Peixe gigante está criticamente ameaçado de extinção por causa dos cardápios de restaurantes de luxo

Donos de restaurantes vietnamitas estão se abastecendo ilegalmente de peixes gigantes e raros do rio Mekong com os pescadores cambojanos.

Por Rachel Nuwer
fotos de Linh Pham
Publicado 18 de jul. de 2018, 11:52 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Um bagre gigante do Mekong de 136 kg, capturado ilegalmente no lago Tonle Sap, no Camboja, é exibido em um restaurante em Hanói, no Vietnã. O peixe foi servido aos clientes que comemoravam o Ano Novo Lunar de 2018. O dono do restaurante disse que conseguir o peixe “raro e especial” do Camboja foi um desafio, mas que “fazemos o possível para melhor servir nossos amados clientes”.
Foto de Hieu Hieu

Do lado de fora, o Nha Hang Lang Nghe, em Danang, parece um restaurante respeitável qualquer do Vietnã. As mesas estão dispostas de forma convidativa à sombra de um jardim exuberante e obras de arte festivas e tradicionais estão alinhadas em atraentes paredes de tijolos. Famílias riem diante de panelas quentes e homens de negócios tilintam copos.

No entanto, o verniz de normalidade saudável oculta uma verdade sombria: peixes gigantes de água doce, criticamente ameaçados de extinção, são o prato-chefe do Lang Nghe. Embora seja ilegal vendê-los no Vietnã, placas na entrada atraem clientes com fotos de bagre gigante do Mekong ameaçados de extinção (“carne saborosa rica em ômega-3”) e barbela gigante (“bom para os homens”), enquanto um vídeo mostrando um bagre gigante de 198 kg sendo cozido e comido aparece em uma tela do lado de dentro. Anúncios em redes sociais também ostentam o sabor delicioso do peixe enorme e sua raridade.

Lang Nghe faz parte de uma tendência crescente de restaurantes em todo o Vietnã que estão agressivamente cultivando um mercado novo e perigoso para os peixes gigantes. As espécies que oferecem são tão raras que a remoção de alguns indivíduos – até seis ao mês, no caso do Lang Nghe – pode levar os animais à extinção. Mas como os peixes selvagens de água doce não atraem a mesma atenção que os tigres, elefantes, rinocerontes ou pangolins, pouquíssimas pessoas sabem que eles são alvos – e menos ainda estão fazendo algo para impedi-los.

“O novo comércio parece ser muito difundido e cresce muito rapidamente”, disse Zeb Hogan, um explorador da National Geographic e biólogo da Universidade de Nevada, em Reno, especialista em peixes gigantes do sistema hidrográfico do rio Mekong. “É preciso lidar com ele para que essas espécies sobrevivam”.

Hogan soube pela primeira vez que as espécies que ele estuda – principalmente o bagre e a barbela gigante, ambos do Mekong – estavam sendo comidas no Vietnã quando alguém lhe enviou um link para uma postagem de um restaurante no Facebook, há cerca de um ano. Ele rapidamente descobriu dezenas de anúncios semelhantes e histórias vietnamita relacionadas nas redes sociais. “Vendo fotos dos peixes, eu não achava que os maiores e mais ameaçados viriam da indústria da aquicultura”, ele disse. “Eles eram grandes demais. Parecia evidente que eles tinham que estar saindo da natureza”.

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    Embora a equipe do restaurante e as histórias nas redes sociais às vezes contem que os peixes gigantes vêm da Tailândia e do Laos, a maior parte deles parece ter origem no Camboja.

    O comércio do bagre e da barbela gigantes do Mekong viola tanto a lei internacional como a nacional no Camboja. Esse também é o caso no Vietnã, onde várias espécies de peixes gigantes, incluindo bagres e barbelas gigantes, são protegidas desde 2008. Embora o código penal atual do Camboja não estabeleça uma pena para a caça ilegal de peixes protegidos, no Vietnã as penas máximas pela exploração dessas espécies pode resultar em multas de USD $ 88 mil para indivíduos ou de USD $ 658 mil para empresas e 15 anos de prisão. No entanto, a fiscalização é leve: não há evidências documentadas sequer de que algum peixe gigante tenha sido apreendido nos restaurantes vietnamitas que os vendem abertamente.

