Por dentro da arriscada vida de uma fotógrafa de guerra esquecida

Dickey Chapelle foi uma das jornalistas mais destemidas da história - e a primeira mulher norte-americana a morrer em serviço.

Por Nina Strochlic
Publicado 23 de ago. de 2018, 16:07 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
A fotógrafa Dickey Chapelle com sua câmera em uma missão no Vietnã.  Ela já havia ...
A fotógrafa Dickey Chapelle com sua câmera em uma missão no Vietnã. Ela já havia noticiado dezenas de conflitos quando chegou a esse país devastado pela guerra.

AS 36 HORAS que antecederam o salto de Dickey Chapelle de uma torre com os Screaming Eagles foram aterrorizantes. Ela tinha 41 anos e estava saltando de paraquedas pela primeira vez. Entretanto, o medo nunca foi capaz de dominar essa correspondente de guerra, uma das pioneiras em seu ramo, e ela logo afirmou que havia sido uma “das melhores experiências que alguém poderia ter”.

O ano era 1959 e Chapelle tinha chegado com a 101a Divisão de Forças Aerotransportadas do Exército dos EUA em Fort Campbell, na fronteira entre o Tennessee e o Kentucky. Ela trabalhava como correspondente de guerra desde 1942 e havia noticiado dezenas de conflitos.

Ela havia sido chamada por Fidel Castro de “pequena e educada norte-americana com sangue de tigre nas veias”. Havia sido detida na solitária durante a Revolução Húngara. E confirmada como a primeira correspondente reconhecida pelos rebeldes argelinos. Após aprender com os Screaming Eagles, ela se tornou a primeira mulher autorizada a saltar em combate com tropas paraquedistas no Vietnã.

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    Dickey Chapelle tira uma foto durante sua cobertura da operação do Corpo de Fuzileiros na costa do Lago Michigan em 1958. Em 2017, mais de meio século após sua morte, ela foi nomeada fuzileira honorária.
    Foto de Lew Lowery, U.S. Marine Corps, Ap

    Durante o treinamento, Chapelle aprendeu que não era necessário fechar os olhos durante um salto, e ela relacionou essa filosofia ao seu estilo de jornalismo. Com o lema “Apenas você pode assustar você mesmo”, ela realizou um salto de treinamento na Coreia no ano seguinte e então saltou no Vietnã, onde os EUA travavam uma guerra que se arrastaria por 20 anos.

    Chapelle foi uma das jornalistas mais corajosas de seu tempo e certamente a mais experiente. Com um chapéu exibindo os símbolos das tropas paraquedistas do Vietnã e do exército norte-americano, seus óculos de armação preta e seus brincos de pérola, ela chegou aonde outros repórteres jamais ousaram chegar e insistia em noticiar apenas o que conseguia testemunhar em primeira mão.

    Contudo, o Vietnã seria o último de sua lista de zonas de conflito, país onde ela se tornou a primeira correspondente norte-americana a morrer em ação. Anos depois, outros jornalistas relataram que as tropas Aerotransportadas do Vietnã ainda se lembravam daquela mulher de baixa estatura, que não economizava nos palavrões e que havia saltado com eles.

    EM DIREÇÃO AO CÉU

    Natural do centro-oeste dos EUA e com um jeito de falar rápido, o verdadeiro nome de Dickey Chapelle era Georgette Meyer. Durante sua infância, o seu herói, o almirante Richard Byrd, explorador ártico, foi a inspiração de seu apelido, e ela sonhava em ser pilota ou engenheira aeroespacial. Aos 14 anos de idade, ela vendeu seu primeiro artigo para a U.S. Air Service Magazine, intitulado “Por que queremos voar” e, aos 16, se matriculou no MIT junto com outras seis alunas mulheres. Seis anos depois, se casou com Tony Chapelle, fotógrafo da Marinha - que na época tinha 40 anos - e logo se tornou seu parceiro jornalístico.

    Prisioneiros vietcongues constroem muros de proteção feitos de barro ao redor de um vilarejo no sul do Vietnã.
    Foto de Dickey Chapelle, National Geographic Creative

    “Certifique-se de ser a primeira mulher em algum lugar”, foi o conselho de um editor em Nova York, no início de sua carreira.

