Gene misterioso está ausente na maioria dos mamíferos marinhos

De forma alarmante, a adaptação pode estar deixando esses animais mais vulneráveis aos agrotóxicos que deságuam no mar.

Por Nadia Drake
Publicado 21 de ago. de 2018, 12:53 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Os peixes-bois, como este visto na Flórida, estão entre os mamíferos marinhos mais vulneráveis ao escoamento ...
Os peixes-bois, como este visto na Flórida, estão entre os mamíferos marinhos mais vulneráveis ao escoamento de organofosfato.
Foto de Paul Nicklen, National Geographic Creative

Milhões de anos atrás, os mamíferos antigos que habitavam a terra retornaram para o mar. Seus corpos se aperfeiçoaram para nadar, dedos articulados se transformaram em barbatanas e nadadeiras, cantos hipnóticos pouco a pouco preencheram os oceanos – e, em algum momento durante o processo de evolução, os mamíferos marinhos recém-evoluídos perderam um determinado gene chamado Paraoxonase 1, ou PON1.

Talvez aquele gene não fosse mais necessário para os organismos adaptados à vida na água; assim como a evolução aperfeiçoou os corpos aquáticos, ela pode ter aperfeiçoado genomas de forma semelhante. Mas qualquer que seja o motivo, o PON1 parou de funcionar em cada uma das três linhagens de mamíferos marinhos que conhecemos atualmente: as baleias e os golfinhos, os peixes-bois e os dugongos, e as focas e os leões-marinhos.

“O fato de ele estar tão absolutamente preservado nas espécies terrestres, e de ter sido completamente perdido na maioria, em quase todas as linhagens marinhas, é realmente surpreendente, não é?”, diz Nathan Clark, da Universidade de Pittsburgh, autor principal de um estudo que relata os resultados atualmente na revista científica Science. “Parece que esse gene tem uma história para contar”.

Normalmente, esta história seria intrigante o suficiente por si só. Mas, por um estranho capricho do destino, o PON1 também possibilita uma importante defesa contra uma classe de agrotóxicos particularmente desagradáveis chamados de organofosfatos. O PON1 destrói subprodutos dos agrotóxicos no plasma sanguíneo. Desta forma, os mamíferos terrestres com níveis normais de PON1 - incluindo os humanos - podem lidar com a exposição de forma eficaz.

Ainda comumente utilizados na agricultura e frequentemente lavados ao mar, os organofosfatos inibem o sistema nervoso central, causando paralisia e dano cerebral permanente. E, até agora, não há sinais de que nossos parentes marinhos tenham desenvolvido um mecanismo alternativo ao PON1 para se defenderem dessas toxinas.

“Não é de se surpreender que aquela função tenha sido perdida, porque ela pode não ter sido útil inicialmente no ambiente marinho,” diz Gregory Bossart, do Aquário da Geórgia, que estuda a exposição à toxina em golfinhos e em outros mamíferos.

“Agora, ela será útil. Mas pode ser muito tarde”.

Um padrão de perda

Bossart está certo: o fato de vários genes terem sido alterados à medida em que os mamíferos foram migrando para um ambiente aquático não é nenhuma surpresa – é assim que a evolução acontece.

Mas Clark e seus colegas queriam identificar padrões de atividade que foram alterados simultaneamente em múltiplas linhagens à medida em que os mamíferos foram para o mar, e isso significou analisar as três maiores divisões evolutivas dos mamíferos marinhos da atualidade – os cetáceos (baleias e golfinhos), que compartilham um ancestral em comum com os hipopótamos, os sirênios (peixes-bois e dugongos), que compartilham um ancestral em comum com os elefantes, e os pinípedes (focas e leões-marinhos), que compartilham um ancestral em comum com os ursos e as doninhas.

“A evolução dos mamíferos marinhos é realmente maravilhosa justamente por isso, porque, geralmente, um dos problemas em identificar coisas que sejam adaptativas, ou que sejam realmente importantes para a função orgânica, é que normalmente não se tem réplicas,” diz Wynn Meyer, autora principal do trabalho. “Você vê um tipo de mudança estranha ocorrendo em um organismo apenas uma vez. Mas, nesse caso, é possível identificá-la diversas vezes”.

