Terremoto mortal de 2018 viajou a uma velocidade 'supersônica'— entenda o fenômeno
Forte tremor na Indonésia trouxe uma visão detalhada do supershear, fenômeno que pode criar a versão geológica de um estrondo sônico.
Quando o terremoto atingiu Sulawesi em 28 de setembro de 2018, a ilha indonésia foi inundada pela água. Correntes de lama levaram tudo o que encontrava em seu caminho, varrendo regiões inteiras da cidade de Palu e seus campos de cultivo. Minutos após o tremor, os moradores foram pegos de surpresa por uma parede de água que se formou e causou resultados devastadores.
Quando o sol se pôs naquele dia, milhares de pessoas estavam desaparecidas. Em poucos dias, pairava no ar o odor dos cadáveres. O tremor de magnitude 7,5 foi o pior terremoto de 2018, com mais de 2 mil pessoas mortas.
Para compreender como essa série fatal de eventos ocorreu, muita atenção foi concentrada no tsunami surpresa. Porém, dois novos estudos, publicados em 4 de fevereiro na revista científica Nature Geoscience, abordam outro aspecto notável: o terremoto em si foi provavelmente um tipo de tremor incomum e extremamente rápido conhecido como supershear.
O terremoto de Palu atingiu a Terra a quase 15 mil quilômetros por hora—rápido o suficiente para ir de Los Angeles a Nova York em apenas 16 minutos. Uma ruptura tão rápida faz com que as ondas do terremoto se acumulem no que é conhecido como onda de choque, semelhante à onda de pressão de um avião viajando a uma velocidade supersônica. Esse cone concentrado de ondas pode ampliar o poder de destruição do terremoto.
“É como um estrondo sônico em um terremoto”, afirma Wendy Bohon, geóloga especializada em terremoto das Instituições de Pesquisas Incorporadas para Sismologia (Iris).
Embora ainda não seja possível afirmar se a velocidade do supershear intensificou os deslizamentos, a liquefação ou o tsunami do terremoto na Indonésia, esses dois novos estudos mostram uma visão rara deste fenômeno pouco compreendido e potencialmente letal.
“Temos observado apenas alguns terremotos supershear, e poucos deles com esse nível de detalhes”, conta o sismólogo Jean-Paul Ampuero, da Université Côte d'Azur, na França, coautor de um dos estudos.
“Isso nos dirá algo fundamental sobre como o planeta funciona”, conta Bohon, que não participou de nenhum dos estudos. “E tem o potencial de salvar vidas e nos ajudar a informar as pessoas com melhor eficácia”.
Descomprimindo a Terra
Durante um terremoto, todo o comprimento de uma fratura não quebra de uma só vez. Em vez disso, descompacta a superfície do planeta a uma taxa conhecida como velocidade de ruptura.
Stephen Hicks, sismólogo da Universidade de Southampton, explica o fenômeno ao pegar um panfleto colorido sobre uma mesa durante a reunião de outono da União de Geofísica dos Estados Unidos em Washington, DC. Ele faz um pequeno rasgo de um lado e diz: “Imagine que isso é sua nucleação” ou o início de uma ruptura em uma falha. A velocidade da ruptura é a rapidez com que esse ponto se move no tempo, diz, e com um movimento brusco, ele rasga o panfleto em dois.
Foi essa velocidade que chamou a atenção dos geólogos no terremoto da Indonésia. Para observar mais de perto, Ampuero e seus colegas aproveitaram o poder da crescente rede global de estações sísmicas, que detectam os ecos de terremotos a centenas de quilômetros de distância. A partir dessa rede, foram coletados dados de 51 locais na Austrália.
Ao estudar a chegada das ondas do terremoto em cada estação, a equipe recriou a ruptura. É semelhante a como seu cérebro descobre de onde vem um som, explica Ampuero. Se alguém estiver falando com você pelo lado direito, o som chega ao seu ouvido direito uma fração de segundo antes de chegar ao ouvido esquerdo. O seu cérebro então usa esse atraso para localizar o locutor.
“Estamos fazendo a mesma coisa, [mas] em vez de usar apenas dois ouvidos, estamos utilizando centenas de ouvidos,” conta. “Cada ouvido é como um sismógrafo no chão”.
Isso revelou que o tremor ocorreu tão rápido que a velocidade de ruptura ultrapassou um tipo de ondas irradiadas conhecidas como ondas de cisalhamento (em inglês, shear waves), daí o termo “supershear”. Em aproximadamente 36 segundos, o terremoto atingiu o sul através de 150 quilômetros da superfície da Terra.
“Esse é o chão quebrando tão rápido, o que é incrível”, maravilha-se Hicks, que não participou da pesquisa.
Super estrada do terremoto
Uma segunda equipe examinou de perto as mudanças ocorridas na superfície após o tremor utilizando dados e imagens de satélites antes e depois do evento.
