Equipe de mergulhadores busca navios negreiros naufragados

O podcast Into the Depths, produzido em inglês pela revista National Geographic, revela a complexa história do tráfico mundial de escravizados. Veja a transcrição em português do quinto episódio, que trata do navio português São José.

Por Redação National Geographic
fotos de Wayne Lawrence
Publicado 4 de mar. de 2022, 15:24 BRT
Foto de Kamau descansando nas águas após mergulhar em Lake Phoenix

Kamau Sadiki, instrutor de mergulho da Diving With a Purpose, descansando entre as sessões de mergulho em Lake Phoenix, Rawlings, Virgínia, EUA. 9 de junho de 2021.

Foto de Wayne Lawrence

Clique para acessar todos os episódios do podcast Into the Depths, da revista National Geographic (em inglês).

Em uma jornada histórica, a exploradora da National Geographic Tara Roberts vai atrás de alguns dos milhares de navios negreiros que naufragaram no Oceano Atlântico durante o comércio transatlântico de escravos. Ela é acompanhada de um grupo de mergulhadores negros que se dedicam a encontrar e analisar as evidências deixadas pelos restos dos navios. Na nova série de podcasts Into The Dephts, a revista National Geographic, baseada em Washington D.C., nos EUA, explora a complexa realidade do comércio global de escravos e as histórias dos cerca de 12,5 milhões de africanos forçados a fazer a travessia. 

Neste episódio, Tara começa a entender o poder curativo que mergulhar em busca de naufrágios de navios negreiros pode ter. Depois de descobrir uma cerimônia que homenageou os 212 africanos perdidos a bordo do navio português São José Paquete D’áfrica, o mergulhador Kamau Sadiki, o secretário do museu Smithsonian Lonnie Bunch III e o sul-africano Albie Sachs, símbolo da luta contra o apartheid no país, se revezam descrevendo o ritual, realizado tanto em Moçambique quanto na África do Sul. Tara convida a colega exploradora Alyea Pierce para ajudar e visualizar a desintegração de séculos do São José, que afundou na costa da Cidade do Cabo, na África do Sul, em 1794.

Embora o podcast esteja disponível apenas em inglês, disponibilizamos aqui a transcrição do episódio para ampliar o acesso desta história aos descendentes de africanos traficados que falam português.

Into The Depths: Episódio 5

 

Tara Roberts (apresentadora): Em 27 de dezembro de 1794, o navio português São José naufraga perto da costa da Cidade do Cabo, na África do Sul.

Ele leva provavelmente umas três horas para chegar até o fundo do oceano.

Passa um dia.

Alyea Pierce (poeta): E o frio das águas deixa o navio sem ar. A areia ainda se assenta depois do forte estrondo. A correnteza rasga o tecido das velas e arrasta as cordas esfarrapadas pelas encostas submarinas.

Roberts: Passa um mês.

Pierce: O São José é colonizado pelo mar. A força das ondas leva e traz o corpo machucado do navio como numa dança. Os animais marinhos se escondem em suas tocas e se perguntam: ‘O que é isso? Como chegou até aqui?’

Roberts: Passa um ano.

Pierce: Uma floresta de algas pardas se contorce ao redor do lastro de ferro corroído. As fixações e o revestimento de cobre enferrujam.

Roberts: Um século.

Pierce: Mais de 300 toneladas de embarcação, agora ossos incrustados em corais, são apenas fragmentos que nos lembram do banquete do mar.

Roberts: Duzentos anos.

Pierce: Uma janela ao passado. Réplicas da memória revestidas de rochas e tempo. Criaturas marinhas relaxam enquanto esse fóssil, invisível a olhos inexperientes, torna-se casa.

Roberts: Até ser descoberto por mergulhadores e depois verificado.

Kamau Sadiki (mergulhador): Estava incrustado. Estava completamente grudado no material, mas a forma... tinha uma volta, uma haste e outro volta.

Roberts: Kamau Sadiki, da Diving with a Purpose.

Sadiki: E sim, eram algemas...

Roberts: Sabe, é difícil ouvir sobre, falar sobre, e até trabalhar com esses navios.

Sadiki: Era como se eu pudesse ouvir os gritos, a dor e o sofrimento que aquelas pessoas devem ter vivenciado. E a agonia de estarem algemadas a um navio que naufragava, que vai afundando e se despedaçando no mar.

