Como a generosidade de um estranho na Segunda Guerra nos deu a teoria do Big Bang

O físico alemão Arno Penzias escapou do Holocausto com a ajuda de um benfeitor que nunca conheceu. Esse ato secreto mudou sua vida – e nossa compreensão do Universo.

Por Katie Sanders
Publicado 15 de jun. de 2022, 16:05 BRT
Arno Penzias

O físico, rádioastrônomo e ganhador do Prêmio Nobel Arno Penzias – nos Laboratórios Bell nesta fotografia de 1985 – co-descobriu radiação cósmica de fundo em microondas, ecos do Big Bang que ajudaram a estabelecer a teoria mais bem fundamentada da origem do nosso universo.

 

Foto de Arnold Newman via Getty Images

Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, o proprietário de uma oficina de pintura em Belleville, no estado americano de Nova Jersey, recebeu uma batida frenética em sua porta. Era um imigrante alemão de 28 anos chamado Leo Gelbart, que ia de porta em porta, apelando para membros da comunidade judaica da cidade.

“Esta família precisa sair da Alemanha e eu não tenho dinheiro suficiente para ajudar. Você pode?" perguntava Gelbart. Ele mostrou ao dono da loja uma fotografia em preto e branco de seus amigos em Munique: um belo casal chamado Karl e Justine Penzias, segurando seus filhos Arno e Guenther, de seis e quatro anos. Com o regime nazista de Adolf Hitler perseguindo e aprisionando cada vez mais judeus, a família Penzias teve que fugir dos campos de concentração. 

Mas, para imigrar para os Estados Unidos, eles precisavam obter vários depoimentos oficiais comprovando que tinham um parente e uma rede de segurança financeira nos Estados Unidos. Gelbart forneceria o primeiro, afirmando falsamente que seu amigo Karl Penzias era seu primo. Mas, como garçom, não tinha dinheiro suficiente para se qualificar como padrinho da família.

O comerciante de tintas de 52 anos disse que sim, ele ajudaria. “Ficarei feliz em apoiá-los até que se tornem autossustentáveis”, escreveu. Da Alemanha, Karl Penzias, profundamente agradecido, deu a este estranho sua palavra, por meio de seu amigo, de que sua família só precisava de apoio no papel e mostraria sua gratidão nunca o contatando.

O mais velho dos dois meninos daquela foto, Arno Penzias, tem 89 anos agora. Rádioastrônomo aposentado ganhador do Prêmio Nobel, ele mora no norte da Califórnia. Nasceu em Munique, em 1933, quando Hitler subiu ao poder. Em 1938, sua família foi reunida com outros judeus que possuíam passaportes poloneses e foram forçados a embarcar em um trem para a Polônia para deportação. Mas o trem atrasou e a Polônia invalidou seus passaportes pouco antes de o trem chegar à fronteira.

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    Foto de Richard Barnes
    Barnet Yudin (segundo da direita) e sua família posam para um retrato em 1929

    Barnet Yudin (segundo da direita) e sua família posam para um retrato em 1929. Em 1938, na véspera da Segunda Guerra Mundial, Barnet assinou uma declaração de apoio à família Penzias, concordando em satisfazer suas necessidades financeiras se necessário e abrindo o caminho para os refugiados, que ele nunca encontrou, escaparem da Alemanha nazista.

    Foto de Richard Barnes

    Em 1939, enquanto tentavam fazer arranjos para deixar a Alemanha para os Estados Unidos, os pais de Arno enviaram seus filhos pequenos para a Inglaterra como parte do Kindertransport, um esforço de resgate britânico que transportou 10 mil crianças, em sua maioria judias, para fora do território nazista. Os irmãos pularam de um orfanato só para meninas, em Londres, para diferentes famílias adotivas inglesas. Enquanto os nazistas aceleravam a campanha assassina de Hitler que daria origem à palavra 'genocídio', Karl e Justine Penzias, equipados com a papelada necessária, finalmente se reuniram com seus filhos na Inglaterra e partiram para os EUA de barco. 