    E ela foi. Em 1942, Chapelle se tornou uma das primeiras correspondentes mulheres credenciadas pelas forças militares na Segunda Guerra Mundial - credenciamento que ela logo perdeu após acompanhar a Marinha até a Ilha de Okinawa em protesto a uma medida que proibia a presença de correspondentes mulheres em áreas de combate. Ao final da guerra, ela já havia escrito nove livros, a maioria sobre mulheres na aviação, e havia arrumado emprego como editora na revista Seventeen.

    Mesmo assim, ela não conseguiu ficar longe do jornalismo e de noticiar no exterior. Ela e Tony começaram a fotografar os efeitos da guerra e viajaram para quase vinte e quatro países como fotógrafos voluntários de agências humanitárias e do Departamento de Estado. Sempre que Chapelle resolvia criar raízes, ela era chamada novamente pela guerra. Ela se tornou a relações-públicas de uma companhia aérea e de um instituto de pesquisa, mas não resistiu e partiu para cobrir a Revolução Húngara, onde foi detida como prisioneira por um mês. Após Tony ter conseguido juntar dinheiro para soltá-la, ela começou a pular de conflito em conflito, aparentemente nunca desencorajada pelo perigo.

    UMA VIDA DE GUERRA

    Chapelle uma vez escreveu que suas histórias eram sempre de “homens corajosos o suficiente para arriscar suas vidas em defesa da liberdade e contra a tirania”, e essa perspectiva que ela adquiriu na linha de frente fez dela uma lenda em uma época na qual havia poucas jornalistas mulheres na redação e menos ainda nos campos de batalha. Ela estava acostumada a ser uma novidade nos escritórios dos generais e nas unidades da Marinha. Às vezes, o fato de ela ser subestimada contava a seu favor: ela vendeu um livro sobre treinamento militar ao seu editor ao realizar todo o teste de aptidão física do exército em seu escritório.

    Contudo, o fato de Chapelle ser mulher não a concedeu nenhum tratamento especial como jornalista. “Nenhum general jamais me ofereceu trocar as ordens de uma operação SECRETA pela minha bela pele branca e, se parece que estou reclamando, de certo modo, estou mesmo”, escreveu à sua editora enquanto redigia sua autobiografia, cujo título inicial era The Trouble I’ve Asked for (O problema que eu mesma pedi, em tradução livre), sendo posteriormente publicada como What’s a Woman Doing Here? (O que uma mulher faz aqui?, em tradução livre), após as censuras que normalmente ouvia no campo de batalha.

    Os Chapelles começaram a escrever reportagens para a revista National Geographic nos anos 1950, mas Tony sofreu dois ataques cardíacos durante o casamento que durou 15 anos e, conforme ele mesmo explicou ao seu editor, buscou uma vida mais sedentária. Quando trabalhavam juntos, Dickey escrevia e Tony ficava responsável pelas fotos. Após o divórcio, Dickey assumiu ambos os papéis no Vietnã.

    Em maio de 1962, Chapelle comemorou 20 anos como correspondente de guerra participando da ação de helicópteros que travavam uma batalha aérea sobre o Vietnã. Uma noite, três oficiais da Marinha se aproximaram dela para dizer que ela havia fotografado ou entrevistado os pais deles em Iwo Jima e Okinawa duas décadas antes. “Em choque”, ela escreveu, “percebi que estava cobrindo a minha segunda geração de combatentes da Marinha - cobrindo, novamente, suas batalhas a meio mundo de distância de casa”.

    Naquele ano, Dickey se tornou a segunda mulher a receber o George Polk Memorial Award, o mais importante prêmio de valentia do Overseas Press Club of America. Ela havia testemunhado mais batalhas no Vietnã do que qualquer outro norte-americano - 17 operações no total, afirmou o comunicado à imprensa, destacando: “A importância das fotos que ela tirou no Vietnã está no fato de que elas foram tiradas aonde ninguém vai - ALÉM das linhas de telégrafo e das estradas trafegáveis”.

