Primeiros bebês com genes editados correm risco de morte prematura

Em 2018, um pesquisador chinês chocou o mundo ao anunciar o nascimento de dois bebês com genes editados. As mutações podem ter sido prejudiciais e não benéficas.

Por Michael Greshko
Publicado 4 de jun. de 2019, 11:44 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Cientistas examinam um embrião no estágio de blastocisto com cinco dias de vida em busca do ...
Cientistas examinam um embrião no estágio de blastocisto com cinco dias de vida em busca do gene da fibrose cística nesta imagem de microscópio. Os pesquisadores estão utilizando variadas técnicas, inclusive a edição de genes, para eliminar as raízes genéticas das doenças. Contudo, como demonstra um estudo recente, fazer alterações hereditárias no genoma humana pode provocar riscos inesperados.
Foto de David Liittshwager, Nat Geo Image Collection

O pesquisador chinês Jiankui He chocou a comunidade médica do mundo todo em novembro de 2018 ao anunciar o nascimento de dois bebês com DNA editado por ele: os primeiros seres humanos já nascidos com alterações hereditárias no genoma, feitas com o emprego de uma técnica chamada Crispr-Cas9. Ele alega que fez as alterações para reduzir o risco de os bebês contraírem HIV, mas a notícia despertou imediatamente uma polêmica ética e médica sobre o trabalho dele e o uso da edição de genes no ser humano.

No estudo publicado hoje no periódico Nature Medicine, pesquisadores analisaram um banco de dados genético do Reino Unido e verificaram que aqueles que possuem naturalmente um traço genético análogo ao que He modificou por engenharia genética no DNA dos bebês apresentam um risco aproximadamente 21% maior de morrer antes dos 76 anos do que aqueles que não possuem esse traço.

“A diferença é tão grande quanto modificar o sistema operacional inteiro de um computador em vez de modificar um único software instalado para uma determinada tarefa.”

por XINZHU WEI
UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, EM BERKELEY

“Podemos ter a impressão de que uma mutação produz um único efeito. Contudo, na realidade, uma mutação pode produzir uma infinidade de efeitos”, afirma Rasmus Nielsen, coautor do estudo e biólogo da Universidade da Califórnia, em Berkeley.

“Quando refletimos sobre a engenharia genética do homem, um dos diversos aspectos a se considerar é que as consequências podem ser difíceis de prever – que uma mutação benéfica em um contexto é muito prejudicial em contextos distintos”, afirma ele.

[Veja também: Como abordamos a evolução científica do DNA ao longo dos anos?]

Maior risco

Em seu anúncio público em 2018, He alegou que seu objetivo era conferir resistência ao HIV ou vírus da imunodeficiência humana. He fez isso editando mutações no gene CCR5, que codifica um receptor no exterior de células imunes, o que aumenta a importância do seu papel no comportamento do sistema imune. Uma das variantes mais amplamente estudadas desse gene é a variante ∆32, que é mais curta que o normal e basicamente rompida. Tal rompimento confere proteção contra o HIV, já que o vírus infecta células imunes aderindo à proteína codificada pelo gene funcional CCR5.

Entretanto, houve grandes avanços nos tratamentos para o HIV e muitos especialistas argumentaram na época que esse procedimento era medicamente desnecessário. E mais: outros patógenos se desenvolvem bem quando o CCR5 é rompido, criando outros fatores de risco. Por exemplo, um estudo de 2015 demonstrou que ter uma ou duas cópias da CCR5-∆32 quase quadruplicou a chance de morte decorrente de gripe.

Embora as mutações que He criou não sejam totalmente idênticas à variante ∆32, ao que tudo indica, os genes CCR5 dos bebês estão rompidos de forma semelhante. Para entender mais as consequências para os bebês, Nielsen e o pesquisador de pós-doutorado de Berkeley Xinzhu Wei analisaram quase 410 mil genomas do UK Biobank, um banco de dados voluntário de DNA do Reino Unido, e analisaram os destinos daqueles que possuíam naturalmente duas cópias da CCR5-∆32.