    Alarmado com a tendência, Hogan entrou em contato com pesquisadores do comércio ilegal de animais selvagens e ativistas da região. Mas ninguém parecia ter ideia do que ele estava falando. Todos estavam focados em espécies terrestres ou marinhas. “Os peixes de água doce não são uma prioridade nos círculos de conservação da vida selvagem”, disse Hogan. “Eles são difíceis de estudar, não se sabe muito sobre eles e não há tanta empatia e apoio público”.

    Trabalhadores coletam peixes em um porto na Estrada Nacional 5 do Camboja, um dos principais abastecimentos para Phnom Penh e arredores. O rio Mekong, um dos mais biodiversos do mundo, provém o sustento de milhões de pessoas. Os moradores locais reclamam que a pesca está diminuindo e que os peixes gigantes do rio se tornaram extremamente raros.
    Foto de Linh Pham, National Geographic

    Hogan é um cientista, não um investigador de comércio de animais selvagens, mas, em janeiro de 2018, ele e a National Geographic procuraram respostas para perguntas básicas sobre o comércio: por que esses peixes estão aparecendo agora em restaurantes no Vietnã? De onde eles vêm? Descobrir isso é uma peça crucial do quebra-cabeça para frear o comércio.

    Há muito tempo que monstros vivem no Mekong, um dos rios mais biodiversos do mundo. Começando no planalto tibetano e serpenteando por Mianmar, Laos, Tailândia, Camboja e Vietnã, sua veia marrom-café-com-leite de 4,2 mil km de comprimento esconde uma matriz fantástica de quase mil peixes, muitos encontrados apenas ali. Graças à enormidade e produtividade do rio, cerca de uma dúzia desses peixes atinge proporções recorde.

    “Estes são alguns dos maiores e mais extraordinários e icônicos peixes do mundo”, disse Hogan. “Eles são grandes o suficiente para impressionar até mesmo os pescadores mais experientes”.

    Tem a arraia gigante de água doce, de 227 kg – um colosso marrom que desliza pela água como um disco voador –, juntamente do gigantesco monstro-do-rio (Bagarius yarrelli), uma espécie predatória que parece uma mistura entre um tubarão e um jacaré. Tem a carpa-de-salmão-gigante (Aaptosyax grypus), cuja boca perpetuamente virada para baixo botaria a célebre Gata Rabugenta para correr. E a barbela gigante, um dirigível com grossos lábios carnudos e escamas do tamanho da palma da sua palma, às vezes chamada de peixinho dourado de 270 kg. O mais conhecido de todos, no entanto, é o bagre gigante do Mekong. Chegando a 3 metros de comprimento e quase 300 kg, é considerado o rei dos peixes em toda a região.

    Mais que meros souvenires de uma época mais selvagem e inspiradora, os gigantes – os mais raros entre os raros – do Camboja e do Laos indicam, com sua presença, que o ecossistema do rio Mekong, embora super-explorado e degradado em certas partes, ainda funciona bem o suficiente para sustentar todas as espécies menos ameaçadas também. Proteger os gigantes significa proteger um Mekong vivo e tudo o que há nele.

    Hogan vem estudando os peixes gigantes ameaçados de extinção do Sudeste Asiático desde 1997. Como bagres e barbelas gigantes são muito evasivas, em 2000 ele começou a trabalhar em rede com pescadores locais e os encorajou a avisar seus parceiros na Administração de Pesca do Camboja sempre que pegassem um peixe gigante sem querer. Os pesquisadores então corriam para o local para medir o peixe, etiquetá-lo e liberá-lo, e os pescadores recebiam um pequeno pagamento (para não dizer o direito de se gabar) pela ajuda.

    Durante anos, o sistema funcionou bem: o número de telefone para denúncias de peixes recebia até 10 chamadas por ano e os peixes marcados começaram a aparecer em locais a centenas de quilômetros dali, permitindo que Hogan e seus colegas acompanhassem seu movimento e crescimento. Mas durante os últimos cinco anos, as chamadas diminuíram para apenas uma ou duas por ano – ou às vezes nenhuma.

    A escassez alimenta a demanda

    Fishermen load their catch at a dealer’s boathouse in Kompong Luong, on the Tonle Sap Lake. Cambodian dealers have traditionally avoided giant fish, thought to bring bad luck. Vietnamese dealers have no such qualms.

    Foto de Linh Pham, National Geographic

    No trecho do Mekong que corre no Vietnã, os peixes gigantes ficaram ameaçados bem antes dos proprietários de restaurantes vietnamitas os farejarem, graças a uma mistura de pesca excessiva, poluição e construção de represas, que bloqueiam rotas migratórias essenciais e alteram a dinâmica natural do rio. Lá, as criaturas agora parecem ser pouco mais que os fantasmas dos contos de horror dos veteranos.