    Chapelle atravessando pântanos em patrulhamento com os Sea Swallows, uma milícia de refugiados chineses que apoiava o governo vietnamita. Quando ela morreu, não havia nenhuma outra fotógrafa mulher realizando a cobertura da perigosa e divisora guerra do Vietnã.
    Foto de Dickey Chapelle, National Geographic Creative

    O ATO FINAL NO VIETNÃ

    A guerra no Vietnã havia dividido a opinião pública nos EUA e cada relato de Chapelle causava uma inundação de feedbacks emotivos à sede da National Geographic em Washington, D.C. “Espero informação, não propaganda da Geographic”, escreveu um leitor após ler a reportagem dela sobre as tropas aerotransportadas norte-americanas. Freiras do Holy Family Hospital no sul do Vietnã descordavam, descrevendo a reportagem como “uma das representações mais realistas que já lemos daquilo que realmente está acontecendo aqui”.

    Talvez Chapelle tenha ficado cansada da forma lenta e seletiva que a National Geographic cobria a guerra. Em maio de 1965, ela disse aos editores que estava decepcionada com o fato de duas revistas semanais terem publicado uma reportagem sobre guerras navais que ela havia enviado primeiro. “De qualquer forma, finalmente descobri o que pode ser feito a respeito”, ela escreveu. “Passei a trabalhar para uma dessas revistas semanais”. Chapelle estava a serviço do National Observer - e a National Geographic ainda estava trabalhando em sua reportagem - quando faleceu.

    Em 4 de novembro de 1965, Chapelle estava cobrindo o segundo dia da Operação Furão Negro, uma missão de busca e destruição da Marinha próxima à cidade litorânea de Chu Lai. A Associated Press enviou um fotógrafo para acompanhá-la e no dia anterior ela havia apostado com ele que sua unidade seria atingida antes que a dele. Ela perdeu a aposta, mas disse ao fotógrafo que venceria a próxima.

    Eram quase oito horas da manhã, ela estava caminhando pelo acampamento e se juntando ao grupo de patrulha. Momentos depois, uma explosão atingiu o acampamento. A unidade havia caído em uma armadilha: uma granada conectada a um morteiro acionado por uma linha que atravessava o caminho. Chapelle foi atingida no pescoço por estilhaços e morreu no helicóptero que a levava ao hospital.

    LEGADO NA LINHA DE FRENTE

    Homens alistados e correspondentes estrangeiros a homenagearam em Saigon em seu funeral. A Marinha concedeu a ela honras militares plenas. (No outono anterior, no jantar anual da Associação de Correspondentes em Combate do Corpo de Fuzileiros, Chapelle havia recebido o título de fuzileira honorária). Quando o quartel do Corpo de Fuzileiros em Washington recebeu a notícia, um dos membros disse que “tudo havia sido interrompido”.

    “Ela se aventurou por lugares onde anjos e homens com o dobro de seu tamanho e a metade de sua idade ousaram ir, porém, não com uma áurea de vanglória, mas simplesmente porque acreditava que se um jornal ou rádio a contratasse para cobrir uma guerra, a guerra merecia uma cobertura, e não apenas uma nova versão do relatório copiado no mimeógrafo e distribuído pelo quartel”, escreveu Bob Considine, correspondente e colega, para o Milwaukee Journal em sua homenagem. “Dickey era uma mulher extraordinária”.

    Por um ano após a morte de Chapelle, não houve nenhuma outra fotógrafa mulher trabalhando no Vietnã. Mas quando, em 1967, um general tentou proibir mulheres nas linhas de frente, já era tarde demais. A jovem fotógrafa francesa Catherine Leroy havia chegado e logo seguiu os caminhos aéreos de Chapelle, saltando de paraquedas em áreas de combate com os Screaming Eagles. Ela também receberia o George Polk Memorial Award por sua cobertura e bravura. “Não há dúvidas” de que a guerra não seja um lugar para mulheres, Chapelle disse uma vez em uma entrevista. E ela complementou: “Zonas de guerra também não são lugares para uma outra espécie na Terra, o homem.  Contudo, enquanto o homem continuar a travar guerras, acredito que observadores de ambos os sexos serão enviados para testemunhar o que está acontecendo”.

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