Roberts: A dor deve ser impossível de suportar.

Sadiki: Sabe, quando mergulhamos, usamos uma máscara e às vezes ela fica embaçada. Mas, no meu caso, ela ficou molhada de lágrimas. Eu simplesmente não consegui segurar. Então, fiz o seguinte: coloquei um pouco de água dentro, lavei, abri a máscara e deixei as lágrimas irem embora.

Roberts: Mas Lonnie Bunch, secretário do Instituto Smithsonian, se você se lembra, disse que precisávamos olhar de novo.

Lonnie Bunch III (historiador): Você não encontra reparação e reconciliação sem encontrar o verdadeiro passado, sem uma compreensão sem verniz de quem somos.

Roberts: E qual é a verdade sem verniz quando falamos do comércio de escravos? Como podemos contar a verdade sobre esse momento doloroso e traumático sem nos traumatizar nem traumatizar os outros?

Durante os últimos quatro episódios, tentamos fazer isso com cuidado.

Compartilhei com vocês os naufrágios de quatro navios que traficavam africanos às Américas: o Henrietta Marie, o Guerrero, o Fredericus Quartus e o Christianius Quintus.

Cerca de 250 almas perdidas.

Falei muito sobre os ataques, a navegação, os naufrágios, a dor, até sobre a maravilha de encontrar artefatos debaixo d´água.

Mas agora a minha pergunta é mais uma questão de coração e alma – tanto em relação à forma de fazer este podcast, de mergulhar nesses navios, de escolher que livros ler, que filmes ver ou que notícias acompanhar: de que maneira interagimos com as histórias sobre o comércio de escravos e como podemos nos cuidar?

Tive algumas respostas neste episódio por meio da história do São José Paquete d’África. O São José viajou de Lisboa, Portugal, até a Ilha de Moçambique.

Lá, os traficantes carregaram mais de 400 pessoas, provavelmente do grupo étnico Makua, no porão do navio.

A embarcação se dirigia ao Brasil, mas encontrou seu destino final na Cidade do Cabo, na África do Sul, matando cerca de metade das pessoas a bordo.

A história poderia ter terminado aí, em tragédia. Mas um grupo de historiadores, arqueólogos, mergulhadores e descendentes se uniu para superar o trauma e trazer reparação à comunidade.

Essa é uma lição de cuidado coletivo da alma.

Beleza, eu sou Tara Roberts, e este é o episódio cinco de Into The Depths. Com vocês, logo após o intervalo.

[Sadiki falando com outros mergulhadores: “OK. Viu aquilo? OK. Se você descer do barco e for por aqui, você vai chegar até a base…”]

Roberts: Primeiro, vamos conhecer oficialmente um dos meus mentores de mergulho ao longo de toda esta jornada.

[Sadiki falando alto: “Todo mundo pronto? Estamos registrando? OK, um último comentário...”]

Roberts: Kamau Sadiki. Foi ele que vocês escutaram antes. Alto, magro e vigoroso, com um cabelo afro como o irmão do soul dos anos 1970 que eu sei que ele foi. Ele é um engenheiro aposentado, piloto, professor de ioga e pai.

Sadiki: Meu nome completo é Kamau Beyeti Anon Sadiki. Beyeti significa “alguém que existe entre Deus e a humanidade”. Sadiki quer dizer “confiável e leal”.

Roberts: Kamau é instrutor líder de mergulho da organização Diving With a Purpose há aproximadamente dez anos. E ele não tem nenhum medo de encarar esta história de cabeça.

Sadiki: Quero que superemos a vergonha e o silêncio. E a única forma de fazer isso é através de um profundo envolvimento com a história. Devemos ser capazes de contar a história sob a nossa perspectiva, não com base em suposições e especulações, mas realmente nos envolvendo com os dados e criando uma narrativa para que as pessoas entendam a verdadeira essência de tudo isso.

Roberts: Há alguns anos, Kamau trabalhou no projeto Slave Wrecks para identificar o São José.

Agora, o projeto Slave Wrecks, ou SWP, é uma linda rede internacional de organizações colaboradoras cuja missão é ajudar a descobrir e documentar naufrágios de navios negreiros. Ele é administrado pelo Blacksonian, o Museu Nacional de História e Cultura Afro-americana, que foi dirigido por Lonnie Bunch. E a Diving With a Purpose é uma instituição parceira.

