Sobrevivendo ao Holocausto: memórias angustiantes que não podem ser esquecidas

Museus, livros, documentários e um banco de dados estão entre iniciativas conduzidas por brasileiros para disseminar a história do antissemitismo nazista para as novas gerações.

Por Gabriel de Sá
Publicado 5 de set. de 2019, 12:06 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Estrela de Davi: o Memorial do Holocausto reproduz o símbolo religioso que os judeus europeus foram ...
Estrela de Davi: o Memorial do Holocausto reproduz o símbolo religioso que os judeus europeus foram obrigados a usar nas roupas durante a Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945.
Foto de Memorial do Holocausto, Divulgação

É uma manhã fria de agosto da cidade de São Paulo, mas o clima no terceiro andar do prédio do Memorial da Imigração Judaica, no bairro do Bom Retiro, é de inquietação. Ali, como ocorre praticamente todos os dias da semana, estudantes de escolas públicas paulistanas participam de visitas guiadas às instalações do Memorial do Holocausto e surpreendem-se com os relatos de como o regime nazista alemão exterminou sistematicamente seis milhões de judeus na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, entre 1930 e 1945.

Localizado no prédio da antiga sinagoga do Bom Retiro, a primeira de São Paulo, de 1912, o Memorial do Holocausto foi inaugurado em 2017 e é uma das várias iniciativas promovidas por brasileiros que visam manter vivas as memórias de um dos períodos mais brutais e dolorosos da história da humanidade. Além do memorial, existem no Brasil livros, documentários e um banco de dados que compila relatos dos sobreviventes do Holocausto.

Com um acervo interativo e audiovisual, repleto de fotografias, vídeos e instalações, o memorial traz de forma didática a história do Holocausto e do antissemitismo, e as escolas podem agendar visitas gratuitamente. O museu fica no terceiro andar do Memorial da Imigração Judaica, entidade que traz ao público um amplo acervo documental que ajuda a traçar a identidade dos judeus estabelecidos no Brasil.

Estudantes de escola pública participam de visita guiada ao Memorial do Holocausto, em São Paulo, e ...
Estudantes de escola pública participam de visita guiada ao Memorial do Holocausto, em São Paulo, e recebem informações sobre a história da holandesa Anne Frank.
Foto de Gabriel de Sá, National Geographic Brasil

Curador do Memorial do Holocausto, o pesquisador e fotógrafo Luiz Rampazzo acredita em um desconhecimento geral por parte da sociedade brasileira do que foi o genocídio dos judeus na Europa nazista. “Precisamos disseminar didaticamente os horrores do Holocausto. Não temos o objetivo de aterrorizar os visitantes, mas, sim, de tocá-los”, diz ele. “Ainda existem pessoas que negam o Holocausto, e o Memorial traz dados históricos e estudos de centenas de pesquisadores para mostrar o contrário.”

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    “Não é apenas uma homenagem, mas um instrumento para modificar a mentalidade dos jovens e evitar que horrores como esses ocorram de novo.”

    por Luiz Rampazzo
    Curador do Memorial do Holocausto de São Paulo

    Retratos, palavras e memórias

    Além de ser curador do memorial, Luiz Rampazzo retratou 17 judeus que residem no Brasil no livro Sobreviventes (Maayanot, 2018), cujos depoimentos foram colhidos pelo palestrante Marcio Pitliuk. Atualmente, Rampazzo e Pitliuk trabalham na produção de um documentário sobre a história de vida desses sobreviventes, com previsão de lançamento para 2020. A dupla estima que existam cerca de 100 sobreviventes do Holocausto vivos no Brasil, mas não é possível precisar o número exato.

    “Sobrevivente é todo mundo que escapou do Holocausto, não precisa ter necessariamente ido para campos de concentração”, explica Marcio Pitliuk, judeu e importante estudioso do Holocausto. Pitliuk também produziu, em parceria com o cineasta Caio Cobra, um dos documentários mais impressionantes e sensíveis sobre o tema: Sobrevivi ao Holocausto, de 2014.

    No longa-metragem, os dois diretores narram a trajetória do judeu polonês Julio Gartner, sobrevivente de cinco campos de concentração, dentre eles Auschwitz, Mauthausen e Ebensee. Julio tinha 15 anos de idade quando a Alemanha nazista invadiu a Polônia, em 1º de setembro de 1939, dando início à Segunda Guerra Mundial. Em Sobrevivi ao Holocausto, os diretores levam-no de volta a alguns dos lugares onde viveu momentos de terror. “Apesar de ter sofrido tanto, ele não se mostrava amargurado, era uma das pessoas mais positivas que eu conheci”, conta Caio Cobra. Julian Gartner mudou-se para o Brasil depois da guerra, em 1947, e morreu em 2018, aos 94 anos.

