A brutal história das Olimpíadas Populares de 1936: um boicote ao fascismo e a Hitler

Atletas passaram a empunhar armas quando os jogos alternativos em protesto contra as Olimpíadas na Alemanha nazista foram tomados pela guerra.

Por James Stout
Publicado 23 de jul. de 2021, 07:00 BRT

Representações de atletas de diferentes etnias segurando uma bandeira das Olimpíadas Populares, que aconteceriam em Barcelona, no ano de 1936, como um protesto antifascista contra os jogos oficiais na Alemanha nazista.

Foto de Photograph, via Photo12, Universal Images Group, Getty

Em 3 de julho de 1936, um mês antes do que viria a ser conhecido como as Olimpíadas nazistas em Berlim, um grupo de atletas norte-americanos embarcou em um navio rumo à Europa. A equipe dos Estados Unidos contava com velocistas negros do Harlem, ginastas judeus de Manhattan e um boxeador mestiço de Pittsburgh. Seu treinador era Abraham Alfred “Chick” Chakin, imigrante cuja família havia fugido de pogroms (violência e perseguição étnicas) na Rússia.

Chakin, aposentado da luta livre, voltou à ativa para liderar os atletas, mas eles não estavam indo participar dos jogos oficiais na Alemanha. Seu destino era a Espanha, para a inauguração das Olimpíadas Populares, que prometiam ser “o maior espetáculo antifascista já visto”. 

Embora as Olimpíadas de 1936 sejam lembradas pelos jogos em que o velocista negro norte-americano Jesse Owens minou a ideologia racista nazista ao ganhar o maior número de medalhas de ouro, os atletas das Olimpíadas Populares esperavam que seus jogos demonstrassem a força do movimento antifascista. Eles rapidamente descobriram que a luta contra o fascismo seria muito mais brutal do que esperavam.

As Olimpíadas Populares, com abertura marcada para 19 de julho de 1936, surgiram do movimento global de boicote ao evento na Alemanha, a primeira tentativa de boicote desse tipo na história olímpica. Mas essa não foi a primeira vez que as Olimpíadas foram comprometidas por eventos mundiais. Os jogos olímpicos haviam sido cancelados em 1916 durante a Primeira Guerra Mundial. Posteriormente, seriam cancelados outra vez durante a Segunda Guerra Mundial e adiados em 2020 devido à pandemia de covid-19.

Em meados do ano de 1936, muitas pessoas não podiam mais ignorar o que estava ocorrendo na Alemanha: Hitler havia remilitarizado a Renânia em violação ao tratado de Versalhes que encerrara a Primeira Guerra Mundial e havia começado a perseguir judeus, ciganos, esquerdistas, homens considerados homossexuais e pessoas com deficiência e enviá-los para campos de concentração.

As Olimpíadas de 1936 em Berlim foram um golpe propagandístico para os nazistas. Durante a cerimônia de abertura, a tocha olímpica passou pela Juventude Hitlerista enfileirada.

Foto de Photograph, via Getty

Ainda assim, a campanha de boicote não conseguiu convencer os países a não enviar seus atletas para o evento. A Conferência Internacional para o Respeito do Ideal Olímpico, realizada em abril em Paris, apresentou outro plano — um evento alternativo que apresentaria a Frente Popular, a ampla aliança de esquerdistas, liberais, comunistas e socialistas que haviam se unido para impedir a propagação do fascismo.

O governo catalão em Barcelona se ofereceu para sediar, embora a Espanha estivesse em uma espiral a caminho do conflito. No início daquele ano, os governos da Frente Popular haviam sido eleitos em Barcelona e Madri — um chamado às armas para monarquistas, fascistas, extremistas católicos e proprietários de terras da direita. No entanto, cerca de 20 mil atletas e torcedores antifascistas decidiram participar dos jogos oficiais.

Alternativas às Olimpíadas não eram uma novidade. A Olimpíada Internacional dos Trabalhadores era realizada a cada quatro anos desde 1921 para se opor à vertente aristocrática identificada nos jogos olímpicos oficiais, mas a iniciativa socialista excluiu anarquistas e outros membros da Frente Popular. As Macabíadas tiveram início em 1932 e continuam sendo realizadas até hoje, mas essa competição era principalmente para atletas judeus e, posteriormente, israelenses.

Era para as Olimpíadas Populares ser diferente, principalmente dos eventos oficiais em Berlim. Durante a cerimônia de abertura, judeus exilados da Europa e povos colonizados do Norte da África entrariam no estádio com times representando Estados-nação e nações sem Estado, ao som de uma canção composta por um judeu exilado de origem alemã, cuja letra fora escrita por um poeta catalão. A torcida seria proveniente de 21 países e o primeiro evento atlético dos jogos deveria ser o revezamento 10x100m, uma corrida de revezamento com 10 pessoas concebida para recompensar as nações por elevarem a aptidão de seus trabalhadores, em vez de celebrar o talento individual.