    A família passou por furacões e submarinos alemães em sua jornada pelo Atlântico. Em 3 de janeiro de 1940, quando seu navio atracou na cidade de Nova York, jornalistas tiraram fotos de Arno e Guenther, jovens refugiados de olhos arregalados acenando para a Estátua da Liberdade.

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      A família Penzias se estabeleceu no bairro do Bronx, onde os meninos começaram a escola e aprenderam inglês. Arno se formou na escola técnica secundária do Brooklyn e no City College, uma faculdade municipal em Nova York. Ele serviu no Corpo de Sinalização do Exército dos EUA, depois obteve um Ph.D. em física na Universidade de Columbia, também em Nova York. Ele se juntou aos Laboratórios Bell e, na década de 1960, ele e seu parceiro de pesquisa Robert Wilson co-descobriram radiação cósmica de fundo em microondas, que confirmou a teoria cosmológica do Big Bang. Eles dividiram o Prêmio Nobel de Física de 1978 pela descoberta. Em uma carta que o físico escreveu em resposta a um telegrama de congratulações do então presidente Jimmy Carter, Penzias expressou sua gratidão pela chance de viver na América:

      Vim para os Estados Unidos há 39 anos como um refugiado sem um tostão da Alemanha nazista. Para minha família e para mim, a América significou um refúgio de segurança, bem como uma terra de liberdade e oportunidade. Em um momento em que o significado das instituições americanas é frequentemente questionado, sinto-me compelido a testemunhar o cumprimento da promessa americana  em minha experiência de vida pessoal. Estou muito orgulhoso de ser americano, muito grato à América e ao povo americano. Assim, em sua capacidade de representante do povo americano, aproveitei esta ocasião para expressar uma pequena parte de meus agradecimentos a eles por meio de você.

      Mas agradecer ao homem cuja assinatura abriu as portas para a América não era viável. O pai de Arno havia prometido nunca entrar em contato com o signatário da declaração e manteve sua palavra. Os detalhes sobre seu ajudante permaneciam um mistério.

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        Foto de Richard Barnes

        Então, em 2012, o filho de Arno, David Penzias, encontrou um envelope em alguns papéis da família. Dentro havia uma cópia do depoimento assinado por um certo Barnet Yudin. David folheou cópias dos documentos que Yudin havia fornecido para certificar a declaração, chocado com a quantidade de informações que esse estranho estava disposto a divulgar: ele ganhava 125 dólares por semana como proprietário de sua oficina de pintura, onde residia em um prédio que possuía, e tinha 2 mil dólares em sua conta bancária. Esse homem não apenas atestara uma família com a qual não tinha conexão direta, mas fez um esforço considerável para fazê-lo. Quem era ele?

        Depois de algumas pesquisas on-line, David Penzias discou um número que encontrou para um Robert Yudin, em Nova Jersey, que ele tinha certeza de ser o neto de Barnet Yudin. Foi uma ligação inesperada que levou a uma conexão única. Os Yudins ficaram surpresos a princípio; Barnet morrera de câncer em 1950. Sua esposa, filho e filha também haviam falecido, e seus netos não se lembravam de Barnet mencionar uma família alemã que ele ajudara com um depoimento. Mas o filho de Arno compartilhou os documentos e o quebra-cabeça começou a se encaixar.

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          À esquerda: No alto:

          Sydney Neuwirth, uma artista aposentada e neta de Barnet Yudin, diz que seu avô foi movido para ajudar a família Penzias porque “ele sabia o que era ser rejeitado”.

          À direita: Acima:

          Guenther "Jimmy" Penzias (à esquerda) tinha 4 anos quando ele e o irmão Arno chegaram à segurança na Inglaterra como parte de um esforço de resgate britânico chamado Kindertransport. Em 2012, o filho de Arno, David Penzias (à direita) descobriu uma cópia da declaração juramentada assinada por Barnet Yudin, que até então permanecia em segredo.

          fotos de Richard Barnes

          A noção de que Barnet teria colocado o sustento de sua família em risco para ajudar outros que fugiam da perseguição estava de acordo com o imigrante humilde e generoso que eles conheciam. Mais Yudins apareceram e lançaram luz sobre a vida de Barnet: nascido na Rússia, em 1886, ele esperava se tornar médico. Passou nos exames de admissão da faculdade de medicina, mas lhe foi negada a admissão, supostamente porque era judeu. Barnet deixou a Rússia para os EUA por meio da Escandinávia, em 1906. Ao se estabelecer em Nova Jersey, começou a vender tinta em um carrinho de mão, e depois administrou uma loja de tintas e ferragens de sucesso com sua esposa, Anne.

