.

Por exemplo, a SS se empenhou em equipar o Lager Sylt com imponentes cercas e torres de vigilância, o que certamente produziu um profundo efeito psicológico nos reclusos.

“De certa forma, nada disso era necessário porque a instalação se localizava no canto de uma pequena ilha cercada por campos minados”, afirma Sturdy Colls. “Não era possível fugir para nenhum lugar”.

Recordando Sylt

Ainda é assunto de debate como o legado do Lager Sylt e Alderney sob a ocupação nazista deve ser apresentado. Um dos poucos elementos amplamente visíveis que permanecem no campo é o portão principal que está marcado hoje apenas com uma pequena placa, colocada em uma cerimônia em 2008 a pedido de ex-prisioneiros.

Até agora, as propostas de escavação no Lager Sylt foram todas negadas, afirma Sturdy Colls, o que tornou ainda mais importante o estudo forense e sem escavações de sua equipe.

“Não somos os primeiros a descobrir a existência desse campo — mas, apesar de todos esses depoimentos e de todas as iniciativas anteriores, a história do local ainda era desconhecida”, afirma Sturdy Colls.

“O estudo que fizemos foi com o objetivo de ajudar na divulgação das histórias daqueles que tanto sofreram.”

“A meu ver, o artigo contribuirá para ajudar a ilha de Alderney a conhecer a extensão das ruínas restantes do Lager Sylt e, portanto, ajudará a repensar como utilizar o campo em estratégias futuras do patrimônio histórico da ilha”, afirma Gillian Carr, arqueóloga da Universidade de Cambridge. Carr estudou a ocupação das Ilhas do Canal, mas não participou desse último estudo.

No fim de 2017, o governo de Alderney declarou formalmente Lager Sylt como patrimônio histórico, impedindo o avanço da urbanização no local. Graham McKinley, parlamentar eleito (legislador) dos Estados de Alderney, afirma que gostaria que a região do Lager Sylt ficasse mais acessível a visitantes. Ele está tentando restabelecer um comitê de patrimônio histórico que analisaria o potencial do local para ser estudado, preservado e transformado em memorial.

“Ainda há um pequeno número de pessoas que gostariam de deixar o passado para trás, sem muita investigação”, afirma McKinley. “Acredito que deveríamos fazer muito mais para mostrar ao mundo o que de fato aconteceu aqui”.

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