Por que praticamos rituais? Doenças e perigos podem ter originado tais comportamentos

Embora as origens de muitos rituais permaneçam desconhecidas, novas pesquisas sugerem que desenvolvemos tais práticas sociais para afastar ou enfrentar ameaças comuns.

Por Tim Vernimmen
Publicado 16 de jan. de 2021, 08:00 BRT
Celebrado atualmente em regiões da Índia, Nepal e outros países, o Chhath Puja é um antigo ...

Celebrado atualmente em regiões da Índia, Nepal e outros países, o Chhath Puja é um antigo festival védico hindu dedicado a Surya, o deus do sol. Durante o festival, são realizados diversos rituais, como tomar banho em água benta, jejuar e se abster de beber, assim como ficar em pé na água por ao menos uma hora para pedir proteção para suas famílias.

Foto de Diana Bagnoli, Laif, Redux

No início deste mês, pessoas de todo o mundo participaram de uma das maiores celebrações ritualizadas da humanidade. Para comemorar outra volta ao redor do sol, as festividades de Ano-Novo incluíram fogos de artifício, beijos e resoluções, além de algumas práticas exclusivas de cada cultura, como cozinhar feijão-fradinho e verduras no sudeste dos Estados Unidoscomer uma uva para cada badalada do relógio à meia-noite na Espanha ou queimar efígies que representam o ano anterior na América Central e do Sul.

Todas as culturas humanas possuem rituais — comportamentos normalmente repetitivos e simbólicos adotados intencionalmente, embora em geral não saibamos de que forma funcionam. Esses rituais podem reforçar um senso de comunhão e crenças comuns, mas sua diversidade desconcertante também pode alienar e separar as pessoas, sobretudo quando os rituais valorizados de uma cultura parecem bizarros à outra.

A maioria dos cientistas que estudam rituais considera suas origens misteriosas uma de suas características definidoras. Mas recentemente, pesquisadores começaram a suspeitar que antes de os rituais terem se tornado puramente sociais e extremamente peculiares, muitos podem ter começado como tentativas de evitar desastres.

A ritualização pode ter ajudado as culturas humanas a preservarem comportamentos que se acreditava que manteriam as pessoas em segurança, até mesmo depois de haverem esquecido o motivo original de um comportamento, segundo os autores de uma série de artigos recentemente publicados em uma edição especial do periódico Philosophical Transactions of the Royal Society B.

Formas ritualizadas de preparar alimentos ou limpar o corpo, por exemplo, podem ter surgido na tentativa de evitar doenças. Muitos rituais também proporcionam conforto psicológico em momentos de dificuldade e, depois de se tornarem uma prática comum, ajudam a unir as pessoas ao reforçar um senso de comunhão.

Agora, em meio à pandemia de covid-19, os humanos voltaram a adotar novos comportamentos em resposta a uma ameaça, embora seja cedo demais para afirmar se algum desses comportamentos será de fato transformado em ritual. Segundo Mark Nielsen, psicólogo da Universidade de Queensland, na Austrália, por definição só se considera um ritual caso o significado social do comportamento prevaleça sobre seu uso prático a fim de evitar doenças ou desastres. É esse ponto que os diferencia de outras práticas culturais, como cozinhar.

“Quando aprendemos a cozinhar um determinado prato, costumamos seguir uma receita, mas depois de executá-la diversas vezes, passamos a fazer do nosso jeito”, explica ele. Esse tipo de personalização não costuma ocorrer com práticas ritualizadas, esclarece ele, que são repetidas com muito cuidado até que, em um determinado momento, “perdem o valor funcional e passam a ser seguidas por seu valor social”.

O conforto da rotina

Em regiões onde desastres naturais e doenças são comuns e a ameaça de violência e doenças é alta, as sociedades costumam ser “mais rígidas”, o que significa que possuem normas sociais mais rigorosas e menor tolerância a comportamentos que se desviem das regras, afirma Michele Gelfand, psicóloga da Universidade de Maryland. Também tendem a ser mais religiosas e a conferir grande prioridade a comportamentos ritualizados.

A pesquisa de Gelfand constatou que as atitudes em relação à submissão social se alteram quando há uma exposição a ameaças ou até mesmo uma percepção de perigo. Quando o filme Contágio — que retrata uma história fictícia de uma pandemia mundial — chegou aos cinemas em 2011, Gelfand e colegas conduziram um estudo por meio de um questionário que concluiu que as pessoas que saíram do cinema sentiram mais hostilidade em relação a quem não seguia as normas sociais.

Quando agimos em sincronia ou de forma previsível, como geralmente se exige nos rituais, obtemos uma sensação reconfortante de união. E, diante do perigo, a cooperação coletiva pode ser uma questão de vida ou morte.

“A cultura do exército é um ótimo exemplo”, observa Gelfand. A ação sincronizada em grupo por parte das unidades militares em todo o mundo as prepara para agir coordenadamente em situações perigosas.

Rituais também podem ajudar na superação de outros tipos de medo e ansiedade. Martin Lang da Universidade Masaryk, na República Tcheca, acredita que a previsibilidade dos rituais os torna inerentemente reconfortantes. Sua equipe constatou, por exemplo, que mulheres das ilhas Maurício se sentiam menos ansiosas ao discursarem em público após realizarem um ritual de oração repetitiva em um templo hindu.