    “Embora a União Internacional para a Conservação da Natureza diga que devemos proteger bagres e barbelas gigantes, toda vez que as pessoas os capturam no Vietnã, eles são comidos”, diz Mai Dinh Yen, um ictiólogo aposentado da Universidade Nacional de Hanói. “Nunca houve um caso em que esses peixes foram capturados e depois devolvidos ao rio”.

    No entanto, é precisamente o fato de os peixes estarem quase extintos que determinados clientes cobiçam. No Vietnã, ser capaz de obter e pagar por algo escasso – mesmo se, e às vezes especialmente se, for contra a lei – estabelece a importância, a riqueza e o poder de alguém. Essa mentalidade é uma grande influência por trás da venda de produtos ilícitos da vida selvagem, como carne de pangolim, chifre de rinoceronte, marfim e partes de tigre, e parece estar desempenhando um papel no comércio de peixes gigantes também. A carne deles foi descrita na mídia vietnamita como tendo a capacidade de trazer boa sorte e melhorar o desempenho sexual.

    No passado, muitos pescadores em Kompong Luong, sem querer, apanhavam peixes gigantes do Mekong. Hoje em dia isso quase não ocorre.
    Foto de Linh Pham, National Geographic

    “Os vietnamitas têm um ditado que diz que quanto maior o peixe, melhor o sabor”, disse Hoang Trong Nghia, gerente do Nha Hang Ngu Quan, um restaurante em Hanói que é especializado nos gigantes. Ele envia mensagens a um número cada vez maior de clientes regulares toda vez que chega um. “Algumas pessoas até compram peixe gigante de presente para um colega de trabalho ou para uma grande festa familiar, por ele ser tão raro”, ele explica. “Não é um presente comum, então é mais especial”.

    Os preços variam de acordo com a espécie e o tamanho, diz Nghia, sendo as barbelas gigantes que pesam mais de 100 kg os maios valiosos – mais ou menos USD $ 176 por quilo. “Barbelas gigante são as mais caras porque são tão raras e a qualidade é tão alta. Às vezes, temos até que entrar em disputa com outros restaurantes para consegui-las”. O maior peixe que ele já recebeu, no entanto, foi um bagre gigante do Mekong, capturado no Camboja em dezembro de 2016 e pesando 280 kg. “Parecia um búfalo”, diz Nghia.

    Peixes como esses não podem ser encomendados com antecedência porque são muito raros, ele acrescentou – e devem ser capturados em estado selvagem. Esta não é apenas uma consideração prática: o quão selvagem é o peixe, tal como a raridade, é um atributo altamente valorizado no Vietnã.

    Todos os quatro restaurantes que visitei no país me garantiram que seus peixes gigantes vêm da natureza selvagem. Mas quando falei ao telefone com Ly Nhat Hieu – que é dono do Hang Duong Quan, uma franquia de restaurantes da Cidade de Ho Chi Minh especializada em “peixes terríveis” e que ostenta uma celebridade e uma clientela VIP –, ele negou tal afirmação. “Simplesmente compro o peixe do mercado”, ele disse. “Existem muitas fazendas de peixes no Vietnã hoje, onde as pessoas podem criar esses peixes. Não é nada especial e não é o peixe em estado natural”.

    Isso bate de frente com o que é relatado nas reportagens da mídia sobre o restaurante de Hieu, incluindo até postagens do próprio site do restaurante, ambos afirmando que os peixes do Hang Duong Quan vêm da natureza selvagem – e a equipe de seu restaurante diz o mesmo. “O proprietário tem até parentes no Camboja que encontram e lhe abastecem do peixe”, diz um garçom do restaurante, que a National Geographic não vai nomear para proteger seu trabalho. “Ele tem muitos contatos naquela região, por isso temos peixes gigantes o tempo todo”. O maior peixe do Hang Duong Quan, importado no final de 2017, era um bagre gigante de quase 2 m de comprimento e 250 kg – um peixe, de acordo com o garçom, que “só pode viver no rio Mekong, no Camboja”.