Meyer alinhou os genomas de um grupo de mamíferos marinhos e procurou padrões que indicassem uma mudança significativa da função em relação aos mamíferos terrestres – especificamente os genes que haviam sido perdidos à medida em que a evolução progrediu, indicada por variações da sequência que truncam uma proteína ou destroem sua capacidade de funcionamento. Naqueles genomas de mamíferos marinhos, Meyer e seus colegas observaram vestígios de dezenas de genes interrompidos, a maioria dos quais produzem receptores de sabor ou odor.

E, segundo Clark, é possível que estejamos testemunhando a perda da função do PON1 até mesmo agora, nas focas.

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    “Os cetáceos são aquáticos há muito tempo, ao passo que os pinípedes não são aquáticos há tanto tempo assim”, afirma Clark. “Portanto, pode ser que os pinípedes avancem como um grupo. Algumas destas linhagens de pinípedes serão extintas e outras se proliferarão, e eles podem se parecer com os cetáceos daqui a 10 ou 20 milhões de anos. Mas, eu não estarei por perto para verificar isso”.

    Em curto prazo, Clark e seus colegas estão planejando realizar o sequenciamento de castores, ratos-almiscarados, capivaras e outras criaturas aquáticas e semiaquáticas.

    “Nós precisamos de algumas espécies ou populações que tenham perdido o PNO1, e de algumas que não o tenham perdido, de forma que possamos ver quais fatores ambientais diferem entre essas espécies”, diz Meyer.

    O perigo da exposição

    Por enquanto, ainda não está claro se os mamíferos marinhos estão sofrendo os efeitos da exposição ao organofosfato, muito embora seja certo que tais pesticidas sejam tóxicos e estejam sendo despejados em habitats aquáticos. Dos organofosfatos, entre os mais notórios na esfera pública está o clorpirifós, que bloqueia uma enzima chamada colinesterase e pode levar a um acúmulo tóxico do neurotransmissor acetilcolina.

    Em 2000, a Agência de Proteção Ambiental proibiu o uso residencial do clorpirifós devido a fortes evidências de seus efeitos prejudiciais tanto em humanos quanto em roedores. As crianças são particularmente muito vulneráveis aos seus efeitos porque elas ainda não possuem níveis elevados de PON1, diz o autor do estudo, Clem Furlong, bioquímico da Universidade de Washington que estuda o PON1 há décadas. E camundongos com o gene PON1 removido sofreram e morreram devido aos níveis de clorpirifós que não causaram efeito sobre os camundongos normais.

    “Todos os dados que temos do modelo de camundongo e com humanos indicam que o PON1 é crucial para determinar a resistência à exposição”, diz Furlong. “Os dados que sustentam isso são muito fortes”.

    Uma proposta semelhante para proibir o clorpirifós na agricultura foi rejeitada pelo ex-administrador da EPA, Scott Pruitt, em 2017. Mas, hoje, um tribunal federal ordenou à Administração Trump que proibisse o clorpirifós totalmente, alegando que a EPA não havia demonstrado que o produto químico era seguro.

    Contudo, por enquanto, águas contaminadas pelo escoamento de pesticidas usados na agricultura, da Flórida à Califórnia e até à Austrália, podem conter altos níveis de agrotóxicos que os peixes-bois, os golfinhos e as baleias são naturalmente incapazes  de combater – e Clark e outros pesquisadores suspeitam que isso possa ser a causa dos diversos e incomuns eventos de mortalidade que assolam o sudeste dos EUA.

    Em breve, ele e seus colegas começarão a procurar sinais de toxicidade por organofosfato no sangue de peixes-bois coletado na região da Flórida, e procurar por associações com o escoamento agrícola.

    “Nós não temos nenhum dado direto sobre os níveis de agrotóxicos nos peixes-bois”, diz Hunter. “Nós teremos que testá-los diretamente e comparar com animais que tenham um gene funcional para descobrir se eles correm maior risco com a exposição”.

    Por enquanto, os cientistas estão trabalhando rapidamente para escrever o próximo capítulo dessa história evolutiva, muito embora ninguém esteja particularmente otimista de que os resultados possam mudar o rumo das coisas.

    “Se eles não o proibiram considerando que é prejudicial às crianças”, diz Clark, “então, eu não acho que isso fará muita diferença”.

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