A humanidade dos rituais

Alguns fenômenos que lembram, superficialmente, rituais foram observados em outros primatas, segundo Carel van Schaik, primatólogo da Universidade de Zurique, na Suíça, que estudou a evolução da cultura dos orangotangos. Como todos os animais, os primatas nascem com instintos que os ajudam a evitar perigos e doenças, e podem aprender a prevenir riscos após uma experiência ruim ou por meio da observação de outros em seu grupo.

No entanto os pesquisadores não encontraram evidências de que primatas não humanos participem de rituais de fato, ressalta van Schaik. “Esses só surgiram na mente cultural humana, evoluída no ambiente incomum criado por nós, humanos.”

Van Schaik acredita que muitos rituais sociais tenham surgido quando passamos a viver em grupos cada vez maiores, sobretudo depois que a agricultura permitiu que populações maiores se fixassem em um único local. Segundo ele, “essa mudança decisiva nos expôs a todos os tipos de violência, desastres e doenças, como conflitos internos de grupos, guerras entre grupos e doenças infecciosas, que passaram a ser transmitidas rapidamente por aldeias inteiras”.

Para evitar catástrofes como essas, explica ele, colocamos nossa mente, bastante sagaz e fantástica, para funcionar. “Devido à nossa extrema característica social, acredito que nossa tendência seria atribuir qualquer azar a algo que nos foi feito por alguém (um espírito, um demônio ou um deus), talvez após ter sido perturbado por um comportamento nosso. E, com isso, tentamos encontrar uma maneira de evitar a repetição desses desastres.”

Muitos rituais religiosos, por exemplo, se referem à higiene, à sexualidade ou ao processamento de alimentos de maneiras relacionadas ao risco de doenças, ao passo que outros se aplicam a questões de propriedade e família, que geralmente desencadeiam conflitos. Nem todos os rituais são eficazes porque nem sempre entendemos o que produz o risco que tentamos controlar. “Mas alguns são realmente eficazes”, comenta van Schaik.

Depois de surgirem em resposta a um possível risco, alguns rituais provavelmente persistem devido à sua associação contínua com a prevenção de riscos. No estado rural indiano de Bihar, por exemplo, onde a mortalidade materna e infantil permanece elevada, Cristine Legare, cientista cognitiva da Universidade do Texas em Austin, documentou 269 rituais associados à gravidez e ao nascimento. “A maioria deles é uma tentativa de evitar desfechos negativos”, conta ela.

Uma proporção significativa desses rituais perinatais, como as refeições nutritivas preparadas para a mãe durante o Chhathi, um ritual hindu praticado no sexto dia após o parto, condizem perfeitamente com as orientações médicas modernas, explica Legare. “Muitos outros provavelmente são neutros”, acrescenta ela, “ao passo que os perigosos, como dar banho no bebê logo após o nascimento ou lhe dar mamadeira com leite em pó até que um padre ou imã possa dar a bênção para o início da amamentação, são arriscados devido à falta de água limpa.”

Isso ilustra como alguns rituais prejudiciais podem se perpetuar após adquirir significado social, afirma Legare, que estuda essas práticas para descobrir como promover comportamentos saudáveis de maneira sensata em termos culturais. “É importante lembrar que, para a maioria das pessoas, os métodos da medicina moderna são tão incompreensíveis quanto os rituais.”

Embora os rituais tradicionais tenham sido transmitidos com sucesso por muitas gerações, as práticas da medicina moderna são relativamente recentes. “Quando um médico lhe diz ‘sinto muito, mas não há nada que possa ser feito’, pode ser verdade, mas é muito desanimador também”, afirma Legare. “Por isso, muitas pessoas em todo o mundo buscam outras opções.”

A evolução dos rituais

Hoje, com a pandemia de covid-19, orientações médicas práticas, como lavar as mãos, tornaram-se ritualizadas de certa forma. Especialistas em saúde nos orientam sobre como exatamente devemos esfregar as mãos e por quanto tempo, proporcionando-nos uma sensação de conforto por sabermos que, após 20 segundos, provavelmente já as lavamos o suficiente.

Outras práticas sociais — como cumprimentarmos com cotoveladas e abraços no ar — também estão se popularizando. E utilizar máscaras (ou optar por não utilizá-las) tornou-se uma forma de demonstrar lealdade a um grupo social, bem como uma forma cientificamente comprovada de reduzir o risco de transmissão de doenças. Não se sabe ao certo se, no futuro, essas práticas serão repetidas com tamanha frequência que nos faça esquecer qual foi sua origem, transformando-se em rituais verdadeiros ao longo do processo. Mas nossos esforços para entender a causa da pandemia em curso, como explicações religiosas e a ênfase na exposição humana a doenças ao destruir a natureza, apresentam paralelos com a busca de nossos ancestrais para descobrir o que haviam feito para merecerem um desastre.

Felizmente, segundo Gelfand, nossa busca fundamentalmente humana pela compreensão também levou a estudos científicos, deixando-nos em uma situação melhor do que nunca para evitarmos futuras catástrofes. “Quando as pessoas de todo o mundo refletirem sobre isso, poderemos de fato aprender algo”, afirma Gelfand.

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