    Bastidores: o polonês Julio Gartner em cena do documentário "Sobrevivi ao Holocausto". Ele resistiu a cinco ...
    Bastidores: o polonês Julio Gartner em cena do documentário "Sobrevivi ao Holocausto". Ele resistiu a cinco campos de concentração e faleceu no Brasil em 2018.
    Foto de Enio Berwanger, Divulgação

    “Essas pessoas são testemunhas do que aconteceu, mas estão morrendo”, comenta Marcio Pitliuk, dizendo que tornou-se sua missão disseminar o Holocausto. “Podem até negar que isso ocorreu, mas esses sobreviventes estão aqui, são uma evidência do terror, e essa memória tem de ser preservada.”

    O cineasta Caio Cobra prefere olhar para os sobreviventes não como judeus que resistiram ao Holocausto, mas como pessoas que sobreviveram. “A partir do momento que o outro não faz mais parte de você, e você quer segregar, o medo toma conta. O medo e a ignorância levam à raiva, e para a raiva se transformar em intolerância é muito fácil”, opina Cobra. “Quando se diz que a outra pessoa é responsável pelos seus problemas, isso pode virar uma onda de ódio muito rapidamente.”

    “A ausência de indícios pode gerar fissuras que favorecem os silêncios, a negação e a reabilitação de políticas antissemitas.”

    por Maria Luiza Tucci Carneiro
    Historiadora da Universidade de São Paulo

    Testemunhos registrados

    São Paulo abriga a única base de dados dedicada a registrar os testemunhos de sobreviventes do Holocausto e refugiados do nazismo radicados no Brasil. O Arquivo Virtual sobre o Holocausto e Antissemitismo (Arqshoah) foi criado em 2006 pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro e conta com milhares de documentos que narram a histórias dos judeus que resistiram a guetos, campos de extermínio e concentração, e se refugiaram no Brasil depois de 1933.

    E temos uma dívida histórica com os judeus: segundo Tucci Carneiro, pelo menos 16 mil vistos foram negados pelo governo brasileiro aos judeus durante as administrações dos presidentes Getúlio Vargas (1930-1945) e Eurico Gaspar Dutra (1946-1951). As chamadas circulares secretas antissemitas foram enviadas para as embaixadas brasileiras visando dificultar ou mesmo impedir a vinda de refugiados de origem judaica. Os documentos continuaram a ser emitidos mesmo após os governantes terem tomado conhecimento do Holocausto, e continuou no pós-guerra, até 1950.

    O Arqshoah registrou, até 2018, mais de 350 testemunhos em áudio e vídeo, publicados em quatro volumes da coleção Vozes do Holocausto (Editora Maayanot), e cerca de 3 mil fotografias selecionadas dos arquivos pessoais do sobreviventes. “É de extrema importância preservarmos e divulgarmos os vestígios desse genocídio que criou levas de desenraizados que, ainda hoje, não conseguem lidar com sua história”, diz a historiadora.

    Luiz Rampazzo: livro de fotografias, documentário e curadoria do Memorial do Holocausto.
    Luiz Rampazzo: livro de fotografias, documentário e curadoria do Memorial do Holocausto.
    Foto de Gabriel de Sá, National Geographic Brasil

    Maria Luiza Tucci Carneiro defende que o registro dos testemunhos dos sobreviventes do Holocausto e dos refugiados do nazismo deve ser assumido como uma missão de memória por todas as nações ditas civilizadas. “A reconstituição das histórias de vida daqueles que vivenciaram os atos genocidas praticados pela Alemanha nazista e colaboradores servem de alerta para os perigos representados, neste século 21, pelos grupos de extrema-direita que, apesar do Holocausto, endossam versões revisionistas e negacionistas da história”, observa ela, por e-mail. “A ausência desses indícios pode gerar fissuras que favorecem os silêncios, a negação e a reabilitação de políticas antissemitas.”

    Para Luiz Rampazzo, o ódio, a intolerância e o racismo, algumas das bases do antissemitismo, ainda existem na sociedade, talvez de forma mais velada. “Temos observado a expansão do ódio contra minorias em diversos países”, analisa ele. “O discurso de ‘respeitar o próximo’ não modificou o que as pessoas realmente sentem. Nosso trabalho não é apenas uma homenagem aos sobreviventes, mas um instrumento para modificar a mentalidade dos jovens e evitar que horrores como o Holocausto ocorram de novo.”

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