O SWP tinha a missão de confirmar a identidade do São José. A pesquisa sugeria que o navio poderia estar localizado na praia de Clifton, na Cidade do Cabo, mas faltavam evidências.

Kamau era um dos mergulhadores da equipe. O dia do mergulho estava tranquilo, mas a água estava fria.

Sadiki: A água estava a uma temperatura de cerca de 7ºC. Além de a água estar fria, havia muita ondulação, ou seja, a água se movia para frente e para trás. Eram ondas de entre três a quatro metros e meio, que nos levavam para a frente e para trás. E cada vez que passa uma onda desse tipo, ela levanta a areia branca do fundo.

E também havia algas pardas. Existe tipo uma floresta de algas lá. Estávamos mergulhando nessas condições, sendo jogados contra as rochas, tentando manter a draga firme.

Muito material do naufrágio ficou preso no rochedo, depois se assentou e ficou travado entre as rochas, e a areia foi se depositando em cima disso tudo.

Também tínhamos alguns indícios magnéticos, que estávamos checando. Usávamos o magnetômetro para saber se havia grandes quantidades de metal lá embaixo.

Roberts: Eles encontraram algemas, encontraram pedras de lastro e encontraram a prova cabal: madeira.

Eles testaram as amostras e concluíram que aquela madeira no fundo do mar era de um tipo raro que se encontrava somente em certos lugares do interior de Moçambique. Essa análise levou a equipe de volta para os arquivos, para uma pesquisa arqueológica mais terrestre, que apontava ao povo Makua e à Ilha de Moçambique.

Essa e outras descobertas permitiram identificar o navio e as pessoas em seu porão. Missão cumprida.

A equipe decidiu compartilhar a notícia com os descendentes na Ilha de Moçambique.

Uma pequena ilha no norte de Moçambique, com apenas 3 quilômetros de comprimento e menos de 400 metros de largura. Ela foi a capital colonial de Moçambique entre os séculos 16 e 19. Os colonizadores portugueses transformaram essa pequena ilha no centro do comércio de escravos em Moçambique, com centenas de milhares de africanos traficados.

Bunch: Quando soube que se tratava do povo Makua em Moçambique, eu senti uma obrigação muito forte de ir até Moçambique, que é um lugar inacreditavelmente lindo.

Isso me fez pensar imediatamente no contraste entre a beleza ao meu redor e o que foi a escravidão.

Eu me encontrei com o cacique do povo Makua.

Roberts: Senhor Evano Nhogache, o líder Makua de maior hierarquia aqui.

A equipe do SWP deu a notícia ao líder e aos membros da etnia Makua e mostrou as evidências do São José.

Bunch: Fui apresentado a uma mulher, que tinha provavelmente uns 35 anos. Ela falou sobre um antepassado que estava no São José e tinha desaparecido. E falou sobre como sua família se lembrava dele todos os dias. E eu entendi que aquilo tinha a ver tanto com o presente e o futuro, quanto com o passado.

Bunch: Quando falaram para eu me levantar e ficar ao lado do líder, ele olhou para mim e disse que seus antepassados tinham pedido – não, ele disse, que eles tinham implorado – que eu fizesse um favor. E falou: ‘Temos este presente para você’.

Sadiki: Ele pegou um pouco de terra da comunidade e uma espécie de cesta coberta de búzios. Então, chamou o Dr. Bunch e falou, de uma maneira muito forte, que esse era o solo da comunidade. Quero que você leve esta terra até onde o navio afundou, para que os nossos ancestrais saibam que ainda estamos aqui. De certa forma, quero que você traga essas pessoas de volta para casa.

Bunch: Então, eu estava olhando para aquela bela vasilha cravejada de búzios, de uma brancura reluzente. E quando abri, estava cheia de terra.

Lembro que pensei: ‘OK, não entendo o que é isso. Como pode ser um presente? O que os ancestrais pediram?’.

Aí ele meio que começou a chorar e disse que seus ancestrais tinham pedido que eu voltasse para a África do Sul, onde estava o navio, e espalhasse a terra no local do naufrágio para que, pela primeira vez desde 1794, aquelas pessoas pudessem dormir em seu próprio solo.

Não aguentei. Comecei a chorar. Sabe, estava tentando não derrubar a vasilha no chão. Pensando nas contradições, na beleza ao meu redor, no fato de ser historiador, mas aquilo se tratava de como as pessoas do presente pensam e sentem.