    Thomas Raynaud, diretor de aquicultura da Neovia Vietnam, uma empresa francesa especializada em gestão e saúde em pecuária e aquicultura, concordou que um peixe tão grande, quase certamente, vem da natureza selvagem. Os bagres gigantes do Mekong não são criados em cativeiro no Vietnã, ele disse, e embora exista alguma criação de barbelas gigantes, seu peso máximo raramente excede 9 kg e a produção é muito pequena. A criação dessas espécies a proporções gigantescas exigiria muitos anos de esforços e “não é realista”, disse Raynaud.

    Como não o é a probabilidade de gigantes criados em aquicultura serem importados de outros países. A Tailândia tem diversas fazendas de bagres gigantes do Mekong bem-estabelecidas, mas os peixes não costumam pesar mais que 45 kg quando são vendidos.

    Uma estátua de uma barbela gigante coroa a entrada de uma aldeia perto da estação de campo de Bati da Administração de Pesca do Camboja, duas horas a sudeste de Phnom Penh. Peixes gigantes são, há muito, respeitados – até mesmo venerados – no Camboja.
    Foto de Linh Pham, National Geographic

    “Eu nunca ouvi falar de um tanque que criasse o bagre gigante do Mekong e que pudesse chegar a 135 kg ou mais”, diz Naruepon Sukumasavin, diretor da divisão administrativa da Comissão do Rio Mekong em Vientiane, capital do Laos. Certos bagres gigantes do Mekong, acrescentou, chegam a pesar mais de 200 kg em reservatórios abastecidos pelo governo na Tailândia, mas ele não sabe de tais operações no Camboja, no Vietnã ou no Laos.

    As barbelas gigantes, por outro lado, são completamente diferentes, diz Sukumasavin. Embora a espécie tenha sido criada em cativeiro por mais de 40 anos, esses peixes são quase sempre devolvidos à natureza – e não vendidos por sua carne.

    Venerado por uns, traficado por outros

    O Camboja há muito vem sendo uma fortaleza de resistência para peixes gigantes, em parte por causa da veneração cultural em torno deles. Os bagres gigante do Mekong aparecem em esculturas do século 12 nas paredes do templo Bayon, perto de Angkor Wat, e qualquer peixe que pese mais de 45 kg é amplamente considerado um detentor de qualidades divinas. Muitos pescadores cambojanos consideram a captura de um deles um sinal de azar.

    Depois que Phan Sok Phoen apanhou duas barbelas gigantes, os comerciantes vietnamitas tentaram persuadi-lo a vender o peixe, o que teria sido ilegal. “Para que desperdiçar um dinheiro desses?”, lhe perguntaram. Phoen recusou, mas ele diz que outros pescadores do Camboja preferiram violar a lei e trabalhar com os vietnamitas.
    Foto de Linh Pham, National Geographic

    Phan Sok Phoen, por exemplo, ficou horrorizado no ano passado quando, em duas ocasiões distintas, encontrou uma barbela gigante com mais de 113 kg presa em sua rede. Foi a primeira vez em 10 anos de pesca no Lago Tonle Sap que ele pegou uma, que dirá duas. “Fiquei muito surpreso e com muito medo, porque a barbela gigante é como um deus ou espírito”, ele disse. “Eu rezei para ele: ‘Por favor, não me machuque!’.”

    Phoen imediatamente ligou para os oficiais da pesca na aldeia de Kompong Luong, que o ajudaram a libertar o peixe. Para marcar a ocasião, ele acendeu um incenso e fez algumas orações, implorando ao peixe que o abençoasse com boa sorte por o haver devolvido ao lago.

    Ao optar por respeitar suas crenças, Phoen abriu mão de uma bolada de dinheiro. Comerciantes vietnamitas começaram a aparecer em sua comunidade há cerca de dois anos, ele disse, querendo comprar peixes gigantes de pescadores cambojanos e, presumivelmente, transportá-los para o Vietnã. Phoen ouviu dizer que eles compraram cerca de 10 barbelas gigantes só no ano passado. Depois de postar fotos em seu mural do Facebook de uma enorme barbela que pegou, um homem vietnamita lhe telefonou para lhe oferece entre USD $ 66 e USD $ 100 por quilo da próxima vez que um monstro aparecesse em sua rede. Um único peixe, em outras palavras, poderia render bem mais de USD $ 10 mil. “Para que desperdiçar todo esse dinheiro?”, perguntou o homem a Phoen.

    Phoen se manteve firme, dizendo que não estava interessado. “Se você vender barbelas gigantes, você perderá um membro da família, perderá propriedade, será preso – coisas desse tipo”, ele me disse. “Talvez eu ganhasse dinheiro, mas minha família teria problemas”.