“Ficamos imediatamente impressionados com a nitidez da ruptura na superfície ao sul da cidade de Palu e com o grande deslocamento ocorrido nessa área”, escreveu por e-mail a coautora do estudo, Anne Socquet, da Université Grenoble Alpes na França.
Essa análise sugere que a terra se deslocou horizontalmente e que a mudança foi enorme: o terreno se deslocou quase 5 metros em seu ponto máximo ao sul da cidade de Palu. A mudança foi tão grande que pode ser facilmente visualizada em imagens da região obtidas após o terremoto. As estradas foram deslocadas, os edifícios pareciam ter sido cortados em dois.
“Isso é monstruoso para um terremoto de [magnitude] 7,5”, conta Socquet. “E isso é provavelmente reforçado pelo fato de que este terremoto foi um supershear”. Não aconteceu apenas na superfície, mas chegou a quase cinco quilômetros abaixo da superfície.
Nos trechos sul da falha, uma característica importante por trás dessa velocidade rápida e da mudança profunda é o que Socquet chama de sua “maturidade”. O ramo da tectônica já testou essa quebra inúmeras vezes, empurrando continuamente os blocos da Terra lado a lado e esculpindo a falha em uma ruptura reta, suave e contínua—características anteriormente associadas a outros exemplos de rupturas super-rápidas.
Anatomia do supershear
Contudo mesmo dentro desta categoria de eventos raros, o terremoto de Palu pode se destacar. A maioria dos terremotos supershear se alastra ainda mais rápido do que o de Palu, cruzando quase tão rápido quanto outro tipo de onda de terremoto conhecida como onda de pressão. Eles geralmente se movem a cerca de 18 mil quilômetros por hora. Porém Ampuero e seus colegas descobriram que, embora o terremoto na Indonésia tenha sido rápido o suficiente para ser supershear, ele não atingiu a velocidade máxima.
“É extremamente raro ver eventos nessa faixa intermediária”, diz.
Ampuero e seus colegas acreditam que a discrepância se deve ao fato de que os modelos de terremotos, incluindo o modelo utilizado nesse trabalho, geralmente assumem que as rochas que circundam uma falha são uma unidade intacta. Mas esse não é sempre o caso no mundo real, onde zonas de fraturas ao redor da ruptura podem reduzir a velocidade das ondas associadas ao terremoto através da superfície.
Se isso realmente aconteceu em Sulawesi, isso significaria que as ondas de pressão do terremoto podem ter se movido tão rápido quando sua velocidade de ruptura, como é esperado para rupturas do supershear. O terremoto ainda foi estranhamente lento para um supershear, mas pelo menos suas ondas e ruptura teriam se movido a velocidades relativamente certas. Contudo os cientistas não sabem ao certo se esse foi o caso sem a condução de mais estudos na região.
Esse não é o único fato incomum sobre o evento. O terremoto de setembro também pareceu não ser impedido por duas grandes inclinações na falha. Ziguezagues ao longo da ruptura geralmente desaceleram os terremotos, como carros em uma estrada sinuosa, mas não foi esse o caso. E, diferentemente da maioria das rupturas do supershear, que precisam de um pouco de aquecimento, o tremor de Palu pareceu atingir seu ritmo galopante logo no início.
“Esse terremoto é como uma Lamborghini”, afirma Bohon. “Vai de zero a 60 em uma fração de segundos”.
Esse comportamento gera ainda mais dúvidas. A falha poderia ser mais reta em profundidade? Isso teria ajudado a canalizar as curvas mais acima, observa Ampuero. Foreshocks menores sobrecarregaram o grande terremoto? Isso poderia tê-lo feito galopar desde o começo. Mas essa velocidade inicial também poderia estar relacionada com a irregularidade da falha, que poderia unir os lados como os lados ásperos de uma lixa e fazer com que o solo se partisse com força extra.
Ainda há mais por vir?
Essas características incomuns tornam esse terremoto ainda mais valioso, já que podem ajudar os pesquisadores a entender melhor onde e como terremotos super rápidos podem acontecer. Os cientistas que revisaram o trabalho enfatizaram a importância dessa informação para modelos e avaliações de riscos futuros, não apenas na Indonésia, mas em todo o mundo.
“O que aconteceu aqui poderia acontecer em outras falhas, principalmente em grandes falhas nos limites das placas”, afirma Eric Dunham, geofísico da Universidade de Stanford.
“Esse tipo de falha é o mesmo que podemos encontrar na Califórnia, no norte da Turquia, nas Ilhas Egeias do Norte, na zona de falha do Mar Morto, na Ásia Central”, diz o geólogo especializado em terremotos, Sotiris Valkaniotis, que não participou dos novos estudos. “As constatações deste terremoto se aplicam em todo o mundo”.