E ter aquela vasilha nas mãos era quase como se estivesse carregando um peso de ferro. Era tão pesada. Na verdade, ela não era pesada, mas parecia. E pensei: ‘Por favor, não a deixe cair. Dê a ela todo o cuidado que merece’.

Roberts: Eu viajei para a Ilha de Moçambique com Kamau e a equipe do SWP depois que tudo isso aconteceu e fui até o lugar da cerimônia. 

E conheci o senhor Nhogache e conversei com outros mergulhadores Makua, como Amade, Dinho, Samira.

Estar ali fisicamente de novo, sentir as emoções residuais, a energia que continuava existindo naquele lugar, me afetou.

Mais sobre isso depois do intervalo.

[Barulho de chuva forte]

Roberts: Lonnie e Kamau e outros membros do projeto SWP levaram a vasilha com búzios e a terra de volta para Cidade do Cabo, até o local do naufrágio na praia de Clifton.

Albie Sachs (ativista): Estava chovendo naquele dia.

Bunch: Conhecemos Albie Sachs, o grande juiz e líder, junto com Nelson Mandela, da luta pela liberdade, que escreveu a primeira constituição da África do Sul. E a casa dele tinha vista para as águas onde o São José estava.

Roberts: Albie perdeu um braço e ficou cego de um olho por causa de um carro bomba, uma retaliação por sua incansável luta contra o apartheid. O presidente Nelson Mandela o nomeou como juiz da corte suprema. E o presidente Barack Obama o premiou com uma medalha Lincoln.

Sachs: Fizemos a cerimônia na minha casa.

Bunch: Foi realmente irônico, porque essa é uma das zonas mais chiques da Cidade do Cabo. Mas isso, na verdade, era sobre dor, memória e perda. Estávamos chegando na casa do Albie e chovia a cântaros. Era inacreditável. Pareciam as monções. E estávamos literalmente ensopados, e chegamos lá, e eu estou olhando pela janela para a água.

De repente, isso me fez sentir como... Eu me perguntei se tinha sido assim no dia em que o São José afundou, que o vento estava tão forte, empurrando tanto as correntes, que tínhamos planejado sair com os barcos, mas os barcos não puderam sair. Porque a maré e o vento estavam tão fortes. Eu pensei: ‘Foi assim no dia em que o navio naufragou?’ Estávamos ali ensopados, imersos em nossas emoções.

Sachs: Foi uma cerimônia maravilhosa e muito especial.

Roberts: A maior parte do grupo ficou na varanda do Albie por causa do tempo, e somente os três mergulhadores foram até a praia: Kamau, representando os Estados Unidos; Yara, uma mergulhadora moçambicana; e Tara (não eu), uma mergulhadora e arqueóloga marinha da África do Sul.

Os três mergulhadores.

Sadiki: As ondas estavam arrebentando com muita força. Acho que eram ondas de dois e meio a três metros. Quase nos arrastaram, nos surpreenderam algumas vezes. Na arrebentação, as ondas estavam muito altas. E havia vento.

Então ficamos ali em alerta, avaliando a situação. Nós três fomos em direção à arrebentação, o mais longe possível sem sermos arrastados.

[Barulho de ondas do mar]

Caminhamos em direção à arrebentação e, quando chegamos, paramos por um instante. E eu ia... Não sei se vocês conhecem a cena da série Raízes, quando o bebê nasce e o seguram e o levantam. Sabe, aquilo tudo? Eu tinha a ideia de fazer isso, mas chegando à arrebentação, foi tão... A intensidade das emoções era tão – entre nós três.

Dava para perceber só de olhar para a cara um do outro. Não precisava dizer nada. De qualquer modo, eu estava sem palavras. Não saía nada. sabe, eu até tentei dizer alguma coisa, mas acho que aquele era um momento de silêncio, acho. Então eu simplesmente não conseguia falar.

E começaram a cair lágrimas dos olhos dos três, foi um momento muito emotivo.

Então, eu abri a cesta. E a Yara se aproximou e pegou um punhado de terra. E ela começou a espalhar essa terra. Depois a Tara fez a mesma coisa. Por último, fui eu e joguei a terra, e descemos até o fundo e depositamos o resto da terra no oceano. E ficamos ali por uns instantes. Acho que teve um momento em que apenas paramos e aproveitamos. E deixando as ondas baterem na gente e nos lavarem.

Roberts: Talvez os antepassados tenham escutado.