    Enquanto alguns cambojanos que capturam peixes gigantes podem ser escrupulosos e supersticiosos, outros estão mais interessados ​​em lucrar – ou motivados pelo desespero – e com milhões de redes lançadas no Mekong todos os dias, os peixes correm um risco constante de serem capturados e vendidos ilegalmente.

    Pescadores cambojanos instalam-se na casa de barcos de um negociante em Kompong Luong. Os atravessadores vietnamitas podem pagar USD $ 10 mil por um único peixe gigante, uma oferta que pode ser difícil de recusar.
    Foto de Linh Pham, National Geographic

    El Sokrey, um pescador em Chong Koh Chrog Changvar, uma comunidade de casas flutuantes do Mekong, perto de Phnom Penh, sintetiza as circunstâncias que podem levar os pescadores cambojanos a romperem com a tradição e com a lei para entrarem em contato com um comerciante vietnamita se um peixe gigante cair na rede. Sokrey disse que a captura no rio de peixes menores tem diminuído constantemente desde 2008, o que teve um efeito devastador para sua família. Ele costumava ganhar mais do que o precisava através da pesca para sustentar sua esposa e filha mais nova e pagar por novas redes e reparos no barco. Agora ele não tem escolha a não ser reparar à mão a rede esgarçada, e sua família mal consegue sobreviver.

    “Estou tão preocupado com minha esposa e minha filha”, ele disse. “Sou um pescador: não posso ir para o continente para procurar outro emprego”.

    No ano passado, uma barbela gigante pesando cerca de 40 kg ficou presa na rede de Sokrey – a primeira e única que ele viu –, mas já estava morta e começando a estragar. Ele tinha ouvido falar de comerciantes vietnamitas, mas sabia que eles preferiam os peixes vivos. Então ele vendeu o peixe para o mercado normal por meros USD $ 4,80 por quilo.

    O vizinho de Sokrey, Ya Hosen, também pegou uma barbela gigante na mesma época. Ela pesava cerca de 50 kg e também estava morta. “Se eu a tivesse capturado viva, teria tentado encontrar um atravessador vietnamita que pagasse mais”, diz Hosen. “Mas peixes mortos eles não compram”. (Phan Sok Poen, no entanto, disse que os comerciantes de Tonle Sap agora compram peixes mortos, um recente desenvolvimento que indica a crescente demanda no Vietnã.)

    Como Hosen e Sokrey, quase todos os pescadores com quem conversei no Camboja tinham ouvido falar dos comerciantes vietnamitas.

    “Sim, é claro que os vietnamitas compram peixes grandes!”, disse Chaing Pheap, que há 20 anos pescava de sua casa flutuante perto de Phnom Penh. “Eles querem os grandões porque têm mais carne”. Pheap disse que os comerciantes vietnamitas começaram a procurá-lo há cerca de três anos. Dois deles até lhe deram cartões de visita: “Compre bagres e barbelas gigantes”, diz um deles. O outro traz apenas um nome e um número de telefone.

    Quando liguei para o número, um homem respondeu falando em Khmer com o que meu intérprete disse ser um forte sotaque vietnamita. Perguntei-lhe se estava interessado em barbelas gigantes, e ele disse que estava sim, citando valores de USD $ 88 por quilo por um peixe de 90 kg e USD $ 55 por quilo por um peixe menor. “Onde você está agora?”, o homem indagou com uma voz urgente. “Vou mandar alguém buscar o peixe agora”.

    Ya Hosen (à direita) vai pescar com a família em seu barco em Chong Koh Chrog Changvar, uma comunidade de casas flutuantes do Mekong perto de Phnom Penh. No ano passado, ele apanhou uma barbela gigante pesando cerca de 50 kg, mas ela estava morta. “Se eu a tivesse capturado viva”, ele disse, “teria tentado encontrar um atravessador vietnamita que pagaria um preço alto por ela”.
    Foto de Linh Pham, National Geographic

    O homem ao telefone estava quase certamente trabalhando para um dos restaurantes no Vietnã. De acordo com Long Quang Bui, gerente do Lang Nghe, o restaurante de Danang que apresenta peixes gigantes em seu cardápio, “os pescadores são nossos parceiros e nós somos parceiros deles”.

    Nghia, o gerente di Ngu Quan, em Hanói, diz que há “centenas” de pescadores procurando por esses peixes gigantes. Mas ao invés de trabalhar diretamente com eles, ele trabalha com “vários tipos diferentes” que atuam como atravessadores. (Os atravessadores servem como uma ponte entre os caçadores ilegais rurais e os comerciantes urbanos.)