Para manter a imparcialidade das amostras, Wei e Nielsen compararam mil subconjuntos de dados gerados aleatoriamente uns com os outros. Após o processo, verificaram que, de forma geral, ter duas cópias da CCR5-∆32 elevou o risco de morrer antes dos 76 anos de três a 46%, com um aumento médio no risco de 21%.

Wei e Nielsen ressalvam que o trabalho deles não deve ser interpretado à risca, em parte porque os atuais bancos de dados de DNA do mundo possuem um viés geográfico. A pesquisa da dupla utilizou genomas de voluntários do Reino Unido e não da China. Mas um viés semelhante permeia a pesquisa que He utilizou originalmente para tentar justificar a edição do DNA dos bebês: estudos anteriores encontraram sinais de efeitos protetores da CCR5-∆32 contra o HIV em populações da Europa e não do leste da Ásia.

“Gostaria de deixar claro que o efeito da mutação depende do fundo genético e do ambiente e que não temos informações suficientes para especular sobre seu efeito na população do leste da Ásia”, afirmou por e-mail Wei, autor principal do estudo.

Efeitos duradouros

As novas descobertas certamente deixarão mais uma vez os dilemas éticos levantados pela pesquisa de He sob os holofotes. Antes e após o anúncio de He, pesquisadores de todo o mundo vêm pedindo uma moratória nas edições hereditárias no genoma humano. Em um estudo publicado na revista científica Nature em maio, um grupo de importantes estudiosos chineses de bioética denunciaram He e pediram uma reformulação total da governança da ética de pesquisas da China. Em janeiro, He foi demitido da Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul da China em Shenzhen.

Os pesquisadores tiveram o cuidado de ressaltar que o debate sobre o trabalho de He não deveria desmerecer o potencial médico transformativo da Crispr, uma vez que a técnica de edição de genes não produz alterações hereditárias em muitas aplicações terapêuticas. Por exemplo, para tratar uma doença genética, os cientistas podem colher células do órgão de uma pessoa, reparar os genes dessas células com a Crispr e reintroduzir as células modificadas nesse órgão para repovoá-lo. Do mesmo modo, os pesquisadores poderiam utilizar a CCR5-∆32 para ajudar a tratar o HIV com a modificação das células imunes de alguém infectado com o HIV a fim de torná-las mais resistentes ao vírus.

[Veja também: 12 inovações que vão revolucionar o futuro da medicina]

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    Mas He editou os genomas das bebês quando eram apenas óvulos fecundados – o que implica que as edições dele estão presentes em quase todas as células do corpo, inclusive em seus óvulos. Se essas bebês, apelidadas de Lulu e Nana, resolverem ter filhos mais tarde com seus óvulos mantidos inalterados, é certo que seus filhos terão ao menos uma cópia rompida do CCR5.

    “A diferença é tão grande quanto modificar o sistema operacional inteiro de um computador em vez de modificar um único software instalado para uma determinada tarefa”, afirma Wei por e-mail. “Na maioria das vezes, quem tem um problema no computador não opta por resolvê-lo formatando o sistema operacional inteiro quando é possível resolvê-lo de maneiras alternativas.”

    A Crispr também não tem uma precisão de 100%, então pode ser que outros genes das bebês tenham sido alterados, com consequências incertas e inesperadas no futuro. Pode muito bem levar décadas para sabermos qual será o destino de Lulu e Nana. Na Nature, o grupo chinês de estudiosos de bioética argumentou que devem ser postos em vigor procedimentos para monitorar e oferecer assistência às duas pelo resto das vidas delas.

    No entanto, já no momento atual, as bebês são um recado profundo para a prudência global, escreveu Jennifer Doudna, codescobridora da Crispr, geneticista da Universidade da Califórnia, em Berkeley, em abril na revista TIME Magazine.

    “A comunidade científica está tentando instituir maiores garantias de proteção agora”, escreveu Doudna. “A fatídica decisão tomada por He de ignorar o juramento básico da medicina de 'não fazer o mal' e expor as bebês a consequências inesperadas provavelmente será lembrada como um dos mais chocantes abusos de qualquer ferramenta científica de nossa história.”

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