Sadiki: Assim que a Yara voltou para a praia, o mar se acalmou. Aliás, o tempo ruim meio que passou e o sol apareceu brilhando. Eu sei que parece oooohhhhh, mas sabe, foi assim que aconteceu. Sabe? Eu me lembro da calma do mar.

Bunch: E quando eles espalharam a terra, a chuva parou. O vento parou de soprar e o sol saiu. Foi como nos filmes. E, de repente, o dia ficou claro, iluminado. No começo, isso me deu medo. Isso dizia: ‘Não brinque com seus ancestrais’. Mas, na verdade, aquilo me mostrou o poder da memória.

Mesmo que muito provavelmente meus antepassados não tenham vindo de Moçambique, senti a dor dos meus próprios ancestrais. Senti a viagem deles pelo Atlântico.

De repente, vi um só povo, alheio a diferenças tribais, alheio a diferenças regionais. E aquele momento me permitiu sentir o que deve significar estar conectado a um lugar e ser levado à força de lá.

Sachs: Foi como liberar a nossa praia. Foi emocionante para mim.

Roberts: Foi a primeira vez em que vi realmente o poder de cura desses navios.

Eu estava começando a entender a magia sutil, silenciosa, enorme desse trabalho.

Como o Kamau enxergou tudo isso?

Sadiki: Tem me dado compreensão. Tem sido inspirador, principalmente, nos conectar diretamente com descendentes de pessoas que estavam em alguns daqueles navios. E só o fato de estar naquele espaço, onde estão aqueles navios no fundo do mar. Não foi uma gratificação apenas profissional, mas para mim, pessoalmente e espiritualmente, também foi muito reconfortante, profundo e até inspirador.

Roberts: Como você lida pessoalmente com o trauma do trabalho?

Sadiki: Temos que ir além da vergonha e do silêncio que rondam há tanto tempo esses navios e da questão do comércio transatlântico de escravos.

Imagine... Eu tenho dois filhos. Minha filha sentada na sala de aula enquanto eles falam sobre a escravidão. E ela não tem consciência nem contexto para comentar aquilo, certo? Mas e se ela soubesse que houve resistência... Sabe... Que aquelas pessoas eram seres humanos... Havia pessoas incríveis naqueles navios cujas vidas foram interrompidas, famílias foram destruídas, estirpes foram dizimadas. Talvez, alguma daquelas pessoas poderia ter descoberto a cura do câncer.

Roberts: Para Albie…

Sachs: Estou conhecendo cientistas, conhecendo mergulhadores. Estou conhecendo pessoas de diversos países, me conectando com elas. Estou aprendendo como restaurar algo que esteve debaixo d’água durante dois séculos. A boa e velha ciência.

De certa forma, a ciência está sendo desacreditada por ser fria. E, para mim, é muito bonito ver a recuperação da crença na ciência como um instrumento de empenho, avanço, cura. Nesse caso, é cura social.

Roberts: E agora estou de volta com a minha pergunta do início. Como é possível falar sobre esse passado difícil sem provocar traumas?

Seja por meio de histórias, educação, exposições em museus.

Para o Lonnie, como gerente de museus, o essencial é...

Bunch: criar a tensão ideal entre tragédia e resiliência. Entre esperança e vitimização.

Roberts: E isso faz sentido. Equilíbrio.

Os navios em si e as cerimônias e rituais relacionados a eles também nos dão uma oportunidade de superar o trauma.

A cerimônia do São José permitiu trazer aquelas pessoas do passado para o presente e possibilitou um vínculo real com aquela “família fantasma” que a Anna mencionou no episódio anterior.

Ela fechou um ciclo.

Roberts: Fui à casa do Albie para uma festa de fim de ano improvisada. Ele e a esposa Vanessa estavam comemorando com um grupo variado de parentes e amigos que estavam na cidade.

Eu sentia a maresia da varanda. Eu podia ouvir o burburinho das conversas dos vizinhos nos bangalôs ali perto e o riso das crianças enquanto brincavam lá embaixo, nas águas geladas. Eu entrava e saía de conversas com ativistas, jornalistas, inovadores sociais. Comi bolo de abóbora fresquinho e tomei água tônica.

E me sentei ao lado do Albie um pouco e conversei com ele sobre a praia de Clifton, sobre como a maior parte dos moradores não fazia ideia de que a uns 50 metros da areia havia um naufrágio.