    Recentemente, um desses atravessadores, um vietnamita da Cidade de Ho Chi Minh, contatou descaradamente Chheng Phen, vice-diretor da Administração de Pesca do Camboja, pedindo ajuda para encontrar pescadores que vendem peixes gigantes. “Você achou a pessoa errada”, Phen disse ao homem. “Eu sou aquele que protege essas espécies!”.

    Obstáculos para frear o comércio ilegal

    De acordo com a lei cambojana, é ilegal exportar ou importar “todos os tipos de produtos pesqueiros naturais de espécies ameaçadas”. Outra disposição especifica que espécies ameaçadas são proibidas de serem exportadas, a menos que a transferência tenha sido autorizada pelas autoridades. Mas os comerciantes parecem ter poucas dificuldades em levar peixes gigantes protegidos para fora do país.

    No restaurante Lang Nghe, em Danang, no Vietnã, os clientes jantam sob um cartaz que anuncia barbelas e bagres gigantes de 136 kg. Anúncios na entrada atraem clientes com fotos de bagres gigantes ameaçados (“carne saborosa rica em ômega-3”) e barbelas gigantes, enquanto um vídeo mostrando um bagre gigante de 198 kg sendo cozido e comido é exibido em uma tela do lado de dentro.
    Foto de Linh Pham, National Geographic

    Uma vez que os fornecedores colocam as mãos em um peixe, Bui me disse, eles o embalam no gelo para ser transportado de avião, geralmente pela Vietnam Airlines, para Danang. “No Vietnã, quando você importa algo de outro país, geralmente não é tão difícil quanto nos Estados Unidos”, disse Bui.

    “Não é difícil para mim trazer esses peixes ao Vietnã”, acrescentou Huynh Anh, proprietário de Lang Nghe e chefe de Bui. “Só preciso de alguns documentos e contas originais”.

    Nghia também confirmou que a Ngu Quan geralmente envia seus peixes para Hanói por via aérea, exceto nas poucas ocasiões em que “o avião não concede permissão para a entrada do peixe no Vietnã”, e nesse caso os fornecedores trazem o peixe de carro.

    Porque o bagre gigante do Mekong (mas, estranhamente, não as barbelas gigantes) tem o nível mais alto de proteção da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies Ameaçadas da Fauna e Flora Selvagens (CITES), o tratado que regula o comércio mundial de animais silvestres, o comercio através da fronteira exige tanto uma licença de exportação emitida pelo país de origem quanto uma licença de importação emitida pelas autoridades do país de destino. O transporte de peixes gigantes para outro país sem essa documentação estaria violando o tratado, do qual todos os cinco países da bacia do rio Mekong são signatários.

    Pescadores em Chong Koh Chrog Changvar, uma comunidade de casas flutuantes do Mekong perto de Phnom Penh, às vezes encontram ou apanham peixes gigantes do Mekong. A pobreza é um estímulo poderoso: um peixe gigante pode render a um pescador o equivalente a mais de um ano de ganho.
    Foto de Linh Pham, National Geographic

    No entanto, o banco de dados da CITES para o comércio – uma coleção pesquisável de todo o comércio internacional de espécies listadas na CITES, que os países devem atualizar anualmente – lista apenas seis bagres gigantes do Mekong exportados a partir da Tailândia desde 2011, nenhum dos quais foi para o Vietnã. De acordo com as autoridades da CITES no Camboja, o país jamais emitiu sequer uma licença de exportação para essa espécie. E a autoridade da CITES no Vietnã não tem registro de nenhuma licença de importação para peixes de água doce do Camboja.

    Anh pode driblar as formalidades dessa licença. “Eu tenho um bom relacionamento com pessoas do governo cambojano”, ele me disse. “Foram eles que me apresentaram esses peixes gigantes”. Quando pediram que se explicasse, ele se recusou a comentar mais. “A venda desses peixes gigantes é delicada. O bagre e a barbela gigantes estão na Lista Vermelha, proibidos de serem capturados”, diz ele, referindo-se às criaturas mais ameaçadas identificadas pela União Internacional para a Conservação da Natureza, que define o status de conservação das espécies.

