Fósseis de pegadas revelam detalhes incríveis de uma caminhada realizada há 10 mil anos
Um viajante pré-histórico carregou uma criança por uma trilha úmida e retornou algumas horas depois com as mãos vazias.
Mais de 10 mil anos atrás, uma mulher ou um homem jovem carregou uma criança por uma trilha úmida na região do atual Parque Nacional de White Sands, no estado do Novo México, Estados Unidos. Suas pegadas oferecem aos cientistas modernos um vislumbre do passado.
MAIS DE 10 mil anos atrás, uma mulher ou um homem jovem — com uma criança equilibrada no quadril — dirigiu-se apressadamente para o norte no atual Parque Nacional de White Sands, no Novo México. A chuva pode ter molhado o rosto do viajante e seus pés descalços escorregaram no chão úmido. Foi feita uma breve pausa colocando a criança no chão antes de prosseguir. Um mamute-lanoso e uma preguiça-gigante passaram logo em seguida pela mesma trilha. Várias horas depois, o viajante retornou pelo mesmo caminho no sentido sul, desta vez, de mãos vazias.
Agora, uma equipe de cientistas documentou quase 1,5 quilômetro de pegadas fossilizadas deixadas durante a ida e a volta da empreitada: o mais longo rastro de pegadas humanas desse período já encontrado. “Nunca vi nada parecido”, afirma Kevin Hatala, biólogo evolucionário da Universidade Chatham, que não integrou a equipe do estudo.
O rastro contém mais de 400 pegadas humanas, incluindo várias pequenas pegadas de criança, como descrito em um novo estudo publicado na revista científica Quaternary Science Reviews. Com a análise do formato, estrutura e distribuição das pegadas, a equipe de pesquisa obteve um retrato detalhado da caminhada de uma pessoa primitiva pelo local, incluindo até as marcas deixadas pelos dedos dos pés ao escorregar.
A equipe também encontrou rastros de um mamute e de uma preguiça-gigante que atravessaram a região após a passagem dos humanos. O mamute pareceu alheio à possível proximidade com os humanos, mas a preguiça-gigante provavelmente os percebeu. Os rastros sugerem que recuou apoiando-se somente em duas patas, possivelmente para farejar a presença humana, semelhante ao comportamento dos ursos atuais.
“Isso nos fornece uma noção da interação dos humanos com seu antigo ecossistema”, afirma Sally Reynolds, autora do estudo, paleontóloga da Universidade de Bournemouth. Ela se refere à aparente atenção da preguiça à proximidade com humanos. “É um conhecimento impossível de obter a partir de ossos.”
Pegadas fantasmas
As pegadas fossilizadas foram uma dádiva aos cientistas, preservando retratos impressionantes de comportamentos primitivos que não poderiam ser obtidos a partir de outros restos mortais. “Fósseis obviamente são a base da compreensão da vida primitiva”, afirma William Harcourt-Smith, paleoantropólogo da Universidade da Cidade de Nova York, que não integrou a equipe do estudo. “Mas sítios arqueológicos com pegadas são especiais porque retratam um momento congelado no tempo.”
As pegadas recém-descobertas fazem parte de uma iniciativa contínua para documentar o patrimônio de pegadas primitivas no Parque Nacional de White Sands — um projeto possível graças às atentas observações de David Bustos, gerente do programa de recursos do parque. As marcas rasas são difíceis de notar e se revelam apenas com pequenas alterações na umidade, que produzem discretas mudanças na coloração.
“Ele sempre notava pegadas fantasmas que surgiam”, afirma Reynolds em referência às observações de Bustos.
Em 2016, Bustos perguntou a uma série de especialistas sobre as pegadas, inclusive a Matthew Bennett, autor principal do novo estudo, geólogo da Universidade de Bournemouth, na Inglaterra. Bennett e seus colegas já haviam visitado inúmeras vezes White Sands, documentando o conjunto de pegadas — humanas e de animais — em cada trecho do parque.
Cientistas escavam cuidadosamente as pegadas antigas deixadas na areia antes de registrá-las em três dimensões. As estruturas são extremamente delicadas e quebradiças quando expostas.
As pegadas do novo estudo foram deixadas em areia fina e uma delgada crosta de sal é tudo o que as conserva intactas em seu formato, conta Reynolds. A equipe escavou cuidadosamente 140 das pegadas, utilizando um pincel para expor as estruturas delicadas. No entanto as frágeis formações rapidamente se desmancham após serem expostas, então a equipe registrou cada pegada com uma série de fotografias para construir um modelo tridimensional, uma técnica conhecida como fotogrametria 3D.
