Lêmures podem estar utilizando o piolho-de-cobra como medicamento

Lêmures-da-face-vermelha entram na crescente lista de animais que utilizam plantas e outros animais para o tratamento de doenças.

Por Jason Bittel
Publicado 7 de ago. de 2018, 17:45 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Lêmure-da-face-vermelha utiliza piolhos-de-cobra para lutar contra as parasitas, de acordo com nova pesquisa.
Lêmure-da-face-vermelha utiliza piolhos-de-cobra para lutar contra as parasitas, de acordo com nova pesquisa.
Foto de Louise Peckre

EM GERAL, nunca é uma boa ideia colocar um piolho-de-cobra na boca. Muito menos é recomendado sacudi-lo e esfregá-lo em suas genitálias.

Afinal, os piolhos-de-cobra são conhecidos por produzirem secreções tóxicas que mantêm os predadores afastados. Algumas espécies podem até causar queimaduras químicas.

Entretanto, em novembro de 2016, a especialista em comportamento animal Louise Peckre presenciou um lêmure-da-face-vermelha fêmea pegar um piolho-de-cobra gigante na Floresta de Kirindy em Madagascar. A criatura alternou entre mascar o bicho nocivo e massageá-lo em sua pele em volta de seu rabo e órgãos sexuais. Por fim, ela enfiou o artrópode goela abaixo.

Enquanto Peckre observava, esse lêmure encontrou mais dois piolhos-de-cobra e repetiu tudo. Quando terminou, seus membros inferiores estavam visivelmente encharcados com uma mistura espumante de saliva e secreções laranjas elétricas do artrópode.

No final desse mesmo dia, ela observou cinco outros lêmures de grupos distintos agindo da mesma forma. Os animais nunca haviam sido vistos comendo e esfregando esses bichos por seus corpos. Mas o que isso significa?

É muito cedo para afirmar, diz Peckre, que atualmente estuda a comunicação dos lêmures no Centro de Primatas da Alemanha. Contudo, em um artigo publicado nesta semana no periódico Primates, ela e seus coautores argumentam categoricamente que os lêmures-da-face-vermelha podem estar utilizando as secreções do piolho-de-cobra para automedicação contra parasitas intestinais.

Piolhos-de-cobra produzem compostos tóxicos, como a benzoquinona, que normalmente os torna intragáveis para os predadores.
Foto de Louise Peckre

Toxinas e assaduras

Para entender porque os lêmures-da-face-vermelha esfregam as toxinas em suas genitais, primeiro é preciso entender que essa espécie possui uma variedade de parasitas gastrointestinais maior do que qualquer outra espécie.

Além disso, alguns desses nematoides podem causar assaduras que coçam a traseira dos lêmures quando minhocas adultas saem pelo ânus e colocam seus ovos na pele circundante.

Estudos mostraram que um dos químicos tóxicos que os piolhos-de-cobra produzem é chamado de benzoquinona, uma substância que comprovadamente possui propriedades inseticidas e antimicrobianas. Ao mesmo tempo que a benzoquinona é provavelmente utilizada pelos piolhos-de-cobra para que não sejam comidos, os lêmures aprenderam como extrair a química para o próprio uso.

Derek Hennen, entomologista que estuda piolhos-de-cobra na Virginia Tech, afirma que esfrega-los com força é uma tática inteligente dos lêmures.

“Os piolhos-de-cobra eliminam mais toxinas quando são constantemente incomodados”, afirma Hennen. “Se eles irrompessem em toxinas imediatamente com um simples esbarrão, não seria uma boa defesa, pois é necessário um tempo para a produção de novas toxinas”. (Veja também: Briga entre aranha-camelo e piolho-de-cobra em um vídeo raro)

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    O próximo passo, afirma Peckre, será testar de forma experimental se a benzoquinona mata ou impede que parasitas específicos se aproximem de lêmures-da-face-vermelha.

    Automedicação

    Os lêmures-da-face-vermelha não são os primeiros animais observados se automedicando.

    Por exemplo, foi descoberto recentemente que os orangotangos mascam folhas com propriedades anti-inflamatórias e posteriormente aplicam-nas em sua pele. Outros tipos de lêmures, chimpanzés, ursos-pardos e ouriços estão entre os animais que têm um comportamento chamado de autounção.

    “Alguns utilizam plantas, outros formigas e piolho-de-cobra”, afirma Michael Huffman, do Instituto de Pesquisa de Primatas da Universidade de Quioto.

    É curioso, de acordo com Huffman que essa é a primeira vez que foi documentada a ingestão de piolho-de-cobra para um possível uso medicinal. Normalmente os animais aplicam os piolhos-de-cobra superficialmente.

    Lêmure-da-face-vermelha rói piolho-de-cobra gigante com sua cauda ainda molhada de saliva e toxinas laranjas que os piolhos-de-cobra expelem.
    Foto de Japan Monkey Centre and Springer Japan KK, part of Springer Nature 2018

    Hennen também desconhecia qualquer caso de animais que comem piolho-de-cobra para fins medicinais.

    Melhor remédio?

    Não sendo os piolhos-de-cobra uma fonte alimentícia benéfica para os lêmures-da-face-vermelha, Peckre e seus coautores apresentam a hipótese de que os animais podem estar comendo-os por outros motivos. Especificamente, os cientistas acreditam que algumas doses de piolho-de-cobra podem ajudar a evitar infestações parasitárias futuras.

    Não está claro como os animais conseguem tolerar os artrópodes venenosos, mas o comportamento de esfregá-los pode ajudar a desintoxicar os piolhos-de-cobra. Um comportamento similar foi observado em pássaros que esfregam ácido fórmico expelido pelas formigas em suas penas, possivelmente como uma forma de deixar essas formigas com um gosto melhor.

    Estranhamente, a análise fecal mostrou que lêmures-da-face-vermelha apresentam um pico de parasitas no início da estação chuvosa, é exatamente nessa época do ano que os piolhos-de-cobra começam a emergir da terra. É como se a farmácia dos lêmures ficasse disponível exatamente quando eles mais precisam.

    Huffman, que estudou amplamente a automedicação dos animais, continua não acreditando que os animais estão pensando no futuro.

    “A resposta curta aqui é, não, não existe nenhuma evidência sólida de tratamento preventivo dos animais”, afirma Huffman.

    Entretanto, ele diz que todos os animais do planeta estão propensos a doenças e parasitas. Então, faz sentido que cada espécie encontre formas de “lidar com o desconforto para voltar para o seu estado ‘normal’”, diz ele.

    Mas ainda não há provas se os animais fazem isso intencionalmente.

    Peckre afirma que existem muitos mistérios sobre os lêmures que estimulam maiores esforços para a conservação dos ecossistemas em que habitam. Cerca de 95% das espécies de lêmures estão em risco de extinção, de acordo com um encontro recente realizado com os principais cientistas dos primatas.

    “O local onde vivem está de fato ameaçado pelo desflorestamento,” afirma Peckre. “Portanto, é uma luta diária [simplesmente] conseguir fazer uma pesquisa aqui”.

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