Sachs: Aconteceu no nosso paraíso. Sir Francis Drake dava a volta ao mundo. Ele parou na Cidade do Cabo e a descreveu como o cabo mais belo que ele já tinha visto. Então, este é o cabo mais belo. E pense na ironia disso: o cabo mais belo é também o mais injusto.

Eu fico olhando lá para fora e tudo é tão bonito. Você vê as ondas que vêm e vão, as praias próximas. Tudo é tão tranquilo. E nós, tão seguros em nossas casas, olhando para fora. E eu penso na alegria que foi ter crescido na praia. E tudo é tão agradável, tão lindo. É uma espécie de paraíso, onde estou.

E, nesse paraíso, houve um inferno. Eu não consigo imaginar visualmente as pessoas. É quase demais para mim imaginar as pessoas se afogando. Eu visualizo as vigas de madeira e os pedaços de metal repousando no leito do oceano.

Roberts: Observamos o sol enquanto ele começava sua viagem de volta à casa, depois de um longo dia de trabalho.

Peguei minha câmera para tirar uma foto do Albie na varanda, em frente ao lugar onde o São José naufragou.

No quadro, atrás dele, eu podia ver uma palmeira na areia e duas rochas sobressaindo da água, marcas visíveis do que havia embaixo.

Mas o Albie se inclinou quando eu apertei o botão e sussurrou no meu ouvido: “Não consigo sorrir diante disto”.

Foi como se o resto da casa ficasse no escuro, como num palco em que somente Albie, eu e o naufrágio estivéssemos sob os holofotes.

E o curioso é que... A festa de fim de ano na casa do Albie e essa conversa aconteceram ao redor do dia 27 de dezembro, o aniversário de 224 anos do naufrágio do São José. Só percebi isso depois que voltei para casa.

Djaloki disse que os antepassados estavam me orientando.

Albie, um intelectual sul-africano de 87 anos, branco, judeu e eu, uma escritora negra amante da astrologia, do Dirty South, ficamos ali em silêncio, em meio ao barulho da festa, em nosso ritual particular, nossa própria cerimônia, homenageando juntos os ancestrais Makua, unidos pelo compromisso de enxergar a humanidade de um grupo de pessoas que decidimos, de forma tácita, recordar naquele dia.

Eu me senti completa.

Sou Tara Roberts, exploradora da National Geographic, apresentadora e produtora executiva.

Into The Depths é uma produção da National Geographic Partners, financiada em parte pela National Geographic Society.

Dirigida pela fantástica Francesca Panettta, que nos levou até a linha de chegada. Obrigada!

E produzida pela incansável e sempre preparada Bianca Martin e meu parceiro incondicional Mike Olcott.

Nossa poeta é a brilhante forjadora de palavras Alyea Pierce, exploradora da National Geographic.

Nossa editora executiva é Carla Wills.

Nosso produtor executivo de áudio é Davar Ardalan.

Nossa checadora é Kate Sinclair.

Nosso assistente de produção é Ezra Lerner.

Nosso compositor, engenheiro e designer de som é Alexis “Lex” Adimora.

Nossos engenheiros de áudio são Jerry Busher e Graham Davis.

Agradecemos especialmente a Ainehi Edoro.

E a nossos consultores – que nos fizeram críticas inteligentes e nos deram ideias e palavras de apoio sempre que necessário – são Ramtin Arablouie, John Asante, Greg Carr, Celeste Headlee, Ike Sriskandarajah e Linda Villarosa.

Debra Adams Simmons é a editora executiva de história e cultura da National Geographic.

Whitney Johnson é o diretor de experiências visuais e de imersão da National Geographic.

Susan Goldberg é diretora editorial da National Geographic.

Agradecemos a Fleur Paysour, do Museu Nacional de História e Cultura Afro-americana, e ao projeto Slave Wrecks por nos abrir as portas, literalmente.

Ao Open Documentary Lab, do MIT, por ser uma incrível caixa de ressonância.

Por último, não teria sido possível fazer esta série sem o apoio, a cooperação e a amizade da Diving With a Purpose, Ambassadors of the Sea, Society of Black Archaeologists e Slave Wrecks Project.

E agradeço também à minha mãe, Lula Roberts, por ser a nossa maior apoiadora e nos lembrar sempre de que o melhor ainda está por vir.

Obrigado por ouvir e até a próxima!

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