“Assim que são expostas, corremos para registrar as pegadas antes que (...) simplesmente se desintegrem”, afirma Reynolds.
Pegadas menores
Ao estudar o formato, o tamanho e a distribuição das pegadas, os pesquisadores tentaram entender os acontecimentos durante a antiga caminhada pelo chão úmido. O principal responsável pelas pegadas pode ter sido uma mulher com 12 anos ou mais, ou talvez um homem jovem, com base nas comparações dos comprimentos das pegadas antigas com medidas de humanos modernos. Em ao menos três pontos ao longo do caminho, pequenas pegadas se juntaram às pegadas principais, evidência da presença de uma criança com menos de três anos de idade.
O espaçamento das pegadas sugere que a pessoa andava a cerca de seis quilômetros por hora. Embora não chegasse a ser uma corrida, seria um ritmo apressado considerando as condições de umidade e a carga pesada, observa Hatala.
Em alguns pontos, os passos do viajante foram extraordinariamente longos, como se estivessem pulando ou pisando em um obstáculo. “Podem ter sido poças”, supôs Reynolds. “Podem ter sido ainda excrementos de mamute ainda frescos.”
A criança, entretanto, foi carregada de um lado só. Durante o percurso para o norte, as pegadas do pé esquerdo são discretamente maiores, possivelmente o resultado de carregar a criança apoiada no quadril. Entre as pegadas no sentido norte, há também evidências de que os dedos escorregaram na superfície úmida e de que o pé se arrastou deixando uma marca em formato de banana. Contudo, no retorno ao sul, não é observada essa diferença no tamanho das pegadas e há muito muito menos escorregamentos, sugerindo que o viajante não carregava nada.
De acordo com sugestões anteriores de pesquisadores, as diferenças entre pegadas do pé direito e do pé esquerdo podem indicar que algo foi carregado, mas, geralmente, são mera especulação. O novo estudo apresenta um pouco mais de evidências: “nesse caso específico, são observadas pegadas de criança no meio do caminho”, afirma Hatala.
As pegadas de animais ajudaram a equipe a estimar o período em que ocorreu a caminhada. Após o percurso para o norte, o mamute e a preguiça-gigante atravessaram o rastro de pegadas recentes, enquanto as pegadas da pessoa no sentido sul passaram sobre as pegadas dos animais. Essa sobreposição demonstra que todas as pegadas foram deixadas dentro do intervalo de poucas horas antes da secagem completa do chão. A presença dessas criaturas extintas ao lado de humanos sugere que a antiga empreitada ocorreu há pelo menos 10 mil anos.
‘Assim como nós’
Em 2017, Reynolds, casada com Bennett, estava grávida quando Bennett lhe contou sobre o longo rastro de pegadas. “Ele estava eufórico”, lembra ela. Todos ficaram especialmente impressionados com a criança primitiva transportada durante a caminhada. “Foi tão inesperado encontrar as pegadas menores”, conta ela. O casal apelidou as pegadas de “Trilha de Zoe”, o nome que planejavam dar à filha.
Ainda permanecem desconhecidas muitas informações sobre o antigo aventureiro. Para onde ia? Qual era o propósito da caminhada? O que aconteceu com a criança?
Segundo Reynolds, o viajante parecia conhecer bem a rota, talvez estivesse indo para o acampamento de outra família ou grupo de caça. “O dono das pegadas não demonstrou hesitação nem se perdeu”, explica ela. Mas o destino de seu percurso permanece desconhecido, já que as pegadas se dirigiam ao atual Campo de Testes de Mísseis de White Sands, inacessível aos pesquisadores.
O comportamento registrado na trilha talvez não seja surpreendente, afirma Harcourt-Smith. É normal humanos carregarem crianças: “o comportamento está presente em todas as culturas e até mesmo em nossos primos macacos”, diz ele. Mas, ao mesmo tempo, é algo com que nos identificamos.
“É um lembrete de que essas pessoas antigas eram como nós”, afirma ele. “Talvez houvesse outras dificuldades no dia a dia — não existem atualmente mamutes andando por aí — mas essas pessoas circulavam pela paisagem da mesma maneira que nós.”
A equipe de pesquisa continua seus estudos no Parque Nacional de White Sands, juntando as peças para formar um retrato repleto de nuances dos antigos moradores da região. “São breves momentos da vida antiga, de comportamentos de outros animais e paisagens a que nunca imaginamos ter acesso”, afirma Reynolds. Com o tempo, mais informações — e certamente mais mistérios — serão desvendados.