    Segundo Sok Rin, vice-chefe de pesca de uma comunidade no lago Tonle Sap, no Camboja, “100% dos pescadores sabem que é ilegal não devolver a barbela ou o bagre gigante à água”. Ele admitiu, porém, que ele e seus colegas não fiscalizam ou investigam o bastante para assegurar que as leis estejam sendo cumpridas. “Apenas esperamos que os pescadores informem a pesca de peixes gigantes para nós”, ele disse. Nenhuma outra explicação foi dada.

    Thach Phanara, chefe dos laboratórios do Instituto de Pesquisas e Desenvolvimento da Pesca do Interior do Camboja, acredita que a falta de motivação e a fraca fiscalização são sérios obstáculos para acabar com o comércio ilegal. “Temos que forçar a indústria da pesca e os funcionários da alfândega a fazerem seu trabalho – e não apenas passar o dia em um escritório e deixar tudo nas mãos dos pescadores e dos atravessadores”, diz ele. “Temos que forçá-los a cumprir as regras”.

    No Vietnã é bem parecido, de acordo com Yen, o ictiólogo aposentado da Universidade Nacional de Hanói. “O Vietnã é conhecido por aprovar muitas leis, mas o monitoramento e a fiscalização são fracos”, ele disse. “As leis são bastante abrangentes, mas a qualidade e a eficácia de tal agência ou tal departamento simplesmente não existem”.

    Nguyen Quoc Manh, proprietário do Lau Cua Song Truce Vien, um restaurante de frutos do mar em Hanói, disse que, enquanto houver lucro envolvido, as empresas que lidam com produtos ilícitos da vida selvagem geralmente podem evitar o fechamento de seus negócios. “Pense no marfim – mesmo sendo ilegal, as pessoas continuam vendendo”.

    Thach Phanara, chefe dos laboratórios do Instituto de Pesquisas e Desenvolvimento de Pescas do Camboja, acredita que a falta de motivação e a fiscalização leve são sérios obstáculos para acabar com o comércio ilegal de peixes gigantes. “Temos que estimular os pescadores e os funcionários da alfândega a trabalharem”, diz ele, “e não apenas passar o dia em um escritório e deixar tudo nas mãos dos pescadores e dos atravessadores”.
    Foto de Linh Pham, National Geographic

    Em alguns casos, pode haver um verdadeiro mal-entendido sobre a lei. Manh disse que ocasionalmente recebe bagres gigantes do Mekong do Camboja ou do Laos, que ele parecia genuinamente acreditar ser legal. “Outros restaurantes importam peixe ilegal”, ele me disse. “Meu negócio está indo bem, então para que eu teria que fazer isso?”.

    Não seria a primeira vez que a confusão prejudicaria o cumprimento da lei no Vietnã, segundo Doug Hendrie, diretor de fiscalização e investigações do grupo sem fins lucrativos Education for Nature-Vietnam. “Como algumas outras leis que são mal aplicadas, existe, de fato, uma questão de conscientização, bem como a disposição em violar a lei, que não é vista como sustentada por uma fiscalização”, diz ele. “Colocar esses peixes protegidos no topo da lista de prioridades do Vietnã beneficiaria as espécies e iniciaria o processo de fortalecimento da fiscalização que atualmente está em baixa”.

    “Temos que trabalhar juntos”

    Vuong Tien Manh, vice-diretor em gestão da CITES no Vietnã, me disse que ele e seus colegas tomaram conhecimento do comércio ilegal de peixes gigantes apenas em janeiro, quando a National Geographic entrou em contato com seu escritório para comentar o assunto. Ele disse que eles passaram imediatamente a mencionar o assunto em treinamentos realizadas com funcionários da alfândega e iniciaram discussões com a Diretoria da Alfândega sobre o fortalecimento da fiscalização.

    “Gostaríamos de ter mais treinamento sobre como identificar essas espécies de peixes e aumentar a conscientização e fortalecer o compartilhamento de informações entre o Vietnã e o Camboja”, disse Manh. “Mas nos faltam os recursos para fazer isso sozinhos”.

    Chheng Phen, da Administração de Pesca do Camboja, concorda: “Não sei como lidar com esse problema sozinho”, ele disse. “Temos que encontrar uma maneira de trabalhar juntos”.

    O biólogo Zeb Hogan está trabalhando em prol desse objetivo. Ele é o líder científico da Wonders of the Mekong (maravilhas do Mekong), uma colaboração entre o Centro Global de Água da Universidade de Nevada e o governo cambojano, financiada em parte pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e destinada a manter um rio Mekong saudável. Agora que ele já conhece o básico sobre o comércio ilegal, ele espera que a aproximação das autoridades e dos conservacionistas vietnamitas e cambojanos os leve a traçar um plano que funcione para todos. “Precisamos fazer por esses peixes o que já está sendo feito por outras espécies, como rinocerontes e tigres”, disse Hogan. “Os peixes também são animais selvagens”.