          A neta de Barnet, Sydney Neuwirth, uma artista aposentada em Princeton, Nova Jersey, cresceu em um dos apartamentos que seu avô construiu sobre sua oficina de pintura. Enquanto ela vasculhava um arquivo de fotos, cartas e recortes de jornal que narravam a vida de seus avós, Neuwirth sentiu uma profunda conexão com seu avô e a família que ele ajudou a poupar. 

          “Ele sabia o que era ser rejeitado”, destaca Neuwirth. “Esta foi a sua forma de ajudar. Ele sempre quis ajudar.” Enquanto ela lê sobre a guerra atualmente em andamento na Ucrânia – e a consequente crise de refugiados, a maior da Europa desde a Segunda Guerra Mundial – ela encontra ainda mais perspectiva.

          htArno Penzias, de 6 anos

          Arno Penzias, de 6 anos, está entre seus pais nesta fotografia que foi mostrada a Barnet Yudin, em 1938. Yudin nunca saberia que o menino que ele ajudou a salvar um dia ganharia o Prêmio Nobel (fac-símile à esquerda).

          Foto de Richard Barnes

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            Foto de AP

            Quase oito décadas depois que Barnet assinou o depoimento, sua família aceitou se encontrar com David Penzias. Embora Arno não pudesse participar por causa de sua saúde debilitada, seu irmão e sobrinho viajaram para Nova Jersey para um brunch na casa do neto de Barnet. Sobre uma farta variedade de pães, salmão defumado e peixe branco, as famílias compartilharam documentos e memórias. David distribuiu cópias de uma fotografia recente de seu pai e tio com seus descendentes diretos. Enquanto os Yudins viam os patriarcas grisalhos cercados por seus cinco filhos crescidos e dez netos, David disse: “Nenhuma dessas pessoas existiria hoje sem Barnet Yudin”. Atingidos pela enormidade que o ato quieto de Barnet permitiu, uma nova amizade nasceu.

            Barnet Yudin nunca saberia que a criança de seis anos que ele ajudou a trazer para a América se tornaria um dos cientistas mais influentes do século 20. Joe Yudin supõe que seu bisavô não teria enfatizado essa parte. “Ele sabia que eles saíram (da Alemanha). Acho que era tudo o que ele precisava. Não disse: 'Esse garoto vai ganhar o Nobel algum dia, ou jogar como beisebol pelos Yankees?' Ele fez o que fez porque era certo e não mencionou isso a ninguém. Definitivamente ele tinha essa grande imagem de como a humanidade deveria ser.”

            No entanto, Joe se pega pensando no impacto do ato de seu bisavô. Ex-paraquedista das Forças de Defesa de Israel, ele é dono de uma empresa de turismo em Israel e frequentemente traz visitantes de todo o mundo ao Yad Vashem, o memorial oficial do Holocausto do país. Hoje em dia, quando ele chega ao Memorial das Crianças de Yad Vashem – uma caverna subterrânea escura onde lampejos de luz simulam milhões de estrelas, lembrando cerca de 1,5 milhão de crianças judias assassinadas pelos nazistas – ele formula uma pergunta: “O que perdemos no Holocausto?”. Além de uma estimativa de 11 milhões de vidas, o mundo perdeu a promessa de tantas crianças – os rostos jovens retratados nas paredes do memorial. "Perdemos a cura do câncer. Perdemos as viagens no tempo e no espaço profundo", especula o bisneto de Barnet Yudin, acrescentando: “Pense em todos os gênios que não sobreviveram”. Em seguida, ele conta a história de um que sobreviveu: Arno Penzias.

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              Foto de Richard Barnes
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