As mulheres também competiriam, com mais oportunidades para demonstrar suas habilidades do que o permitido pelo Comitê Olímpico Internacional em Berlim. “O quadro das Olimpíadas dos Povos não estaria completo se as mulheres não ocupassem seu devido lugar”, proclamaram os organizadores, entre eles o Clube Desportivo Feminista Catalão.

As Olimpíadas Populares, planejadas em apenas três meses, não poderiam oferecer o luxo dos jogos oficiais. Os atletas participantes dos jogos de Berlim ficaram instalados na recém-construída Vila Olímpica (depois das Olimpíadas, a vila abrigou a Legião Condor, unidade militar alemã que seguiria para bombardear a cidade basca de Guernica um ano depois, matando centenas de civis). Os atletas em Barcelona se hospedaram em casas, albergues e no Hotel Olympic, cujo nome fora trocado para a ocasião. Nas semanas anteriores aos jogos, as autoridades catalãs percorreram a cidade tentando encontrar desesperadamente mais opções de hospedagem devido à inesperada predileção por uma Olimpíada antifascista. Quando os jogos foram prorrogados  de quatro dias para uma semana, os cartazes já em exposição tiveram que ser atualizados um a um.

A equipe norte-americana chegou a Barcelona em 15 de julho. Eles haviam escutado boatos sobre conflitos na Espanha — sinais de um golpe de Estado — mas a velocista Dot Tucker, a única mulher da equipe, recordou-se posteriormente de que “não havia medo”. Chakin lutou em vão para manter os atletas longe dos bares e casas noturnas de Barcelona. Na noite anterior aos jogos, no entanto, eles foram dormir mais cedo.

Algumas horas depois, o velocista Frank Payton acordou com “o estrondo de canhões, milhares de tiros de metralhadoras e rifles e o som de tropas marchando”. Da janela do hotel, os atletas observaram homens e mulheres pegando paralelepípedos das ruas e enchendo sacos de areia para construir barricadas. Logo, o exército espanhol entrou marchando na cidade, com a intenção de dominar o governo catalão.

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    Combatentes da milícia republicana, que apoiavam o governo de esquerda, marcham no início da Guerra Civil Espanhola, em 1936.

    Foto de Photograph, via Universal History Archive, Universal Images Group, Getty

    Os civis nas barricadas revidaram. “Socialistas, comunistas e sindicalistas se uniram para erradicar o fascismo”, Payton declarou posteriormente em uma entrevista. “As mulheres faziam barricadas; algumas até lideraram destacamentos de trabalhadores contra os fascistas.” Muitas dessas mesmas mulheres haviam formado o Clube Esportivo Feminista, que convidava jovens mulheres catalãs para competir e lutar de igual para igual com os homens. Em uma ocasião, anarquistas catalães avançaram sobre os militares com as mãos para cima, falaram com os soldados e os convenceram a virar a artilharia contra seus próprios comandantes.

    A batalha causou uma grande impressão nos jovens norte-americanos. Charlie Burley, boxeador de Pittsburgh e campeão nacional, correu para fora com seus companheiros de equipe assim que o tiroteio parou e pegou uma pá para reforçar as barricadas. Juntaram-se a eles alemães e italianos exilados, que sabiam que a única maneira de voltar para casa seria derrotando o fascismo, primeiro na Espanha e, depois, em Berlim e Roma. Por toda a cidade, trabalhadores se muniram com armas de assalto e conseguiram conter e afastar as forças militares espanhola.

    Em poucas horas, o antifascismo passou de uma ideia a uma ação para uma vitória retumbante na capital catalã. O golpe estava sob controle, por ora, mas não haveria Olimpíadas Populares. A Guerra Civil Espanhola havia começado.

    Depois que a batalha acabou, as equipes marcharam pelas ruas cantando o hino de esquerda “A Internacional” em suas próprias línguas. Um atleta francês foi morto, o primeiro de mais de 15 mil vítimas internacionais no conflito. Muitos atletas foram embora no fim daquela semana. “Vocês vieram para os jogos e ficaram para ver a vitória da Frente Popular”, disseram os organizadores. “Divulguem para o mundo todo o que vocês presenciaram na Espanha.”

    Nem todo atleta ficaria em casa por muito tempo. Chakin se espantou com o que havia testemunhado em Barcelona. No ano seguinte, ele e sua esposa, Jennie Berman Chakin, retornaram à Espanha. Ela instaurou um programa de arte como terapia para as crianças afetadas pela guerra, enquanto ele partiu para a linha de frente, onde serviu como intendente no Batalhão Mackenzie-Papineau. Em março de 1938, Chakin foi capturado pelos nacionalistas e executado.

    Duzentos atletas que pretendiam competir nas Olimpíadas Populares lutaram ao lado dos republicanos na Espanha. A maioria deles foi morta. George Orwell, que também participou do conflito, disse certa vez que esporte era “guerra sem tiroteio”, mas para os antifascistas que foram a Barcelona para os jogos de 1936, eles realmente estavam em uma partida de vida ou morte.

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