    Como os peixes gigantes são muito raros, é impossível prever quando ou onde um deles será capturado, e os peixes também são fáceis de esconder durante o transporte. “É como se os comerciantes estivessem sempre um pouco à frente de nós”, diz Phen.

    Na estação de campo de Bati da Administração de Pesca do Camboja, pesquisadores estão criando cerca de mil barbelas gigantes e juvenis em um experimento inédito visando reabastecer a população selvagem.
    Foto de Linh Pham, National Geographic

    Hogan e outros acreditam que isso faz com que a redução da demanda no Vietnã seja o ponto de partida mais efetivo para conter o comércio ilegal. Como observou Hoang Anh Tuan, ictiólogo do Museu Nacional da Natureza do Vietnã, “se os consumidores não quiserem essa espécie, os donos de restaurantes deixarão de oferecê-los”.

    Tesouros vivos

    Ao mesmo tempo que algumas pessoas estão tirando os gigantes do Mekong, outras estão tentando reabastecer o rio. Na estação de campo de Bati da Administração de Pesca do Camboja, duas horas a sudeste de Phnom Penh, uma fileira de tanques brilha sob o sol do fim da manhã. De vez em quando, uma ondulação na superfície revela os tesouros vivos ocultos sob a água escura: mil barbelas gigantes e juvenis. Eles são as estrelas de um experimento inédito visando reabastecer populações de peixes gigantes no Camboja.

    Em julho de 2017, cientistas do governo adquiriram cerca de 10 mil peixes do tamanho de um caneco de cerveja de meio litro que foram capturados acidentalmente. Alguns eram claramente barbelas gigantes, enquanto outros alevinos, eles esperavam, se tornariam bagres gigantes (é impossível distinguir espécies de bagres quando são muito jovens).

    Os alevinos foram levados de volta para a estação de pesca, onde agora estão crescendo na segurança dos tanques. Depois de alcançarem entre 285 e 400 g, eles serão marcados e liberados em áreas protegidas – locais ainda a serem decididos – com a melhor fiscalização e monitoramento.

    À medida que os peixes migram para cima e para baixo no Mekong e se dispersam por seus afluentes maiores, os pesquisadores esperam que os pescadores que os pegarem ligarão para o número de telefone presente na etiqueta para reivindicar uma pequena recompensa e, logo, devolverão o peixe ao rio. Isso os ajudaria a monitorar o peixe ao longo do tempo.

    Em janeiro de 2018, seis meses após o início do experimento, os peixes do tanque estavam sobrevivendo em índices 25% mais altos, em comparação ao 1% ou menos estimado na natureza. Também em janeiro, e com grande entusiasmo, os pesquisadores identificaram seu primeiro bagre gigante – um elegante “torpedo-prateado” que batizaram de Wonder.

    Cerca de 250 das barbelas gigantes foram devolvidas à água em 1º de julho, Dia Nacional do Peixe no Camboja, uma celebração anual para conscientizar e entusiasmar a conservação dos peixes. Como disse Chheng Phen, da administração pesqueira: “Nós, cambojanos, nos preocupamos muito com esses peixes”.

    As barbelas gigantes e juvenis da administração pesqueira estão crescendo nesses tanques na estação de campo de Bati. Quando os peixes tiverem entre 285 a 400 g, eles serão etiquetados e devolvidos às águas de áreas protegidas do Mekong ou do Tonle Sap.
    Foto de Linh Pham, National Geographic

    De acordo com Hogan, o fato de os pescadores terem capturado milhares de peixes gigantes jovens mostra que o ecossistema do Mekong não foi destruído. “Nos rios onde há um problema sistêmico, muitas vezes você não vê peixes jovens porque os adultos não conseguem completar seu ciclo de vida”, diz ele. “Como ainda encontramos peixes jovens no Mekong, sabemos que ainda há peixes grandes lá – o que significa que ainda há esperança”.

    Hogan prefere ser otimista. “No Camboja, apesar de todos os desafios, as pessoas apoiam a ideia de conservar essas espécies. Esses animais fazem parte da identidade nacional do Camboja e do que torna esse país especial”.

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